Em 2012, o American Board of Internal Medicine iniciou nos Estados Unidos a campanha Choosing Wisely, que hoje se expandiu oficialmente para outros países, como Canadá, Inglaterra, Alemanha, Itália, Holanda, Suíça, Austrália, Nova Zelândia e Japão. Este países estão agrupados no denominado Choosing Wisely International. Esta iniciativa serve de inspiração para qualquer país que insiste em imitar o padrão americano de consumo de recursos pseudo-científicos. O Brasil é um deles.
Choosing Wisely poderia ser traduzido como "usando de sabedoria nas escolhas” ou “escolhendo sabiamente”. Esta iniciativa surge da percepção de que há falta de sabedoria na utilização exagerada ou inapropriada de recursos em saúde. Choosing Wisely é uma campanha que vai ao encontro do paradigma Less is More, já comentado tantas vezes neste Blog.
Seria impositivo e mal recebido se o American Board of Internal Medicine iniciasse uma campanha contra condutas normalmente adotadas por especialidades médicas. Desta forma, ao invés de criticar os especialistas, a responsabilidade da auto-crítica foi dada a eles. Assim, foi solicitado às especialidades que apontassem condutas médicas correntes que não deveriam estar sendo adotadas. Isto obrigou os próprios especialistas a refletirem e contra-indicarem suas próprias condutas fúteis.
Outro aspecto enfatizado pelos organizadores é que as recomendações do Choosing Wisely não têm o intuito primário de economizar recursos, mais sim de melhorar a qualidade da assistência , que deve ser embasada em evidências, aumentando a probabilidade de benefício e reduzindo o risco de malefício à saúde dos indivíduos.
Além disso, considerando nosso momento atual, vale também salientar que esta não é uma iniciativa governamental nestes países, pelo contrário, é iniciativa da própria sociedade médica.
O Choosing Wisely recomenda o que não devemos fazer. Traz um paradigma interessante, pois normalmente somos treinados a discutir o que devemos fazer. Os guidelines falam muito mais no que devemos fazer, do que não devemos fazer. E as recomendação do não fazer (recomendação grau III) normalmente se limitam a condutas comprovadamente deletérias. No entanto, além da prova do dano, há outras razões para não adotarmos condutas. Ou colocado de outra forma, não significa que temos que fazer algo só porque não é deletério.
O ônus da prova está no desempenho (eficácia) e utilidade (relevância) de uma conduta. Assim, os seguintes motivos podem justifica que não se adote certas condutas:
1) Terapia prejudicial - isso é óbvio, portanto não é o foco principal do Choosing Wisely.
2) Terapia desconhecida quanto à sua eficácia (não há demonstração) - há tantos exemplos de condutas que fogem à plausibilidade extrema, porém são adotadas sistematicamente, baseadas em crenças.
3) Terapia comprovadamente ineficaz, embora segura - isso também se faz, pois muitas vezes ensaios clínicos negativos não são valorizados por irem de encontro a nossas crenças.
4) Testes diagnósticos ou prognósticos aplicados em situações inúteis (fúteis), trazendo resultados potencialmente prejudiciais (overdiagnosis).
O site do Choosing Wisely Norte-Americano traz interessantes recomendações de cada especialidade e deve ser visitados por todos com uma postura reflexiva. Esse é um pensamento de vanguarda, combatendo aquele paradigma que chamamos neste Blog de mentalidade do médico ativo. Algo muito prevalente, porém provavelmente obsoleto em 10-20 anos. Resta cada um saber que caminho escolher: um caminho reflexivo, de vanguarda ou o caminho tradicional e ultrapassado.
Em cardiologia, a companha foi muito feliz ao dizer para “não realizarmos de rotina pesquisa de isquemia miocárdica em indivíduos assintomáticos.” Percebam como (em média) o que os médicos fazem é exatamente ao contrário. Na prática, uma pessoa não pode passar nem perto do consultório cardiológico, que sairá com um pedido de exame não invasivo para pesquisa de doença coronária (teste ergométrico mais comumente, porém cintilografia miocárdica muito frequentemente e a tomografia de coronária surgindo como um método acurado e potencialmente útil, porém com risco de ser usado para promover o overdiagnosis). Por fim, o Choosing Wisely diz, "por favor, não pesquisem doença coronária no pré-operatório de cirurgia de baixo risco." Coisa de gente inteligente.
Gostamos também da recomendação de ortopedistas de não prescrever condroitina ou glucosamina (Condroflex) para tratamento de artrite de joelho. Exatamente, aquele remédio que tantos pacientes afirmam ter reduzido sua dor de joelho, porém sabemos que tudo se deve ao efeito placebo, muito bem demonstrado por um grande ensaio clínico randomizado publicado no NEJM. E ainda tem aqueles que dizem que se a dor melhora, não importa ser placebo. Mas será que devemos, de rotina, propor uma medicina baseada em fantasia? Onde podemos parar?
Certa feita, um dos líderes do Choosing Wisely nos Estados Unidos comparou essa iniciativa ao filme de Indiana Jones, onde o herói procura o Santo Graal. Na cena final, há vários cálices e apenas uma chance de escolher o cálice correto, aquele que seria o Santo Graal. O guardião dos cálices avisa aos personagens: Choose Wisely. O primeiro a escolher, de forma óbvia, escolhe o cálice mais bonito e precioso. Mas como sabemos, em ciência, nem sempre o plausível é o verdadeiro. Aquele não era o Santo Graal e o vilão se dá mal, sendo transformado em caveira. Por outro lado, Indiana Jones é um cientista, e usa sua mente científica para fazer a escolha mais sábia. Ele escolhe o cálice mais simples, mais condizente com os valores de Jesus Cristo. E acerta, conseguindo a conquista do Santo Graal.
Como médicos, precisamos pensar sabiamente. Usar recursos sem comprovação científica ou de forma exagerada nos aproxima do vilão do filme e distancia de Indiana Jones, o nosso herói. Ser herói não é usar da mentalidade ativa, indicar procedimentos, exames, tratamentos fúteis ou incertos. Ser herói é saber quando não fazer as coisas, assumir nossas incertezas, alternando com momentos de postura mais ativa.
* Texto escrito em colaboração de Luis Correia e Guilherme Barcellos
* Texto escrito em colaboração de Luis Correia e Guilherme Barcellos
Ótimo post !
ResponderExcluirUma pesquisa que realizamos sobre o uso apropriado do teste ergométrico aqui na região do vale do São Francisco (Juazeiro, BA), encontramos uma alarmante prevalência de 78% de indicações inapropriadas. O que pode parecer uma realidade local, no entanto números semelhantes também existem em outros centros.
Amparar as condutas nas melhores evidências infelizmente ainda não é a rotina e esta campanha junto às especialidades alerta para o apego existente no consumo desenfreado de condutas e terapêuticas desnecessárias. Até mesmo publicação não científica, destinadas a população em geral, já vem questionando a necessidade do “check-up” cardiológico. Em minha prática realizo teste ergométrico e de fato, com indicações apropriadas até poderia ser muito mais rentável fazer menos exames, sendo estes melhor remunerados.
Excelente publicação. Concordo integralmente com este paradigma e já estava trabalhando pedagogicamente com esta lógica sem ter sido apresentado ao movimento deflagrado pela ABIM. Parabéns ao autor e as sociedades médicas brasileiras envolvidas.
ResponderExcluirLer o blog é muito viciante... Parabéns professor Luis!
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