Canais de Luis Correia

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Papai Noel Baseado em Evidências


Papai Noel existe? Essa é uma pergunta comum nesta época do ano. Considerando que este Blog se propõe a discutir a veracidade dos fatos sob o paradigma científico, precisamos abordar esta importante questão, a qual impactará na vida de milhares de famílias nas próximas horas. 

Partimos inicialmente do Princípio da Hipótese Nula, o qual afirma que todo fenômeno é inexistente até que se prove o contrário (prova científica). Esta é a justificativa para eventualmente nos questionarmos sobre a existência de Papai Noel. Ou seja, duvidar faz parte do pensamento científico. Mas não podemos parar por aqui, temos que evoluir nosso pensamento. 

Devemos evoluir e nos perguntar se a presente questão se adequa ao Princípio da Plausibilidade Extrema. Este princípio se aplica a situações de exceção, onde o fenômeno é tão plausível, que dispensamos comprovação científica. Por exemplo, na prática clínica ter uma boa relação médico-paciente, saber ouvir e conversar com nosso cliente, representa uma habilidade que deve ser utilizada, mesmo sem um ensaio clínico randomizado demonstrando que a boa relação é benéfica. É extremamente plausível que um médico atencioso faz bem ao seu paciente e por isso aplicamos (ou devemos aplicar) essa abordagem mesmo na ausência de evidência científica.

A existência de Papai Noel é extremamente plausível. Isto porque esta existência só se materializa se formos capazes de acreditar. Se acreditarmos, Papai Noel existirá, se não acreditarmos, ele desaparecerá (ou não aparecerá). É um perfeito exemplo do Princípio da Plausibilidade Extrema, que deve ser aplicado apenas a situações especiais, onde dispensamos a necessidade de demonstração e ficamos como a verdade, simplesmente porque aquela verdade é indubitável. 

Há também plausibilidade extrema do benefício em se acreditar em Papai Noel. Óbvio que esta crença faz bem para a alma, portanto devemos nutri-la. E não faz bem apenas para crianças, para adultos também.  Nós todos devemos acreditar em Papai Noel.

É tão plausível que ao imaginarmos um ensaio clínico randomizado para provar esta questão, percebemos que o resultado deste seria previsível. Imaginem que vamos randomizar famílias, metade para acreditar em Papai Noel e metade para não acreditar. É óbvio que nas famílias que acreditarem, as árvores acordarão repletas de presentes, enquanto nas famílias randomizadas para não acreditar, as árvores estarão vazias, se é que nestas casas haveria árvores de natal. É tão óbvio que seria anti-ético fazer esse estudo. 

Poderíamos então fazer um estudo observacional. Observem como o Natal de famílias crentes em Papai Noel é mais mágico do que o Natal de famílias descrentes.

Percebam que todo esse pensamento é baseado em uma seqüência lógica que respeita dos princípios da medicina baseada em evidências. Mas para aqueles que ainda permanecem com o Princípio da Hipótese Nula a despeito de meus argumentos, vamos fazer um teste: amanhã, ao acordar, se houver presentes na árvore, estará provado que Papai Noel passou em sua casa.

Na verdade, todo mundo acredita em Papai Noel, mesmo aqueles que fingem não acreditar.

Feliz Natal a todos.

* Esta é a postagem mais embasada em evidência de todas já escritas neste Blog.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Zika e Microcefalia: Fato ou Ficção Científica?

Diferentemente do que o título expressa, este texto não é primariamente sobre Zika, nem sobre microcefalia. Falarei todo o tempo sobre isso, mas o verdadeiro assunto é outro, mais genérico. O tema desta postagem é sobre miopia científica ou arrogância epistêmica. Estes, sim, seriam títulos mais representativos da ideia.

O crescimento no Brasil da incidência de Zika e aparentemente de microcefalia constituem uma interessante história de geração de hipótese: Zika causa microcefalia. Se bem aproveitada, dará bons frutos científicos. Por outro lado, a forma como esta hipótese científica foi transformada em fato nas publicações da imprensa leiga, respaldadas por especialistas, ganhou ares de ficção científica. 

Ficção científica um termo pertinente e paradoxal. Paradoxal, pois o que é ciência não é ficção; pertinente pois este paradoxo é bastante prevalente.

Este representa um caso caricatural da violação do princípio científico da hipótese nula. São casos como estes que Nassim Taleb, cientista da incerteza na Universidade de Massachussets, denomina de arrogância epistêmica. Este é um fenômeno comum da mente humana que, por questões evolutivas, tende a subestimar a incerteza presente em hipóteses.

Isto fica mais evidente quando percebemos que, ao longo das últimas semanas, a força de convicção das afirmações a favor da relação causal entre Zika e microcefalia cresceu exponencialmente, a despeito da ausência de evidências reais. É o fenômeno da manada, quanto mais se fala mais a história ganha ares de fato, sem que haja qualquer associação entre o crescimento da convicção e o aumento do nível de evidência.

São inúmeras as reportagens impressas e televisivas. Não coloco jornalistas como meros criadores de fatos, pois estes acompanham afirmações de profissionais que tem (suposta) autoridade para falar no assunto.

Um médico no Fantástico recomendou às mulheres de 30 anos (que teoricamente possuem mais tempo) a não engravidar, enquanto as de 40 anos fazê-lo, desde que cuidadosamente. Em paralelo, a Revista Veja diz: “A relação entre Zika e microcefalia fetal está 100% comprovada”. E justifica sua afirmação: “O Ministério da Saúde confirmou o fato após detectar o vírus em um bebê com microcefalia que foi a óbito”.

Há também aqueles que reconhecem a necessidade de comprovação definitiva, porém falam com a conotação de fato. Dizem que “tudo indica”, ao passo em que recomendam “medidas de prevenção” (são medidas mesmo?). Estes aparentam preservar o princípio da hipótese nula, porém fazem o contrário. Utilizam deste princípio para gerar uma aparência cientifica de mais credibilidade, sem perceber que já rejeitaram a hipótese nula quando fazem o mundo se comportar como se a causalidade estivesse estabelecida.

Precisamos refletir quais os danos versus as vantagens da rejeição precipitada da hipótese nula. Por que será que, em geral, o pensamento científico considera que o erro tipo I (afirmar algo falso - toleramos 5% deste erro) é cientificamente mais grave do que o erro tipo II (não afirmar algo verdadeiro - toleramos um risco de 20% deste erro). Esta é uma válida reflexão para este momento.

Considerando que o adequado combate à Zika deve ocorrer independentemente da criação de fatos pseudo-científicos, precisamos refletir se esta miopia científica traz (individual e culturalmente) mais benefícios ou prejuízos. A miopia científica fica evidente quando observamos a grande lacuna entre o pensamento humano cotidiano e a forma científica de raciocinar.

De fato, alguns acham que ciência é uma coisa, vida prática é outra. Em artigo na Folha de São Paulo, após afirmar que “não tenho dúvida do elo entre Zika e Microcefalia”, o diretor da OPAS diz: “alguns cientistas acreditam que é preciso mais provas, mas como profissional de saúde não tenho dúvida”. Observem que a frase propõe uma lacuna entre ciência e vida prática. Isto mostra que alguns não entendem bem que ciência nada mais é do que a forma mais honesta de retratar a natureza. Digo honesta, pois o método científico não serve para criar conhecimento. Serve para descrever o mundo, prevenindo-se contra fenômenos cientificamente reconhecidos: vieses cognitivos, vieses de observação e efeito do acaso.

Nosso problema é que, na história da humanidade, só muito recentemente o pensar científico contribui para nossa sobrevivência individual. Mas quanto à sobrevivência da espécie, ainda não deu tempo do pensar contribuir suficientemente. A nossa seleção natural se deu não pela capacidade de pensar, mas pela capacidade de correr. Talvez os que pensaram morreram mais (pois corriam menos). Por este motivo, ser cético e questionador não é nosso estado natural, precisamos nos condicionar ao paradigma científico.

Karl Popper, o maior filósofo científico do século passado, propôs que a comprovação de uma hipótese deve passar pelo processo de tentar refutá-la. Devemos começar acreditando na nulidade e mudarmos de ideia quando a evidência a favor do fenômeno ultrapassar um limiar inferior de dúvida.

O caso Zika e microcefalia mostra que ainda não entendemos o que Popper propôs. Ainda não entendemos o papel da hipótese nula. Assim, a miopia científica prevalece, com seus diversos componentes a serem descritos abaixo. 

Miopia da Incerteza

Na miopia da incerteza, não percebemos o quanto incertas são coisas que “fazem sentido”. Somos apaixonadas por nossa lógica, sem perceber que esta serve para dar plausibilidade às hipóteses, não para gerar fatos (exceto na plausibilidade extrema).

Estamos repletos de exemplos em medicina de hipóteses que faziam todo sentido, porém funcionaram ao contrário. São estas mesmas hipóteses que geram reação emocional neste Blog, quando mostramos evidências contrárias a crenças lógicas, porém incertas. Achamos que podemos acreditar, desde que tenhamos alguma forma de explicar.

Faz sentido de que Zika seja a responsável pelo suposto aumento de microcefalia, por três motivos: certos vírus podem alterar a embriogênese do sistema nervoso no primeiro trimestre; Zika está em crescimento; microcefalia está em crescimento. Dadas estas premissas, as pessoas concluem que Zika  causa microcefalia, sem perceberem que fazer sentido não é o mesmo que ser um fato. Os especialistas que fazem afirmações certas ou quasi-certas deste pseudo-fato não percebem o grau de incerteza presente na hipótese.


Miopia de Hipóteses

Este é um viés cognitivo causado pela análise retrospectiva da história dos descobrimentos científicos. Explicarei.

Retrospectivamente, o mundo ganha um aspecto platônico, parecendo que tudo fazia muito sentido antes da comprovação. Mas, este mundo funciona de outra forma. Na verdade, para cada explicação comprovada com base em evidências, existiram inúmeras hipóteses, e nem sempre a que parecia mais lógica foi a que venceu. As hipóteses que perderam ganham o status de silenciosas, não nos lembraremos delas, ficando apenas a hipótese vencedora como parte da narração da história. Assim, parece que um descobrimento foi feito por uma hipótese gerada, testada e comprovada. Um mundo platônico, uni-hipotético.

Na verdade, para cada descoberta, há inúmeras hipóteses que perderam, dentre as quais usualmente está a mais provável das hipóteses. E normalmente, a hipótese favorita tem menor probabilidade de perder do que de ganhar. Ser a mais provável, não quer dizer ser muito provável.

Modelos estatísticos multifatoriais previam que a seleção brasileira era a favorita para ganhar a copa do mundo de 2014, porém a probabilidade calculada era menor que 50%. Embora fosse a favorita, era mais provável que perdesse. Simplesmente porque haviam muitas hipóteses (seleções) concorrendo.

Esta falta de entendimento faz com que as pessoas superestimem a probabilidade da Zika ser a explicação, a ponto de julgar isso como algo confirmado ou fortemente sugestivo.

Observem o vencedor de uma maratona olímpica. Diferente dos 100 metros rasos, este tipo de prova tem o resultado influenciado por um processo mais complexo. É quase imprevisível saber quem vai ganhar, na realidade todos tem quase a mesma probabilidade. Por outro lado, depois do término da corrida, o vencedor ganha o título de ser o melhor e passa a fazer muito sentido ele ter sido o vencedor. Encontramos sempre explicações, talento, treinamento, etc. Depois do resultado, nossa mente superestima a probabilidade prévia daquele resultado. A isso se chama falácia narrativa, quando qualquer evento importante ganha uma explicação óbvia depois de ocorrido.

Pessoalmente, se fosse para apostar, eu colocaria meu dinheiro na Zika. Mas não colocaria muito dinheiro, pois mesmo sendo a escolhida como mais provável, a probabilidade de Zika ganhar é pequena.

Ser a mais provável, não quer dizer ser muito provável.

Miopia Epidemiológica

Esta é caracterizada por confundirmos os conceitos básicos de coexistência e associação.

O termo “associação” (ou relação) é o mais utilizado nas notícias sobre zika e microcefalia. No entanto, tem sido utilizado de forma equivocada e rudimentar. Inúmeros especialistas e jornalistas mencionam associação, porém na verdade este exemplo é de coexistência. Até então não presenciei qualquer relato sobre associação, nem mesmo uma menção de curiosidade a respeito.

“Uma mãe cujo filho nasceu com microcefalia pode ter tido Zika no primeiro trimestre”. Ou: “identificaram o vírus em dois casos que nasceram com microcefalia”. Isso não é associação, pois falta o outro lado da história, a evidência silenciosa. O lado silencioso da história são os casos de normocefalia com história de Zika e os casos de microcefalia sem história de Zika.

Qual a proporção de Zika na gravidez de casos de microcefalia, comparada à proporção de Zika na gravidez de crianças que nasceram normais? Se não há dados ainda, deste que seria um estudo caso-controle, pelo menos olhemos a nossa volta e perceberemos que devem ser muitos os casos de normocefalia que tiveram Zika. Precisamos valorizar mais a dúvida.

É total miopia epidemiológica falar em associação. Mas mesmo se a associação fosse comprovada, esta seria apenas o primeiro passo na demonstração de causalidade. Há muitas associações verdadeiras, porém não causais. Observem a associação abaixo descrita, publicada no New England Journal of Medicine. Será que é causal?




Outros falam em associação temporal. É mais uma miopia epidemiológica, pois sabemos que associação temporal é uma grande falácia. Coisas podem crescer ou decrescer juntas, sem que haja qualquer relação causal. Ao longo do tempo uma criança fica maior em altura e ao mesmo tempo sua habilidade de leitura aumenta. Isso quer dizer que quanto mais alta uma pessoa, maior a habilidade com línguas?


O livro Spurious Correlation nos traz interessantes exemplos da falácia da associação temporal.





Portanto, não podemos falar em associação, quanto mais em causalidade. Ainda estamos muito longe do que poderia ser considerado algo provável. Ainda estamos muito longe do limite de rejeição da hipótese nula. Muito longe do que poderia ser considerado algo provável.

Miopia Estatística

Essa é a mais banal das miopias, a qual decorre da falta de percepção de que precisamos de um denominador para quantificar o risco dos desfechos. Este denominador não tem sido apresentado nos depoimentos dos médicos ou reportagens da imprensa.

Fala-se em um crescimento grande do número de registros de microcefalia, de 30 casos para 1.200 casos em 3 meses. Isto é bastante assustador e o número que passa dos milhares traz a conotação de um grande risco. As grávidas entram em pânico quando se fala em 1.200 casos. No entanto, risco é uma probabilidade, advinda do total de desfechos dividido pelo total de pessoas vulneráveis ao desfecho. Desta forma, dividindo-se 1.200 pelo número médio de nascidos-vivos em um período de 3 meses (em torno de 600.000), chegamos a um risco de 0.19% de uma criança nascer com microcefalia nestes últimos meses, dada todas as possíveis causas, não apenas Zika. Se considerarmos o  cenário otimista de que metade destes casos decorrem de Zika, diremos que 0.095% é o risco de microcefalia por Zika. Isto justifica pânico?

A miopia estatística (básica) faz com que médicos recomendem no Fantástico que mulheres deixem de engravidar. Estes se esquecem que o conjunto de outras possíveis infecções que causam sequelas em bebês ultrapassa em muito o risco de microcefalia por Zika, se este risco for verdadeiro. Segundo meus consultores obstétricos: citomegalovírus 2.6% de incidência de infecção, toxoplasmose 1.6%, sífilis 0.5%, herpes 0.2%, só para falar alguns. E 40-50% dos fetos afetados por estas infecções apresentam sequelas.

Por que só agora recomendamos não engravidar? Ou colocado de outra forma: o número (com denominador) justifica o pânico?

O que Kant diria?

Percepção = sentidos + inconsciente.

Segundo Kant, a interpretação que damos ao que vemos é involuntária e incontrolavelmente influenciada pelo inconsciente. Sua filosofia foi mais tarde confirmada por psicólogos cognitivos. Na postagem Ensaio sobre a Cegueira, discutimos como seria importante que a interpretação de métodos de imagem ou do exame físico fosse cega em relação à probabilidade pré-teste, ou seja, ao quadro clínico ou epidemiológico.

Ao se deparar com a atual epidemia de microcefalia, Kant se perguntaria se o aumento do número de casos poderia decorrer de um problema de percepção influenciado pelo cognitivo de pessoas já influenciadas pelo modismo.

Talvez esse raciocínio pareça demasiadamente cético quando sugerimos a não existência do problema. Por outro lado, este mesmo raciocínio se torna demasiadamente plausível quando pensamos na possibilidade de superestimativa do problema.

Não há dúvida que a mente dos diagnosticadores de microcefalia está enviesada involuntariamente pelo modismo, o que implica em uma noção de probabilidade pré-teste aumentada. Para agravar, encontramos o conforto cognitivo, que se apresenta quando se torna mais confortável laudar de acordo com o mundo externo do que de forma independente. Isto faz com que médicos prefiram ampliar sua sensibilidade, em detrimento da especificidade. Isto pode gerar uma banalização dos diagnósticos.

Como cardiologista, sei o quanto pode ser subjetivo laudar uma disfunção sistólica do ventrículo esquerdo ou calcular uma fração de ejeção, número mágico para quem não passa pelo processo de quantificação. Porém nada entendo de obstetrícia ou ultrassom obstétrico. Por isso, perguntei a especialistas de mente científica e a resposta foi semelhante ao que vivencio na ecocardiografia. Há subjetividade em muitos casos. Na dúvida, de que forma se comportam os diagnosticadores neste momento particular de modismo? E como se comportavam antes?

Pouco se falava do problema, portanto a sensibilidade dos médicos não estava voltada para isso. Hoje, a principal ideia que está na mente de um ultrassonografista (e da coitada da grávida) antes do exame é se há sinais de microcefalia.

No sistema público de saúde, provavelmente menos grávidas faziam ultrassom. Hoje vemos mutirões  de ultrassom. E os médicos que fazem os exames estão muito mais atentos. Isso tudo indica que é muito plausível acreditar que no passado havia subnotificação.

Desta forma, há plausível subnotificação do passado e supernotificação do presente. Quantitativamente, parte do problema é criada por isso. Pelo menos parte do problema.

Reflexões Finais

Até o momento, tivemos acesso a apenas relatos de coexistência Zika-microcefalia publicados pela imprensa leiga, que desconsideram o lado silencioso das evidências. Ainda não dispomos de publicações em revistas científicas, aquelas que seguem um rigor na descrição dos métodos e resultados da pesquisa, passando pelo crivo da revisão por pares.

Tais artigos surgirão em revistas científicas. Como todo estudo, estes deverão passar pelo crivo da análise do nível de evidências. Mas, devemos estar atentos para a particularidade maior desta questão cientifica: a hipótese nula foi precipitadamente rejeitada, abrindo guarda aos vieses de confirmação e publicação.

Nassim Taleb aborda bem o problema dos especialistas em seu livro A Lógica do Cisne Negro. Especialistas de atividades que lidam com incerteza sofrem do problema da auto-ilusão. É por este motivo que comentaristas políticos erram muito mais do que modelos estatísticos de previsão de eleições. A arrogância epistêmica obstrui a habilidade preditiva de especialistas e suas ideias se tornam pegajosas. Depois de criadas, fica pouco provável de mudar. É o fenômeno de perseverança da crença, quando as ideias são tratadas como propriedades pessoais, da qual não queremos nos desfazer. É quando muitos convictos pesquisadores tendem a procurar confirmação de suas ideias a todo custo, vibrando quanto encontram resultados positivos, mesmo que à custa de P-value hacking, problema das múltiplas comparações ou vies de publicação.

Entre a ausência de evidencias sobre uma questão (estado atual) e a resposta definitiva, normalmente existe uma lacuna repleta de estudos pequenos, de qualidade mediana, cuja divulgação é regida pelo viés de publicação de evidências positivas. Isto estenderá o obscurantismo científico, até que em algum momento saberemos a verdade.

No mundo em que a hipótese nula foi violada, é indispensável que os diagnósticos Zika e microcefalia sejam feitos de forma cega e independente. Resultados definitivos virão de estudos prospectivamente desenhados, com hipóteses e desfechos primários definidos a priori.

Enquanto isso, grávidas devem evitar se expor a qualquer tipo de doença infecciosa e outros agentes sabidamente teratogênicos como sempre fizeram. Devem também evitar um demasiado envolvimento com recomendações caricaturais contra Zika. E devem estar cientes de que não há razão probabilística (risco absoluto) para que o pânico roube a tranquilidade de suas gestações.

Se Zika é responsável pelo crescimento dos casos de microcefalia, por enquanto não sabemos.

Mas a pergunta primordial desta postagem é outra: sabemos distinguir entre fato e ficção?


* Texto escrito por Luis Correia e Denise Matias, com colaboração intelectual dos obstetras Allan Silva e Leomar Lyrio.

domingo, 22 de novembro de 2015

O Platonismo dos Conselhos



Nesta semana, um de meus sobrinhos se forma em medicina. Na mesma semana, um de meus alunos se forma em medicina. 

Pergunto-me que conselhos os mais “experientes” devem dar aos jovens que ingressam nessa “nobre profissão”. Pois, já tendo passado pelo futuro dos mais jovens, temos a tendência de dar conselhos em momentos como este.

Mas conselhos nada mais são do que uma forma de reciclar nossas experiências prévias, empacotando-as em regras platônicas. Na verdade, a prática de aconselhar é anti-científica, pois se presta a predizer desfechos com base em experiências e dados limitados. Conselhos não percebem as evidências silenciosas, aquelas esquecidas pelos nossos vieses de confirmação.

Na verdade, o único conselho certo é “duvide de conselhos”, pois estes contém a presunção de um conhecimento irreal. 

Conselhos desvalorizam a incerteza, fator mais excitante na vida de um jovem. Saber valorizar as incertezas é o maior dom do “jovem de futuro”. Verdadeiros descobridores e empreendedores contam menos com um planejamento estruturado, focam no máximo de experimentação e reconhecem oportunidades quando o acaso lhes apresenta.Tudo isso com uma forte visão de futuro.

Devemos valorizar as incertezas, perceber a poesia do imprevisível, pois são os fatos não previstos que modificam o mundo e constroem a história. 

Há 7 anos, usei um raciocínio pragmático em forma de conselho, questionando o sonho de meu sobrinho em fazer medicina. Ele deveria “concluir o curso de engenharia”. Foi um conselho que deve ter provocado uma reação contrária muito positiva da parte dele. Ele deve ter se motivado a provar que eu estava errado. Ainda bem … provou …

Ao invés de aceitar conselhos, vocês devem refletir a respeito de suas incertezas. E que estas reflexões venham em forma de incentivo à prática de olhar para dentro de si, identificando seus verdadeiros valores, adaptando sua visão a estes valores. 

Nestes momentos de formatura de medicina, costumamos ouvir que "medicina é uma nobre profissão.” Confesso que não vejo muito sentido nisso. Toda profissão é nobre e não há uma mais nobre do que outra. 

Na verdade, nobre é a pessoa e não a profissão.

Ser nobre é ser autêntico. Assumir seus valores e utilizá-los da forma mais adequada. 

Dizem que o médico deve ser humano. Também não consigo entender isso, somos todos humanos.

Se seu perfil não for aquele acolhedor, sem problema: escolha uma área na medicina que não necessite desta característica pessoal. Valorize seu perfil. Se por outro lado, tiver um perfil acolhedor, não se deixe corromper, seja sempre um médico de almas. 

Assim, não ouça o conselho de ser “humanizado"; seja apenas como você é, assuma seu perfil, identifique a função de acordo com sua "anatomia". Anatomia e função devem estar coerentes. 

Não se sintam nobres simplesmente por serem médicos. Construam sua nobreza pela sua coerência entre seus valores e a missão escolhida. 

E lá vou eu caindo no platonismo de aconselhar. Mas já que comecei, vou em frente. 

Sejam científicos. Que conselho óbvio, quanto mais vindo de um professor de medicina baseada em evidências. Só que aqui não me refiro ao óbvio, me refiro à verdadeira essência da ciência.

Ser científico é ser humilde. É evitar o dogmatismo.

Equivocadamente, o pensamento médico tradicional é baseado na procura da certeza. Os processos de decisão se sustentam na tentativa de controle dos desfechos. Ao contrário, o processo de decisão deveria ser focado na valorização das incertezas, no reconhecimento do imponderável, no uso de probabilidade. 

Em uma palestra recente, Leo Clement (também ex-aluno) descreveu uma ideia que, segundo ele, eu o teria ensinado. Na verdade, eu que aprendi com a clareza do pensamento de Leo: "ter razão não é o mesmo que estar correto.” 

Procuramos a decisão médica correta, porém esta não existe no paciente individual. Podemos indicar uma tratamento adequado, porém o desfecho promovido pela nossa conduta pode vir a ser indesejado. O mundo é muito mais aleatório do que nossas explicações de causa-efeito. Então, devemos procurar "ter razão" em nossas condutas, porém não cair na ilusão de que uma conduta racional será sempre a que promoverá o melhor desfecho. Não temos controle sobre o "estar correto". Devemos focar na razão (científica).

Marcos Cunha e Felipe Ferreira, meu sobrinho e meu aluno, me inspiraram a escrever este texto que ofereço a todos os outros alunos que se formaram nos anos anteriores e que faltei em dar-lhes o melhor conselho: não ouça conselhos, ouça seu coração. 

Boa sorte (acaso). 


Continuem me inspirando.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Fosfoetanolamina para Tratamento de Câncer: a culpa foi do juiz?


Em setembro deste ano, o mais novo ministro do Supremo, Edson Fachin, decidiu pela liberação do uso da fosfoetanolamina para tratamento de câncer. Qualquer câncer. 

Isto gerou uma reação contrária por parte da comunidade médica, que se viu surpresa com a liberação de um “tratamento” sem a devida comprovação científica de eficácia. Dráuzio Varella afirmou no Fantástico que "esta conduta não se faz nem em veterinária", se referindo ao uso de tratamentos antes de testes clínicos adequados no animal em questão.

Para mim, a verdadeira surpresa foi a indignação da comunidade médica. 

Fico a me perguntar em que mundo vivem os que se viram surpresos com a decisão do juiz. Digo isso pois o mundo real é repleto de condutas indicadas por profissionais de saúde, a despeito da falta de embasamento científico. Agimos frequentemente de forma não profissional, quando utilizamos argumentos pseudocientíficos para justificar nossas condutas. 

Alguns são os contextos em que condutas são adotadas sem base científica sólida: há aquelas avaliadas por estudos iniciais, com resultados favoráveis, porém não definitivos; há condutas não testadas, porém adotadas como eficazes devido a argumentos mecanicistas, tipo plausibilidade biológica; e no outro extremo, há terapias correntes cujos trabalhos de boa qualidade mostram que não são eficazes.

Há algumas situações de plausibilidade extrema em que não necessitamos de comprovação científica. São aquelas óbvias. É o caso de administrar glicose em um indivíduo com hipoglicemia sintomática; ou o caso de utilizar um device denominado paraquedas quando precisamos pular de um avião em pleno vôo. 

Excluindo situações extremas, os potenciais prejuízos da precipitação em adotar condutas sem base científica são provavelmente maiores do que potenciais benefícios. Até mesmo porque (como já comentado neste blog) a magnitude do benefício de condutas eficazes tende a ser quantitativamente modesta. Os potenciais prejuízos são de diversas ordens: efeitos adversos, sofrimento desnecessário, custo desnecessário, enraizamento de paradigmas incorretos, aculturação científica. Portanto, os médicos estão corretos em criticar a decisão do novo juiz. 

Por outro lado, soa estranho criticar a liminar do juiz do Supremo (que não possui o conhecimento técnico), quando os críticos (que possuem conhecimento técnico) cometem frequentemente o mesmo erro quando a decisão está em suas mãos. 

Apenas como exemplo, vivemos em um país cujo Conselho Federal de Medicina e a Associação Médica Brasileira reconhecem a homeopatia como especialidade médica. Paradoxalmente, as evidências científicas de qualidade são consistentes em demonstrar que o efeito da homeopatia não supera a eficácia do placebo. Esta informação está presente em revisões sistemáticas de boa qualidade. Devemos sempre lembrar que há evidências para todo tipo de resultado. Neste contexto, separando o joio do trigo, os trabalhos com baixo risco de viés são consistentes em negar a eficácia da homeopatia.

É sempre bom lembrar que ciência nada mais é do que uma forma de observar a natureza, prevenindo-se contra dois tipo de erros de observação: viés e acaso. A forma de prevenção é o método científico. Portanto, tudo que está na natureza é melhor observado sob a lente do método científico. Ciência não artificial, pelo contrário, ciência nos aproxima do natural.

Talvez homeopatia mereça um reconhecimento como um tipo de intervenção baseada em fé. Ter crenças é coisa comum da raça humana e às vezes faz bem. Porém isso não é a mesma coisa que medicina, isso é diferente de especialidade médica. Eticamente, ao receber tal prescrição, um cliente deveria ser informado de que os trabalhos de qualidade indicam que o efeito decorrente da homeopatia é equivalente ao placebo. 

Diferente de nosso país, o parlamento inglês baniu homeopatia do sistema público de saúde, proibindo também que qualquer verba pública fosse utilizada para financiar pesquisa com homeopatia. O parlamento inglês fez sua própria revisão sistemática, publicada em seu site. E concluiu que já está comprovado: homeopatia não funciona além do efeito placebo. E isso não é surpresa, pois não há nenhuma molécula ativa na solução administrada, visto que esta foi diluída milhões de vezes.

A Organização Mundial de Saúde, após provocada, publicou um documento em 2009, afirmando que homeopatia não é eficaz para HIV, tuberculose, malária, diarréia e gripe.  

Mas o problema não acontece apenas com tratamentos alternativos. Mais comum ainda são violações que utilizam condutas mais tradicionais, mais plausíveis, porém sem comprovação definitiva. Na década de 90, nós cardiologistas propomos o uso da terapia de reposição hormonal como forma de reduzir o risco de infarto. Havia trabalhos científicos sugerindo este efeito, porém ainda não eram trabalhos com metodologia científica adequada. Anos depois, no início da década de 2000, o grande ensaio clínico randomizado WHI negou este efeito protetor. E pior, mostrou pequeno aumento do risco de infarto com o tratamento. Constrangimento desnecessário, poderíamos ter esperado as evidências.

Veja o caso da Sibutramina para redução de peso. Depois de anos de uso da droga, ensaio clínico desenhado para testar a eficácia desta intervenção na redução de eventos cardiovasculares demonstrou ausência de benefício. Havíamos utilizado uma droga que tem reconhecidos efeitos adversos (não proibitivos, se houvesse um benefício concreto), sem um grande motivo. Nem para perder peso a droga faz tanta diferença, pois em média a perda de peso foi apenas 2.4 Kg maior do que no grupo placebo (dieta). No entanto, ficam aí alguns endocrinologistas esperneando contra a ANVISA que restringiu (dificultou) a prescrição da droga. Na verdade, nem precisaria restringir se os médicos não tivessem a mania de supervalorizar benefícios tênues e computassem o verdadeiro tipo e magnitude do benefício ao raciocinar clinicamente. 

O mesmo Fantástico que critica (com razão) a liberação da fosfoetanolamina, faz uma campanha de várias semanas, reforçando a estratégia de rastreamento do câncer de mama com mamografia, como se esta fosse uma panacéia. Rastreamento significa utilização em toda população de uma certa faixa etária. Paradoxalmente, a tendência das evidências científicas de qualidade vai no sentido contrário desta conduta. O mais recente estudo , um ensaio clínico em que 90.000 canadenses foram randomizadas para rastreamento anual com mamografia versus controle, demonstrou mortalidade idêntica nos dois grupos. Em 2013, a Cochrane publicou uma revisão sistemática de 7 ensaios clínicos. Os 3 ensaios clínicos de randomização adequada não mostraram redução de mortalidade por câncer de mama, ao passo que os 4 ensaios clínicos de randomização inadequada sugeriram o benefício. 

Mesmo que haja redução de mortalidade, as estatísticas tendem ao problema do overdiagnosis, quando a probabilidade de prejuízo advinda do diagnóstico é maior do que a probabilidade de benefício.  Se o benefício existisse, seria de no máximo 1 vida salva a cada 1.000 mulheres rastreadas por 10 anos. Em contrapartida, o rastreamento causaria 500 biópsias desnecessárias e, pasmem, 10 tratamentos (mastectomia, radioterapia, quimioterapia, com suas complicações e sequelas) desnecessários, em cânceres que nunca vingariam como tal. 

A campanha do Fantástico a favor da mamografia e o Outubro Rosa do mês passado são simplórios quando não trazem esta discussão como prioritária.

Causou surpresa o que acabo de escrever? Claro que sim, pois o senso comum vai no sentido do benefício do diagnóstico precoce. A questão é que o senso comum nem sempre coincide com a verdade científica. Como seria de se esperar, a abordagem do Fantástico sobre mamografia foi baseada em um raciocínio "fantástico" e fantasioso, embora seja senso comum.

Na mesma reportagem do Fantástico sobre o suposto anti-cancerígeno, um oncologista crítico à decisão afirmou: “já tive uns 20 pacientes que utilizaram esta droga e nenhum genuinamente se beneficiou.” Observem o teor anti-científico desta afirmação. Se estes pacientes não foram avaliados mediante um protocolo científico, ele não poderia tirar a conclusão da ausência de benefício. E se esses 20 pacientes tivessem tido uma sobrevida média superior a um hipotético grupo controle? Não estou dizendo que a droga é benéfica. Mas, sem um adequado ensaio clínico, é anti-científico afirmar qualquer coisa (positiva ou negativa) a respeito desta droga. 

Sabemos que não é incomum médicos prescreverem tratamentos questionáveis do ponto de vista de eficácia, efetividade ou eficiência, e orientarem pacientes a conseguir liminares de juízes, para que convênios ou o SUS cubra os custos. 

Há explicações cognitivas para nossa postura não científica, muitas das quais costumamos discutir neste Blog. Nossa mente é naturalmente crente, sendo necessário um certo esforço para assumir uma postura cientificamente cética e fazer uma análise baseada em evidências. 

Evoluímos tomando decisões intuitivas (sistema límbico), pois a decisão rápida nos ajudava a fugir e sobreviver. Portanto temos dificuldade em sobrepor o pensamento intuitivo com o pensamento analítico (cortical). E para piorar as coisas, o pensamento intuitivo muitas vezes se disfarça de pensamento analítico, parece que estamos pensando direito. Requer atenção e treinamento pensar corretamente. 

Portanto é justificável que um juiz se equivoque em sua decisão, muito mais do que um profissional da área médica. Claro que o juiz poderia ter utilizado de consultores técnicos. Mas o trabalho de um juiz também se baseia no que é convencional na sociedade, na cultura vigente. 

Além de criticar a decisão deste juiz, devemos reconhecer nossa responsabilidade como parte deste processo. A sociedade vive o paradigma da medicina baseada em fantasia em parte porque nós, profissionais de saúde, usamos deste paradigma quando adotamos tratamentos não comprovados ou realizamos exames de forma exagerada e inapropriada. 

Portanto, retorno à pergunta inicial: por que tamanha indignação da classe médica com a decisão do juiz? Esta foi uma decisão inusitada? Claro que não, foi a decisão natural. 

Em minha percepção, a indignação vem do fato de que a decisão foi tomada por um juiz, alguém de fora que está nos dizendo como deve ser. O incômodo não foi criado pelo pseudo-científico (esse não incomoda), mas pela perda de autonomia.

Profissionais de saúde devem assumir a responsabilidade de moldar o pensamento da sociedade na direção de uma medicina contemporânea e de vanguarda: embasada no paradigma científico, no benefício ao cliente, na racionalidade das decisões e, por fim, na decisão compartilhada com um cliente que é devidamente informado dos riscos, benefícios e incertezas de nossas recomendações. 

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Curso Medicina Baseada em Evidências 100% Online

Hoje abrimos as inscrições de nosso Segundo Curso de Medicina Baseada em Evidências 100% Online.
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Inscrições ficarão abertas até a próxima sexta-feira (23/10)



sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Como calcular o tamanho amostral ?


Se tivesse que apontar a dificuldade que mais aflige um jovem pesquisador durante um desenho de estudo, lembraria o cálculo do tamanho amostral. É engraçado perceber que durante apresentações de projetos, este é o slide de mais rápida projeção, tornando impossível a compreensão do público quanto às premissas que estavam na mente do pesquisador durante a determinação do tamanho de sua amostra. Na verdade, muitas das vezes, a rapidez do slide demonstra que o pesquisador não quer falar no assunto, limitando-se a passar a impressão de que fez algum cálculo. Frequentemente, peço para voltar o slide e deixar a projeção em silêncio por um minuto. Neste casos, é comum perceber que por trás daquele cálculo existe muita confusão mental. 

Não vejo motivo para tamanha dificuldade, a qual acredito que ocorre mais por falta do ensino simplificado, do que pela complexidade do assunto. Desta forma, esta postagem tem o intuito de clarear nossas ideias a respeito do processo mental do cálculo amostral, apontando os caminhos que nosso pensamento deve percorrer e quais premissas devem ser utilizadas neste processo. 

Para começar, precisamos discutir o porquê da necessidade do dimensionamento da amostra. 

Por que calcular?


Se nossos estudos fossem populacionais, não precisaríamos nos preocupar com número de indivíduos, pois a observação seria de todo o universo de pessoas. Assim ocorre no dia de uma eleição, quando a coleta de dados diz respeito a toda a população adulta, teoricamente. Não existe amostra, nem valor de P, nem intervalo de confiança. Estamos observando a população.

Porém a vasta maioria dos estudos são amostrais, ou seja, avaliam uma pequena parte do universo e extrapolam estes achados para a população. Neste momento, surge o conceito estatístico de imprecisão. É inerente de amostras serem imprecisas, simplesmente pelo fato de que não são a população. Daí vem a simples e óbvia ideia do cálculo amostral: quanto maior a amostra, menos imprecisa, mais próxima do universo. 

Amostras pequenas são mais imprecisas, pois são mais vulneráveis ao acaso. Em amostras pequenas, observações inusitadas e falsas aparecem com mais frequência. O grande problema é que o inusitado chama mais a atenção e, paradoxalmente, este inusitado prevalece sobre a confiabilidade da notícia. Por vezes vemos estudos muito pequenos (hipotermia, beta-bloqueador no pré-operatório) demonstrando grandes efeitos terapêuticos. Estes estudos são aqueles publicados em grandes jornais médicos e que depois são refutados por grandes amostras de estudos subsequentes.

É um erro cognitivo comum valorizarmos a evidência com base em sua importância, sem antes pensar em sua veracidade. 

A imprecisão das amostras é estatisticamente caracterizada pela seguinte simulação mental: se eu repetisse o estudo em várias amostras diferentes, qual seria a variabilidade do resultado? Quando menor forem estas amostras, maior será a variabilidade. Várias amostras pequenas discordam muito mais do que várias amostras grandes. Simplesmente porque o resultado de amostras pequenas sofre muito mais o efeito do aleatório.

Assim as meta-análises avaliam se há viés de publicação. Se estudos pequenos tiverem resultados consistentes (por exemplo, se todos os estudos pequenos apontarem para resultados positivos), há viés de publicação (estudos negativos não estão sendo publicados). Isto porque se espera todos os tipos de resultados, positivos e negativos. Estudos pequenos registram muito mais o acaso do que a verdade. 

Sendo assim, não queremos que nosso estudo seja pequeno. 

Mas o que é pequeno? Para responder a esta pergunta, calculamos o tamanho amostral necessário para que nosso estudo tenha uma precisão razoável em relação ao seu objetivo primordial. Pequeno é um tamanho que não oferece uma precisão razoável. E cada estudo, cada situação, tem sua própria definição de pequeno, que virá do cálculo amostral.

Quanto maior o estudo, mas a observação estará próxima do universo. Quanto menor, mais longe do universo. O ideal portanto, seria a maior amostra possível. Porém a maior amostra possível é o universo, inexequível. Sendo assim, precisamos equilibrar a precisão do estudo com a factibilidade da amostra. Devemos escolher um tamanho amostral que tenha os dois Ps: Possível e ao mesmo tempo razoavelmente Preciso. 


A Ambição de Pesquisador


O gatilho mental inicial para o sintonizar o pensamento no cálculo amostral é se fazer a seguinte pergunta: o objetivo principal do estudo é descritivo ou analítico?

No caso do objetivo descritivo, precisamos de uma amostra que forneça precisão na descrição da variável de interesse. 

No caso do objetivo analítico (aquele que este testa associação entre variáveis), precisamos de uma amostra que forneça poder estatístico para detecção de uma dada associação, se esta existir. 

São dois Ps também:

Descritivo → Precisão
Analítico → Poder

Vamos abordar inicialmente a situação descritiva. Quando descrevemos qualquer parâmetro, devemos reconhecer humildemente a imprecisão de nossa estimativa. Este reconhecimento é definido pelo intervalo de confiança. Calcular o intervalo de confiança é um exercício de humildade.

Se um pesquisador nos disser que a prevalência de uma dada doença é 20% de acordo com sua amostra, devemos sempre lançar a pergunta: o quanto você garante este valor de 20%. A resposta estará no intervalo de confiança. Por exemplo, prevalência de 20%, com intervalo de confiança entre 10% e 30%. Isto quer dizer que a amostra não nos assegura o resultado preciso de 20%, a segurança maior está na afirmação de que o resultado está entre 10% e 30%. É o reconhecimento da incerteza.  

Antes do início do estudo, o pesquisador deve refletir a respeito do nível de incerteza que a questão científica tolera. O nível de incerteza é a amplitude do intervalo de confiança. O exemplo acima representa um intervalo com amplitude de 20% (± 10%), que implica em um determinado tamanho amostral, digamos 70 pacientes. Mas se julgamos esta imprecisão seria intolerável, podemos planejar um maior tamanho amostral. Por exemplo, para uma amplitude de intervalo de confiança de 10%, precisaremos 265 pacientes. 

Desta forma, no estudo descritivo, a amplitude desejada do intervalo de confiança é um dos fatores que determina o tamanho amostral necessário. Percebem que este parâmetro é dependente do pesquisador, que pode moldar sua imprecisão tolerável de acordo com um tamanho amostral factível. Muitas vezes o pesquisador exercita um equilíbrio entre o preciso e o factível.

Este precisão necessária não é definida estatisticamente. É definida pela mente do pesquisador que conhece o problema científico. 

Agora vamos pensar a respeito do objetivo analítico, que pretende testar associações. Em boa parte dos estudos, associação é representada por diferença entre grupos. Portanto, o pesquisador deve  planejar um tamanho amostral que forneça poder para detecção de uma diferença relevante. 

Pequenas coisas necessitam de uma grande lente de aumento para serem percebidas. Associações fracas ou pequenas diferenças entre grupos necessitam de grandes estudos para serem detectadas. Se desejarmos encontrar qualquer associação, precisaríamos de um tamanho amostral infinito, ou na verdade, precisaríamos estudar toda a população. Felizmente, não nos interessa encontrar pequenas associações, pois estas não são relevantes. Desta forma, o pesquisador deve pensar qual o tamanho da diferença que não podemos deixar de detectar. Qual a diferença relevante o suficiente para ter que ser detectada? 

Mais uma vez, este é um parâmetro que depende do pesquisador, ou seja, procura-se um equilíbrio entre uma amostra factível e o tamanho do efeito que fazemos questão de detectar. 

Por exemplo, considerando que a mortalidade no grupo placebo seja 10%, para encontrar uma redução relativa de 20% na mortalidade com uso da droga, precisamos de 6.426 pacientes. Estes pacientes nos darão poder estatístico para detectar a diferença de 10% versus 8% entre os dois grupos (20% de redução). Mas posso julgar que, em se tratando do desfecho morte, não posso deixar passar diferenças menores do que essa. Sendo assim, se a intenção for identificar uma redução relativa de risco de 10%, seriam necessários 26.990 pacientes no total. 

Se nada disso for factível, como faremos? Podemos reduzir nossa ambição para detectar uma redução relativa de 40%, ou seja, de 10% para 6%. Assim, precisaremos de 1.442 pacientes no total. Neste caso, se o estudo for negativo, a ausência de efeito se aplica a reduções de 40% ou mais, não rejeitando a possibilidade de menores reduções. 

Fica claro que o tamanho amostral de um estudo analítico depende do equilíbrio entre a capacidade em detectar associações e o factível. Mais uma vez, é a escolha do pesquisador, em relação ao grau de associação que se faz questão de detectar. 

Vale aqui salientar que “ser capaz de detectar” significa ter um poder de pelo menos 80% em detectar certo grau de associação. Ou seja, se uma dada associação for verdadeira, o estudo teria 80% de probabilidade em detectar. Sim, pois se aceita até 20% de possibilidade do erro tipo II, que seria não detectar uma associação verdadeira. Portanto, um estudo deve ser dimensionado para ter pelo menos 80% de poder na detecção de um certo grau de associação que julgamos ser relevante.

O Comportamento das Variáveis


Além do planejamento do pesquisador, descrito acima, o segundo fator que influencia no tamanho amostral é o comportamento das variáveis no universo.

Desfechos de alta frequência precisam de amostras pequenas para serem precisamente descritos, enquanto desfechos raros necessitam de grandes amostras. Imaginem que eu queira descrever a incidência de um desfecho raro, digamos 0.5%. Em uma amostra de 100 pacientes, poderia não detectar ninguém com viria ter esse desfecho. Já para um desfecho de 30% de incidência, uma amostra de 100 pacientes pode detectar vários casos. 

E se a variável for numérica? Neste caso, o que deve ser considerado é o desvio-padrão que se espera desta variável, pois quanto maior sua variabilidade, mais difícil obter uma descrição precisa. Um parâmetro muito variável, que mudam muito de indivíduo para indivíduo, mudará muito de amostra para amostra, ou seja, terá menor precisão.

O mesmo ocorrerá com objetivos analíticos, ou seja, quanto mais frequente for o desfecho ou quanto menor for o desvio-padrão de uma variável numérica, mais fácil será de detectar uma associação. 

Desta forma, no processo do cálculo amostral, o pesquisador deve ser questionar como a variável se comporta no universo: a frequência de desfechos categóricos ou o desvio-padrão de desfechos numéricos. Pode-se usar sua própria experiência pessoal, estudos pilotos ou estudos da literatura. Claro que pode haver erros nestas premissas. Mas premissas são premissas. Assim, depois do estudo realizado, devemos avaliar se o observado foi muito diferente das premissas. 

Calculando na Prática

Este é um guia básico de como calcular seu tamanho amostral, utilizando uma das melhores calculadoras online, da Universidade da Califórnia em San Francisco.

Estudo Descritivo e Variável Dicotômica

Qual a amplitude do intervalo de confiança desejado (precisão)?
Qual a frequência esperada deste desfecho?

Observem no link que estes número podem ser digitados e a resposta do tamanho amostral virá. Por exemplo, se digitarmos 10% de amplitude (width: W = 0.1) e 20% de frequência (expected proportion: P = 0.2), precisaremos de 265 pacientes. 

Estudo Descritivo e Variável Numérica

Qual a amplitude do intervalo de confiança desejado (precisão)?
Qual o desvio-padrão da variável de interesse?

Por exemplo, se formos descrever o valor do colesterol, para ter 20 mg/dl de amplitude do intervalo de confiança, sabendo que o desvio-padrão do colesterol é 32 mg/dl (olhei isso em algum artigo de estatina na população geral), precisaremos de quantos pacientes?

Se neste link digitarmos 20 (unidades da variável numérica) de amplitude (W = 20) e um desvio-padrão de 32 (S = 32), precisaremos de 39 pacientes. 

Observem que quando trabalhamos com variáveis numéricas, se o desvio-padrão não for muito alto, precisamos de menores tamanhos de amostra do que ocorre habitualmente com variáveis categóricas.


Estudo Analítico e Variável Dicotômica

Qual a diferença relativa que desejamos detectar entre os grupos?
Qual a frequência esperada no grupo controle?

Se queremos encontrar uma redução relativa de 20% no grupo droga, considerando que o esperado no grupo controle é 10%, devemos digitar 10% versus 8%. 

Neste link, digitamos Po = 0.10 e P1 = 0.08. Mantenham os outros parâmetros no default (alfa = 0.05, beta = 0.20). Alfa é o valor de P que consideramos estatisticamente significante (sempre será 0.05) e beta é o erro tipo II aceitável, que não deve passar de 20% (você pode até colocar um número menor, mas o tamanho amostral ficará maior).

Vejam que isto dará 6.426 pacientes (metade em cada grupo) para oferecer um poder de 80% na detecção desta diferença.  

Estudo Analítico e Variável Numérica

Qual a diferença que desejamos detectar entre os grupos?
Qual o desvio-padrão esperado em cada grupo?

Imaginem que desejo encontrar uma diferença de creatinina entre dois grupos, algo que julgue relevante. Penso que 0.5 mg/dl é relevante. E eu tenho uma amostra piloto em que o desvio-padrão da creatinina é 1 mg/dl.

Digitem no link. Para encontrar uma diferença de 0.5 unidades entre os grupos (effect size: E = 0.5), sob a premissa de desvio-padrão de 1 (S = 1), necessitaremos de 126 pacientes. 

Observem que nestes exemplos analíticos, estou apenas comparando variáveis entre dois grupos. Há outros tipos de análise, que compara variáveis entre mais de 2 grupos ou que testam correlação entre variáveis numéricas, que poderão ser abordados em outra oportunidade. 


Em Conclusão


Percebam nem precisamos falar em fórmulas estatísticas, pois o cálculo amostral depende muito mais do pensamento científico do que de uma habilidade estatística complexa. 

Depende do entendimento do pesquisador quanto ao objetivo de sua pesquisa, da distinção entre o descritivo ou analítico, da nossa "ambição" de precisão ou poder, e finalmente da estimativa de como a variável se comporta no universo. 

O cálculo amostral é o maior exemplo de interação entre duas personalidades: a do pesquisador ("ambição") e a de sua variável de interesse (comportamento no universo).