Canais de Luis Correia

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Carboidrato versus Gordura: Estudo PURE, glamour e impureza



É garantido o glamour de um estudo apresentado como destaque no Congresso Europeu de Cardiologia, com autores de renome internacional, envolvendo 135.000 indivíduos, publicado no Lancet. É a mesma garantia de sucesso que tem um blockbuster de Hollywood com autores famosos e orçamento estratosférico. Mas como sabemos, filmes de Hollywood nem sempre são os melhores, assim como estudos glamourosos nem sempre são os que trazem as melhores evidências.  

Este foi um estudo de coorte prospectiva, observacional, de amostra gigantesca, recrutada em 18 países, a maioria deles de baixo-médio nível sócio-econômico. A grande repercussão deste estudo reside no fato de que seu resultado contradiz o que se tem recomendado como dieta preventiva de eventos cardiovasculares (American Heart Association - AHA). Em resumo, houve associação entre dieta rica em carboidrato e maior mortalidade, enquanto dieta rica em gordura foi associada a menor mortalidade.

Há décadas, o AHA recomenda que a base da pirâmide alimentar seja constituída por carboidratos, enquanto o percentual de gordura deve ser < 10% das calorias totais. De fato, deve-se reconhecer que a recomendação do American Heart Association, copiada pela maioria das sociedades de cardiologia do ocidente, nunca foi embasada em evidências científicas de qualidade. Essa recomendação se baseia principalmente na plausibilidade biológica: colesterol é fator de risco para doença cardiovascular, dieta rica em gordura saturada aumenta colesterol, portanto a dieta pobre em gordura prevenirá eventos cardiovasculares. No entanto, não existem dados empíricos comprovando que a plausibilidade da dieta pobre em gordura se confirma como estratégia preventiva. Do ponto de vista epidemiológico, há apenas questionáveis estudos ecológicos e observacionais.

Portanto, é correto levantar a dúvida em relação à recomendação dietética preventiva de eventos cardiovasculares. Por outro lado, não é correto considerar que o estudo PURE tem poder de promover uma mudança de paradigma, como os autores tentam sugerir na frase conclusiva do artigo:

“Global dietary guidelines should be reconsidered in light of the consistency of findings from the present study …”

Na verdade, o estudo PURE não oferece um nível de evidência proporcional ao seu sucesso quanto à  prova de conceito de qual a melhor dieta preventiva de eventos cardiovasculares. E há duas razões para esta minha afirmação: (1) uma teórica, relacionada ao desenho observacional do estudo e (2) outra empírica, relacionada a uma interessante peculiaridade do próprio resultado do estudo que não foi discutida pelos autores.  

Considerações Teóricas quanto ao Caráter do Estudo


Não se trata apenas do PURE ser um estudo observacional, sujeito a viés de confusão. Estamos diante do maior risco de viés de confusão, que ocorre quando estudos observacionais avaliam o impacto de comportamento (behavioral studies). Isto porque comportamento tem forte associação com características de influência prognóstica, tornando impuras inferências causas a partir de associações entre exposição e desfecho. Neste sentido, o nome do estudo (PURE) soa paradoxal. Fico a imaginar como foi o processo de escolha deste nome pelos autores. Bastidores ...

Aproveitarei esse assunto para aprofundar a história do risco de viés de confusão em estudos observacionais. Na verdade, há dados mostrando uma razoável acurácia de estudos observacionais em predizer eficácia. Portanto, nem todo estudo observacional é tão impuro. Isso pode soar estranho ou diferente do que venho falando, mas explicarei.

Quando se compara de forma observacional tratamento A versus tratamento B, e a escolha destes tratamentos não tem muita associação com fatores prognósticos, estes estudos ganham mais acurácia para causalidade. Por exemplo, se comparo dois tipos de cirurgia, onde a escolha se dá pela conduta do serviço (serviço A prefere cirurgia A, serviço B prefere cirurgia B) e não pela gravidade do paciente, estes estudos tendem a ter resultados confirmados por ensaios clínicos. Mas se a cirurgia A for menos invasiva do que a cirurgia B, e a escolha se der pela gravidade do paciente, claro que haverá um imenso viés de confusão.

Portanto, há situações e situações … e aqui estamos na pior das situações em que um estudo observacional tenta inferir sobre causalidade: hábitos de vida. 

Esta é a situação responsável por equívocos históricos (vitaminas, exercício, fio dental, terapia de reposição hormonal por opção da mulher). E como sabemos, todos estes estudos observacionais apresentaram sofisticadas análises multivariadas que ajustavam para conhecidos efeitos de confusão. Se o ajuste para os “conhecidos” é imperfeito, imaginem o ajuste para variáveis de confusão desconhecidas. Tudo isso gera efeito de confusão residual. E residual não significa pequeno.

Epidemiologicamente, dieta rica em carboidratos é sinônimo de condição sócio-econômica desfavorável, tal como reforçado pelos próprios resultados do PURE: regiões mais pobres tiveram maior ingestão de carboidrato. Um indivíduo do Zimbábue que caia do cavalo ou desenvolva um câncer poderá ter um atendimento de pior qualidade no seu hospital comunitário, se comparado ao sueco que precise de assistência médica. Em paralelo, a dieta do Zimbábue é mais rica em carboidrato do que a dieta da Suécia. Isso me faz lembrar do estudo caricatural publicado no NEJM que mostrou associação do consumo de chocolate e sucesso da conquista de prêmios Nobel. Nível sócio-econômico pode explicar aquela associação representada na figura abaixo.



Mas devemos lembrar, a teorização acima é apenas um exemplo de potencial fator de confusão. No fundo, não sabemos que fatores poderiam estar agindo, há fatores previsíveis e imprevisíveis.

Confusão entre “veracidade” e “precisão”


Percebo nesta discussão que parte do glamour está na confusão entre tamanho do estudo e  sua assertividade. Um grande tamanho amostral é responsável por maior precisão do estudo, menor risco de erro aleatório, intervalos de confiança mais estreitos, associações estatísticas mais significantes. Tudo isso reduz o efeito do acaso como causador de ilusões. Mas isso não garante veracidade dos resultados.

Podemos estar com um estudo muito preciso para uma informação muito errada.

Assim, precisamos então relembrar o que é precisão. 

Se fizéssemos o mesmo estudo, com a mesma metodologia, em outras 100 amostras de 135.000 pacientes, os resultados das medidas de associação (hazard ratio) seria quase o mesmo nestas 100 amostras. A isso chamamos de precisão, o mesmo que reprodutibilidade. 

Porém a informação que sempre será a mesma pode estar errada devido a erros sistemáticos. E aqui estamos em potencial com o maior causador de ilusões epidemiológicas: o viés de confusão.

Viés é um erro sistemático, que tende a se repetir da mesma forma. Se temos um grande tamanho amostral, o erro sistemático tende a se repetir mais vezes e o achado influenciado pelo viés terá maior significância estatística. O imenso tamanho amostral amplifica estatisticamente um erro sistemático.

Será que o estudo PURE precisava mesmo de 135.000 pacientes? Fico a questionar como se chegou a este número, até porque não está descrito nos métodos o cálculo do gigante tamanho amostral. Sem dúvida esse tamanho amostral tem um impacto: glamour.

Fica a mensagem: precisão não é exatamente a mesma coisa que veracidade. 


Considerações quanto ao Resultado do Estudo


Até aqui argumentei com base em princípios da medicina baseada em evidências. Agora vem o argumento mais importante, o qual sugere que no caso específico do estudo PURE estamos tratando de um resultado decorrente de efeito de confusão.

Os autores se isentaram de comentar sobre o mais importante resultado do estudo: embora dieta rica em carboidrato se associe a maior mortalidade geral e dieta rica em gordura a menor mortalidade geral, nenhuma delas se associa a mortalidade cardiovascular, nem eventos cardiovasculares! Ou seja, a discussão a respeito de prevenção cardiovascular perde todo o sentido. Se alguém morreu ou viveu, não foi pela influência da dieta no sistema cardiovascular. Foi por outra coisa. 

Que coisa?

Quando vemos efeitos de intervenções em mortalidade geral que não são explicados por redução nos eventos específicos que explicariam o benefício na mortalidade, estamos diante de uma forte sugestão de que os resultados decorrem de efeito de confusão.

Se a prevenção (dieta rica em gordura) ou causa (dieta rica em carbo) não ocorreu por intermédio de eventos cardiovasculares, ocorreu por quê? Os estudos mostram associações com morte não cardiovascular, que podem estar representando o conjunto de condições que terão uma maior mortalidade quando a assistência médica é deficitária. Ou seja, a causa do resultado são efeitos de confusão. 

Não quero deixar este post mais longo... Desta forma, prometo que em postagem futura discutirei quando é melhor escolher o desfecho mortalidade geral ou mortalidade específica.

Mas então não seria de se esperar que a dieta rica em carboidrato tivesse maior mortalidade cardiovascular, pelos mesmos efeitos de confusão que estariam causando as outras mortes? Sim, pode ser que haja esse efeito, mas ele estaria apenas anulando uma menor mortalidade cardiovascular na dieta rica em carboidrato. O efeito de confusão poderia neutralizar um resultado que seria a favor da dieta rica em carboidrato.  

Reconheço que acabo de especular. Mas como já disse, quanto ao mecanismo de confusão exato, podemos apenas especular. Confusão é um sistema complexo, imprevisível. Embora não tenhamos como prever que os mecanismos de confusão, temos como prevenir qualquer um deles quando desejamos inferir causalidade: a randomização.


O que dizem os ensaios clínicos randomizados?


Em 2015 foi publicada pela Cochrane uma revisão sistemática dos ensaios clínicos randomizados que avaliaram a eficácia da redução de gordura saturada na dieta, tal como recomenda o American Heart Association. São 15 ensaios clínicos, com alto nível de heterogeneidade em seus resultados (I = 65% - vide post sobre meta-análise), sendo que a qualidade média das evidências foi considerada apenas moderada. É sempre bom lembrar que meta-análise de estudos de moderada qualidade não resulta em evidência de alta qualidade. Pelo contrário, fica mais incerto combinar estudos problemáticos e heterogêneos.

Portanto, devemos considerar a incerteza em relação a estes assuntos, que precisam ser explorados por melhores ensaios clínicos. Ao reconhecer esta incerteza devemos concluir que a totalidade das evidências intervencionistas nos traz mais insights exploratórios do que confirmatórios.

Mas o que dizem esses insights exploratórios? Sugerem que há um pequeno efeito benéfico na restrição de gordura saturada na prevenção de eventos cardiovasculares:

The findings of this updated review are suggestive of a small but potentially important reduction in cardiovascular risk on reduction of saturated fat intake.

Ou seja, aqui temos um grande estudo observacional, com alto risco de viés de confusão sendo comparado ao conjunto de ensaios clínicos randomizados de qualidade moderada.  Fica a critério de cada um decidir qual a tendência, mas torna-se bastante duvidoso se apostar nos resultados do PURE.

É frequente se utilizar o argumento da dificuldade de realizar estudos randomizados sobre dieta: como garantir que as pessoas randomizadas para dieta A de fato façam dieta A, e as pessoas alocadas para dieta B de fato comam B? Isso não é o mesmo que usar um comprimido. No entanto, essa colocação não leva em conta um conceito científico importante: contraste. 

O que testa conceitos é o contraste entre os grupos, e não a perfeição na execução da recomendação, que não existe em nenhum experimento. Claro que pessoas randomizadas para dieta rica em gordura vão transgredir com carboidrato em alguns momentos, porém o efeito desejado da randomização é garantir um contraste de exposição entre os grupos. Mesmo transgredindo, o grupo gordura vai comer mais gordura do que o grupo carboidrato e vice-versa. É o contraste que testa a hipótese. 

Portanto, realizar estudos intervencionistas com dieta é factível, pois estes são capazes de gerar contraste dietético e testar hipóteses. Nestes estudos estarão as respostas para nossas perguntas, não em gigantescos estudos observacionais que amplificam efeitos de confusão.


Epílogo


A antítese da medicina baseada em evidências é a medicina baseada em autoridade. A autoridade dos autores, do tamanho do estudo, do destaque no Congresso Europeu. Autoridade sob a forma de glamour. 

O glamour do estudo PURE nada tem a ver com a qualidade ou relevância da evidência. O problema é que nossa mente é mais seduzida por glamour do que pela rigidez do pensamento científico. Precisamos de novidades, mesmo que estas sejam falsas.

Esse estudo não faz evoluir o conhecimento científico a respeito de dieta preventiva de eventos cardiovasculares. Apenas confunde uma questão já carente de evidências. Este estudo, serve mais para nos lembrar que (1) precisão não é o mesmo que veracidade e (2) precisão pode ser uma forma de amplificar erros aleatórios, aumentando sua significância estatística. 

Devemos reconhecer a incerteza quanto ao impacto de carboidratos e gorduras no risco cardiovascular. Incerteza das recomendações do AHA e incertezas do impuro estudo PURE.   Por enquanto recomendações não devem ser baseadas em qualidade do alimento, mas sim quantidade, pois esta última é plausibilidade extrema. Seja carboidrato, seja gordura, o pior é quando um alimento é muito gostoso, nos fazendo passar dos limites da necessidade biológica. Comer demais reduz qualidade de vida no longo prazo.

Que sempre diferenciemos medicina baseada em evidências de medicina baseada em glamour.  Diferenciar pureza e impureza.


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