Canais de Luis Correia

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

A (In) Utilidade do Estudo da Vitamina C na Sepse


Recentemente publicado no JAMA estudo que trouxe a impressionante figura em destaque, cujo visual e números mostram redução relativa de 45% na mortalidade em pacientes com sepse ou SARA que são tratados com vitamina C. O estudo impressionou com 55.000 acessos e altimetrics de 494, sendo tema de vídeo em nosso canal do YouTube, quando discuti de forma caricatural conceitos filosóficos da ciência, utilizando o gancho deste vitaminado estudo.  

Sim, este estudo é útil, não pelo teste de sua hipótese, mas pelas reflexões provocadas. Este reflexão é constituída de conceitos pouco intuitivos, que pretendo apresentar nesse texto. Afinal, o pensamento científico não é intuitivo. 

Não me refiro a um estudo negativo para o desfecho primário evidenciar graficamente a positividade “encontrada” em mortalidade, um dos 46 desfechos secundários testados. 

Não me refiro a este desfecho não ser estatisticamente significante, se submetido à correção das múltiplas comparações (Bonferroni: P = 0,03 x 46 comparações = 1,00). 

Nem me refiro a um dos mais importantes mecanismos de erro tipo I: baixo poder estatístico dos estudos (estudo pequeno necessita de uma diferença tão grande para ser significativo, que esta diferença se torna boa demais para ser verdade). Isso Ioannidis já demonstrou em seu artigo mais citado: “por que a maioria das evidências são falsas?”

Não, essa postagem não se presta ao óbvio. Essas coisas não tornam esse estudo inusitado, seria apenas mais um “daqueles”. O que importa aqui são discussões mais originais. 

Por que um estudo de desfecho intermediário não deve ter morte como desfecho secundário?


Em primeiro lugar, precisamos revisar o real propósito de desfechos secundários, sob uma ótica de integridade científica: refinar o conhecimento a respeito do desfecho primário (positivo ou negativo). Desta forma, o desfecho secundário é, em sua origem, subordinado hierarquicamente ao desfecho primário. 

Desfechos secundários, se adequadamente aplicados, explicam o resultado primário. Observem que nesse processo, partimos do resultado do primário (mais importante) e depois evoluímos para o secundário (menos importante). Vamos a exemplos. 

Tendo morte como desfecho primário positivo, é interessante saber os mecanismos da redução de mortalidade. Neste momento ganha importância a análise secundária da morte específica. Morte na verdade é desfecho líquido, combinado de múltiplos tipos de morte. Da mesma forma, quando não há redução de mortalidade é interessante entender se isso ocorreu porque o tratamento não impactou em nada, ou porque reduziu um tipo de morte e aumentou outro tipo de morte. Por exemplo, no primeiro resultado do estudo STICH, não houve redução de mortalidade com revascularização em pacientes com miocardiopatia dilatada. Secundariamente, isso ficou explicado pela redução de morte cardiovascular com a cirurgia cardíaca, anulada pelo aumento de morte por complicação cirúrgica. Podem ser secundários também os componentes de desfechos combinados ou marcadores intermediários do processo que levou ao desfecho final. 

Quanto mais relevante é um desfecho, mais próximo da via final ele está. Portanto, as vias intermediárias de explicação tendem a ser desfechos menos importantes do que o desfecho explicado. Sendo assim, o sentido primário de um desfecho secundário (explicar o primário) faz com que sua natureza também deva ser de importância secundária. 

Quando colocamos um desfecho que representa a via final como secundário, este perde o papel de secundário, assumindo o papel de um “penetra” no pensamento primário. Morte na posição secundária não exerce o propósito explanatório, mas tende a “roubar a cena” se positivo. Ocorrerá aqui o fenômeno de outcome interpretation bias, quando o desfecho secundário, se positivo, exerce a função de amenizar a negatividade do estudo. No caso de morte, o efeito vai além de amenizar, sugestiona totalmente nosso pensamento. E sugestiona no pior cenário de veracidade, pois não sendo o estudo dimensionado para aquele desfecho, a probabilidade de falso positivo é alta. 

Portanto, o desfecho morte não deve ser listado de secundário em estudos de desfechos substitutos ou intermediários. Ocorre o que ocorreu, um resultado probabilisticamente falso, mas tão entusiasmante que gerou um gráfico para colocarmos nas aulas de congressos, gerando visibilidade, entusiasmo e citações. 

Por que probabilidade pré-teste não é influenciada pela lógica de potenciais mecanismos?


Sabe-se, desde os primórdios do pensamento médico-científico, que plausibilidade biológica não é o mesmo que probabilidade de benefício. Este é um dos princípios superbásicos da medicina baseada em evidências. Exceto o caso da homeopatia, estudos negativos costumam ter vários mecanismos plausíveis de funcionamento. Portanto, não são “razões para funcionar” que tornam o desfecho mais ou menos provável. A esta ilusão Daniel Kahneman denomina “confiança por coerência”. Nada tem a ver com probabilidade.

Então para que serve aventar mecanismos? Serve para pensar na possibilidade, serve para os primórdios do surgimento da ideia. Mas entre pensar na ideia e decidir fazer um estudo, precisa-se avançar para a estimativa da probabilidade pré-teste. 

Como estimar a probabilidade pré-teste?


Isso se parece com a clínica. Quando nos deparamos com um quadro clínico, não é uma boa ideia utilizar heurística de semelhança para estimar a probabilidade pré-teste. Na verdade, o melhor é utilizar dados epidemiológicos que não dizem respeito àquele paciente em particular. Ou seja, a prevalência da doença diante de uma circunstância é a verdadeira probabilidade pré-teste, não a semelhança clínica (“confiança por coerência”).

O mesmo ocorre quando pensamos em um estudo. A probabilidade pré-teste não está no quanto a ideia é promissora na lógica. A probabilidade começa no pensamento epidemiológico. Na epidemiologia das “vitaminas”, os resultados são normalmente positivos? No campo das vitaminas, a negatividade dos estudos é consistente, mesmo quando se depositou grande expectativas em vitaminas prevenindo cânceres ou doença cardiovascular. Lembro-me que na década de 90, quando nossa tribo cardiológica acreditava no efeito anti-oxidante da vitamina E em prevenir infarto. 

O "viés de habilidade", também descrito por Daniel Kahneman, está por trás da crença. Pois, paradoxalmente, a crença é mais prevalente em quem se seduz por seu conhecimento. No viés de habilidade, o indivíduo superestima o valor de sua habilidade. No caso médico, especialistas que entendem mais dos detalhes heurísticos acham que isto serve para cálculo de probabilidade pré-teste. Se assemelham aos entendidos operadores de bolsas de valores que utilizam monitores parecidos com os de UTI, porém sua capacidade de predição não supera o acaso, segundo Nassim, o Taleb. 

Vale também para a via negativa. Há coisas que não “parecem” fazer mal, mas depois descobrimos que faz mal. No início do século passado, não era coerente que os cigarros fumados por elegantes médicos nos corredores dos hospitais causassem câncer de pulmão. Foi a epidemiologia que mudou esse pensamento. 

Ao inventarem cigarros eletrônicos, julgaram que não fazia mal por alguma lógica desenvolvida. Mas se iniciássemos pela epidemiologia das coisas semelhantes, o mal que cigarro comum faz aumentaria a probabilidade dos eletrônicos não serem inocentes. Deu no que deu … agora começamos observar  casos fatais de morte em quem fuma os eletrônicos (vaping). 

Outro bom exemplo é o que nos mostra o campo da nutrição. Ioannidis argumenta que este é o campo dos menores tamanhos de efeito. Portanto, quando alguém disser que alho previne câncer, cuidado: a probabilidade disso ser verdade é próxima a zero. E quem propõe também traz uma série de mecanismos plausíveis

Qual a diferença entre vitamina C e alho?

Mas tem um segundo componente da probabilidade pré-teste: estudos prévios que testaram a mesma hipótese específica. Os verdadeiros estudos exploratórios. 

Por que o termo “estudos exploratórios” é banalizado?


A banalização surge da confusão entre estudo ruim e exploratório. Muitas vezes um estudo com alto risco de viés ou acaso mostra um resultado interessante. Daí entusiastas chamam isso de exploratório ou geradores de hipótese. Estudos de baixo valor preditivo não geram nada além de entusiasmo. Não geram hipótese!

Estudos exploratórios são boas observações empíricas, com risco de viés e acaso suficientes para moldar a probabilidade de uma hipótese ser verdadeira; mas insuficientes para confirmar a hipótese.

Portanto, essa história de dizer que esse estudo da vitamina C gerou hipótese de redução de mortalidade a ser testada por futuros estudos não é real. Na verdade, esse resultado gerou um entusiasmo, mas não é capaz de moldar a probabilidade da crença ser verdade. É como um reforço à crença que servirá de justificativa para realização de futuro estudos para testar o que não precisava ser testado. 

Mas por que não precisa ser testado?


Porque este futuro estudo não consegue mudar nada. Se for negativo, já sabíamos; se for positivo, ele elevará uma probabilidade pré-teste baixa para moderada. Não confirmará. 

Sim, é verdade que há descobertas que surgem como um cisne negro, imprevisibilidades que mudam o mundo. Mas estas, imprevisíveis que são, não são hipóteses previamente fabricadas e testadas por estudos de má qualidade. Estas surgem ao acaso, como a descoberta da penicilina. 

Administrar vitamina C pode não causar muito dano ao paciente (?), mas causa dano à cognição coletiva, quando a crença toma lugar da racionalidade. 

Crença não é ruim, na verdade é inato do Sapiens. Mas seu valor está no aspecto pessoal, na espiritualidade e religiosidade das pessoas. Não podemos deixar o valor pessoal das crenças invadir o conceito de profissionalismo. Profissionalismo médico está em respeitar a ordem das coisas, baseadas em evidências. 

Este texto não é sobre vitamina C. Vitamina C foi um gancho para despertar uma discussão muito mais importante do que a sua “eficácia” em sepse. 

Este texto é sobre um ecossistema científico de hipóteses de baixa probabilidade, testadas por estudos com severas limitações metodológicas, que se utilizam de spin, outcome reporting bias e viés de publicação, gerando estudos de baixo valor preditivo positivo, considerados verdadeiro positivos, promovendo recomendações de guidelines, que anos depois sofreram “reversão médica”. 

Resta saber se queremos continuar nesse mundo fantasioso ou assumir uma postura profissional, verdadeiramente científica. Ciência não é a procura de novidades, é a humilde tentativa de identificar como o mundo funciona e encontrar soluções reais para nossos problemas. 

Como disse o pai da integridade estatística, Douglas Altman, “we need less research, better research and research done for the right reasons”.

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

A controvérsia das estatinas e suas (ir) racionalidades



Há controvérsias úteis e inúteis. As úteis iniciam como abrasões criativas, evoluem em um sentido, com o passar do tempo enfraquecem enquanto controvérsia e fortalecem uma das hipóteses como verdadeira. As inúteis se perpetuam por sua estagnação e tornam-se museus de grandes novidades.

Enquanto argumentos racionais justificam a necessidade de revisitar a percepção sobre estatinas, irracionalidades promovem uma controvérsia polarizada. Como polarizações misturam pensamento científico e dogmático, não me interesso muito por este debate. 

Até que fui citado pelo querido amigo Assem Malhotra, em seu artigo intitulado "Do Statins Really Work?"publicado no site European Scientist. Dentro daquele contexto, me vi confundido como membro da tribo polarizada e resolvi utilizar este assunto para discutir filosofia da ciência, matéria que me interessa mais do que  “estatinas”. 

Este artigo aborda racionalidades e irracionalidades das controvérsias científicas, utilizando o exemplo das estatinas. Apontarei aspectos que merecem ser explorados nesta questão e os aspectos que representam meros sofismas promotores de polarização. 

O melhor racional da oposição ao paradigma das estatinas reside na superestimativa do benefício. A percepção usual de benefício precisa ser recalibrada, abandonando o paradigma determinístico (uso = benefício) e adotando o pensamento probabilístico. Estatinas promovem 25% de redução relativa de risco (propriedade constante em diferentes estratos de risco). Neste sentido, quando menor o risco basal do paciente, mais marginal será seu efeito concreto. Estatinas não são panaceias, são apenas “pílulas de probabilidade”.

Por outro lado, a irracionalidade da crítica está em não contextualizar adequadamente o problema da superestimativa determinística, fazendo parecer que esta é uma questão específica das estatinas. Na verdade, este equívoco é universal do modelo de pensamento biomédico. 

Pensemos em alguma unanimidade: inibidores da ECA na insuficiência cardíaca. Ao prescrevermos esse remédio para reduzir mortalidade, conseguimos beneficiar 5% desses pacientes (SOLVD Trial); o resto não se beneficia, pois não morreriam sem o remédio ou morreriam a despeito do remédio. Esse é o mecanismo do número necessário a tratar (NNT = 20), no qual precisamos tratar muitos, para beneficiar poucos. 

Aprofundando a questão, perceberemos que a discussão não se limita ao aspecto probabilístico da magnitude de efeito. Na verdade, o foco da polarização está no questionamento da existência de benefício das estatinas na prevenção de doença aterosclerótica, como se essa ideia fosse gerada por uma teoria da conspiração. 

Diante deste questionamento, devemos explorar as evidências que criaram o paradigma das estatinas. Isto se justifica pois se trata de estudos antigos, de uma era pré-ciência aberta, onde protocolos não eram publicados a priori. Segundo, todos os estudos foram financiados pela indústria farmacêutica. Assim, vejo racionalidade em revisitar com um novo olhar as evidências a respeito da eficácia das estatinas, a fim de refinar nossa percepção da realidade.

Mas antes de iniciar a discussão, devemos lembrar a diferença entre ceticismo e negação. Ceticismo é constituído de uma dúvida válida que nos induz a explorar a questão. Negação é a procura dogmática de argumentos capazes de destruir a ideia. Este texto é mais sobre filosofia da ciência. 



O Nível de Evidência


À luz da visão atual sobre qualidade de evidências, qual o nível de comprovação do benefício preventivo das estatinas?

Limitarei essa revisão aos estudos voltados para prevenir eventos em pessoas saudáveis, visto que a controvérsia é mais concentrada neste grupo. Existe um bom número de ensaios clínicos (Cochrane Review), porém quase todos inúteis, pois combinam pequenos tamanhos amostrais (imprecisão) com vieses múltiplos. Há até um trabalho japonês com 6000 pacientes, mas (pasmem) não é cego.

Apenas três ensaios clínicos combinam precisão (tamanho amostral) e metodologia aparentemente adequada: WOSCOPS 1995, AFCAPS/TexCAPS 1998 e JUPITER 2008.

Primeiro, os três estudos são financiados pela indústria farmacêutica. Não proponho que financiamento da indústria invalide estudo, mas seria desejável a reprodutibilidade da ideia por um trabalho independente. Por outro lado, precisamos  contextualizar: o domínio da indústria nos estudos de fase III não é particularidade das estatinas, ocorre o mesmo com quase todos os adventos médicos.

Os três trabalhos seguem metodologia adequada de randomização, cegamento, desfechos duros, análise por intenção de tratar, poder estatístico adequado. 

No entanto, os dois primeiros não tiveram protocolos pré-registrados, pertecem a uma época pré-histórica quanto à necessidade de registro, nem mesmo existia clinicaltrials.gov

Apenas o JUPITER foi pré-registrado. No entanto, o JUPITER foi um estudo truncado, o que tende a superestimar o tamanho do efeito. A propósito o AFCAPS/TexCAPS também foi truncado. Os truncamentos ocorreram com mais de 200 desfechos, o que ameniza o risco de falso positivo; mas ocorreram com menos de 500 desfechos, o que pode provocar superestimativa do tamanho do efeito. 

Portanto, em se considerando a completa ausência de um ensaio clínico independente da indústria, carência de pré-registro e presença de truncamentos, o nível de evidência das estatinas na prevenção de eventos cardiovasculares merece ser revisitado.

Dentro do espectro da metaciência, há duas formas de "revisitar". Solicitar da indústria todo o material referente aos ensaios clínicos, o que permite reanálise e checagem de inconsistências; ou melhor, propor um estudo de replicação, independente, com todos os critérios de integridade científica. Mas antes disso, precisamos refletir.  

No estágio atual de conhecimento, a probabilidade da hipótese de eficácia das estatinas ser verdadeira é suficiente para que esta seja usada na prática clínica? 

Primeiro, ser estudo da indústria, ausência de pré-registro e truncamento com mais de 200 desfechos não chega a constituir clássicos critérios para alto risco de viés.  Segundo, há reprodutibilidade dos resultados. 

Reprodutibilidade é um dos critérios mais importantes de veracidade do ecossistema. Embora imperfeitos individualmente, diferentes imperfeições entre os artigos levaram ao mesmo resultado. Um estudo truncado com moderado número de desfechos pode ser ruim, dois truncados com o mesmo resultado já é algo mais favorável. E quando há um terceiro trabalho não truncado (ordem não cronológica)  mostrando benefício, podemos considerar que ultrapassamos o limite de incerteza.

Se continuam em dúvida deste limite de incerteza, pensemos de novo no inibidor da ECA na insuficiência cardíaca. Estas são recomendados fortemente com base em dois trabalhos, SOLVD (N = 2.500) e CONSENSUS (N = 250), sem registro e com limitações típicas de uma era de maior tolerância com a metodologia dos trabalhos. Outro bom exemplo é o da espironolactona, que tornou-se droga obrigatória com base apenas em um estudo, o RALES (N = 1600), a propósito, truncado. 

Portanto, a discussão a respeito das estatinas é válida dentro de um contexto em que conceitos consolidados há décadas devem ser revisitados e refinados. Mas isso é diferente da polarização gerada por manchetes de jornal que, embasadas em depoimentos médicos, tornam a discussão caricatural: “Statins: Kill or Cure?”. 

Estatinas não matam, também não curam, mas provavelmente reduzem a probabilidade de eventos, na humilde proporção do risco basal. O alinhamento de probabilidades e preferência do paciente representa o racional adequado deste processo de decisão. 

Por outro lado, evidências não justificam  a proposta de que LDL-colesterol = 70 mg/dl seja interpretado como indesejado (quem se salva?), sendo que guidelines indicam estatina desde que o paciente tenha (apenas) 5% de risco de eventos combinados em 10 anos. Discutimos isso em postagem prévia. Mas vale a pena revisitar. 

Um dos recentes ensaios clínicos em prevenção secundária nos traz insights sobre valores desejados de colesterol: se por um lado o estudo IMPROVE-IT demonstrou benefício da redução de 100 mg/dl para 70 mg/dl, por outro lado esse benefício foi irrelevante (redução relativa de 6%). Portanto, do ponto de vista pragmático, o IMPROVE-IT nos mostra que não se justifica esse preciosismo, mesmo em prevenção secundária, quanto mais primária. Anos antes, o irritante JUPITER tentava sugerir o implausível: relevante benefício da redução LDL-colesterol mediano de 108 mg/dl, citando NNT supostamente relevante. No entanto, esse NNT foi uma extrapolação temporal de dois para cinco anos de seguimento. Segundo, o NNT era para prevenção de um componente de múltiplos desfechos primários de diferentes importâncias. Terceiro, estudo truncado que superestima a magnitude do benefício. 

As recentes reduções dos níveis de LDL-colesterol desejado para < 70 mg/dl em pessoas de prevenção primária representa um grande exemplo da forma não probabilística de pensar. Sim, haverá benefício, irrelevante. 


Os Cinco Graus de Irracionalidade da Controvérsia



Irracionalidade 1: ceticismo versus combate

Se a discussão sobre estatinas ocorresse em torno da análise das principais evidências, o processo de polarização se enfraqueceria. Ao contrário, a polarização é mantida viva, pois defensores enaltecem indevidamente a magnitude do benefício, vivem citando mecanismos diversos e desfechos substitutos como reforço da ideia.

Do outro lado, negadores não se prestam a uma crítica técnica das melhores evidências. Em um típico viés de confirmação, ignoram estas evidências, e citam trabalhos ecológicos e observacionais. A prática científica reversa ganha espaço quando, ao invés de explorar se há evidências a favor da hipótese de eficácia, negadores coletam evidências não desenhadas para o teste de eficácia, mas que supostamente contrárias à hipótese.

Há uma confusão entre valor da incerteza e combate a um conceito. A valorização da incerteza expõe dúvida quando à veracidade, o que é diferente de tentar provar que o conceito é falso. 

“Negadores” são confundidos com cientistas. Usam uma retórica parecida, mas não percebem que a forma de pensamento é justamente o inverso do científico. 

Ceticismo está na origem do pensamento científico, pois justifica a necessidade de dados empíricos para comprovar um fenômeno. Isto desdobra em uma constatação. A prática científica está em provar um fenômeno. A prática científica não está em “desprovar”, até porque prova de ausência é impossível.

Uma má interpretação do princípio da falsificação de Popper gera essa inversão de valores. Quando Popper falava em “falsificar”, se referia a uma metodologia para dificultar a prova do fenômeno falso (eliminar vieses e ampliar precisão). Não se fazem experimentos para provar inexistência.

Por este motivo que qualquer negador (“denier”) é anticientífico, mesmo que possa ter razão. A mente científica parte da dúvida e procura evidências a favor. Caso não encontra evidências suficientes, continua com a posição de não afirmar um conceito. A hipótese nula não nega um conceito, apenas deixa de afirmar. 


Irracionalidade 2: a fútil discussão sobre mortalidade


Um comum argumento contra estatinas em prevenção de doença aterosclerótica (“primária”) é a “ausência de demonstração de redução de mortalidade”. Esta retórica é antiprobabilística, pois não considera que a baixa probabilidade de morte cardiovascular deste tipo de paciente. Como almejar redução de morte em pessoas que não morrem?

Embora permanecer vivo seja bom, esse não deve ser o objetivo da terapia com estatina em prevenção primária, pois (estatisticamente) morte não é o problema de um assintomático com colesterol elevado. Segundo, mesmo se fosse para ser o objetivo, seria algo indetectável por um grande ensaio clínico. Usando a mortalidade do grupo placebo no estudo WOSCOPS, calculei que seriam necessários 54.000 pacientes para oferecer 80% de poder na detecção de 20% de redução relativa do risco de morte. 

Indivíduos em prevenção primária não são doentes manifestos, portanto a prevenção deve ser da doença que o paciente ainda não tem. 

Para melhor entender isso podemos fazer uma contra-analogia com rastreamento de câncer, em que é necessário mostrar redução de mortalidade para nos convencermos do benefício. Observem que rastreamento não é prevenção da doença, é detecção de uma doença que já existe (supostamente). Desta forma, se a doença já existe, resta prevenir que esta leve o paciente a morte. Portanto, rastreamento precisa demonstrar redução de mortalidade. E não demonstrando, representa uma atitude questionável, muito mais questionável do que o uso de estatina.

Diferentemente, controle de fator de risco é prevenção, o que implica em prevenir a doença que vai levar alguns a morte. Ora, se essa doença não é tão frequente, e mata a minoria das pessoas, esse não pode ser objetivo científico a perseguir. O que precisamos perseguir originalmente é o surgimento da doença. 

Agora, se infarto é uma doença que mata, e nós prevenimos infarto com uma droga cujo efeito colateral não é morte, claro que essa prevenção de infarto vai reduzir morte, pois existem infartos não fatais e fatais. Mas o fará de forma tão tênue, que isso não importa como argumento. Nem argumento pró, nem contra. 

Morte não é argumento nessa discussão, é retórica. 


Irracionalidade 3: a preconceituosa discussão sobre sexo


Muitos argumentam que o benefício da estatina não está comprovado em mulheres.  Façam por favor um escaneamento cerebral. Algum tratamento farmacológico funciona em homem e não funciona em mulher? Na verdade, tudo que funciona em um sexo, funciona no outro: antibiótico, anti-hipertensivo, anticoagulante, tratamentos de insuficiência cardíaca, quimioterápicos, cirurgias e procedimentos. 

Não existe interação entre tratamento e sexo, simplesmente porque biologicamente homens e mulheres  são muito mais parecidos do que diferentes. Já discutimos isso neste Blog

Estatina seria o primeiro advento universal (fora da esfera hormonal) que só funcionaria em homem. Este argumento ignora fortemente o princípio da raridade da interação biológica em estudos biomédicos. 


Irracionalidade 4: categorização em prevenção primária e secundária


As categorias prevenção primária e secundária foram criadas para facilitar a diferenciação da redução absoluta em paciente de maior ou menor risco. Ou seja, na prevenção primária, o risco de um desfecho é muito menor, portanto o NNT do benefício de uma terapia preventiva é maior. O benefício concreto é menor em prevenção primária. 

Assim, esta categorização serve para facilitar o processo de decisão clínica baseado em relevância do benefício. No entanto, essa categorização tem sido sequestrada para gerar dúvida em relação à veracidade do conceito de eficácia.

Se algo funciona prevenindo um segundo infarto, funcionará prevenindo um primeiro infarto. Mais uma vez se aplica o princípio universal da “raridade da interação”. Se pensarmos biologicamente, essa classificação não divide as pessoas em duas doenças. Por trás de tudo está a doença aterosclerótica que causa um primeiro infarto, mas também o segundo infarto. Impedir progressão de placa ou estabilizar placa é benéfico em qualquer das duas situações. 

Este raciocínio se confirma pela comparação das evidências nos dois “tipos” de prevenção. A redução relativa do risco é exatamente a mesma em pacientes de prevenção primária ou secundária: 25%. O tamanho do “efeito intrínseco” do tratamento é o mesmo. O que é diferente é o “efeito concreto”, pois aplicando esses 25% em um paciente de baixo risco, a redução absoluta será menor, o NNT maior, e fica muito mais questionável o valor das estatinas. É uma questão de relevância, não de veracidade. 

Categorizações são úteis como heurísticas ou atalhos de pensamento. Mas toda categorização traz o viés de acentuar desproporcionalmente diferenças entre grupos. Pode haver um paciente com grave extensão de doença que nunca teve um infarto (prevenção primária) e outro com doença limitada a uma placa pontual em um único vaso que acaba de ter um infarto (prevenção secundária). Qual o pior?

Portanto, é irracional “acreditar” em estatina em prevenção secundária e “negar” seu efeito em primária. E isso ofusca o mais importante raciocínio clínico, que é a decisão individualizada com base no efeito concreto que cada paciente vai desfrutar do tratamento (NNT individual = RRR x risco individual).  É uma questão de valor versus preferência.

Infelizmente, essa controvérsia promove uma involução cognitiva, no sentido de propor um pensamento determinístico em que algo funciona ou não funciona a depender de uma categorização platônica. 

A evolução médica está reconhecer a superação de uma incerteza conceitual, e considerar a incerteza individual (probabilidade). Está no NTT a decisão individual e não em uma controvérsia que chega a questionar colesterol como fator de risco para aterosclerose. 


Irracionalidade 5: colesterol inocentado


O combate às estatinas ganha aspecto caricatural quando se alinha ao combate ao colesterol como fator de risco para aterosclerose. O nível de evidência do colesterol é o mesmo dos demais fatores de risco, como hipertensão, diabetes, tabagismo: critérios de Hill, temporalidade prospectiva, associação independente, força de associação, relação dose-resposta, plausibilidade biológica.  Portanto, o questionamento do colesterol como fator de risco deveria vir acompanhado da destruição de todo o modelo mecanicista da doença aterosclerótica, considerando todos os fatores de risco. 

Bradford Hill desenvolveu os critérios de causalidade na discussão sobre tabagismo e câncer de pulmão. Nesta hoje incontestável associação causal, a força de associação é maior do que os tradicionais fatores de risco para aterosclerose. Por outro lado, colesterol e hipertensão possuem uma validação final que tabagismo não possui: a reversibilidade, ou seja, a redução do colesterol ou da pressão arterial reduz risco cardiovascular. 

Alguns argumentam que estatinas podem reduzir risco cardiovascular por outros mecanismos, o que ignora um mínimo de hierarquia probabilística quanto a plausibilidade de mecanismos. Ademais, as outras drogas que reduzem colesterol provocam redução de eventos: a pequena redução incremental de colesterol com ezetimibe causa proporcionalmente pequena redução de risco; assim como inibidores da PSK9 reduzem colesterol e eventos. Confirmando essa ideia, quando se utilizou estratégias ineficazes para reduzir colesterol (dieta ou drogas mais antigas), o efeito clínico não apareceu. 

Mais uma vez, ciência não se faz combatendo a ideia de causalidade, mas sim analisando se as evidências a favor são suficientes para rejeitar a hipótese nula. Fica fácil quando comparamos com os outros fatores de risco ou com a seminal história da causalidade do tabagismo. 


A percepção observacional dos efeitos adversos


Há uma adequada percepção de que efeitos adversos das estatinas são subdimensionados pelos ensaios clínicos. Isto faz sentido. Mas devemos também reconhecer a fragilidade de dados observacionais a este respeito. O relato de efeitos adversos com base em estudos não controlados e abertos pode superestimar estas queixas com base no efeito nocebo ou atribuição indevida de sintomas sem vínculo causal. Portanto, isso deve ser revisitado por futuros ensaios clínicos sem fase de run-in.


Experimento-pensado (thought experiment)


Colocando as defesas e ataques irracionais de lado, julgo que seria de valor revalidar o conceito de eficácia por um estudo independente, utilizando modernos métodos de integridade científica e ciência aberta. Como protótipo, apresento um experimento mental. 

Ensaio clínico randomizado, duplo-cego, que testa qualquer uma das estatinas, em dois grupos de dose usual e máxima, ambos comparados ao grupo placebo. Seriam incluídos pacientes livres de eventos cardiovasculares, com diferentes estratos de colesterol e diferentes estratos de risco. 

As duas doses serviam para avaliar o efeito dose-resposta; os diferentes valores de colesterol basal serviriam para o teste de interação entre LDL-basal e tamanho de efeito; os diferentes estratos de risco basal serviriam para avaliar a constância do efeito independente do tipo de paciente. 

O desfecho primário seria o combinado de morte cardiovascular, infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral isquêmico. A contribuição de cada componente do desfecho composto seria avaliada de forma não estatística, sem teste de hipótese, sob critérios hierárquicos apenas se o desfecho primário fosse positivo. Fora isso, não haveria desfechos secundários. O tamanho amostral deveria ser maior que o usual, visto que a realidade pode corresponder a um tamanho de efeito menor do que o demonstrado previamente. Talvez deveríamos dimensionar para 15% de redução relativa do risco. Claro, randomização centralizada e fechada, análise por intenção de tratar. Para que eventos adversos não fossem subestimados, não deveria haver fase de run-in. 

Considerando que neste caso não há equipoise suficiente, seriam convidados para o estudo pacientes cuja preferência seja evitar estatinas na medida do possível. Seriam cinco anos de seguimento e sob nenhuma circunstância o estudo poderia ser truncado. Análise de subgrupo seria realizada apenas se o estudo fosse positivo, e testaria apenas interação com colesterol basal, risco basal, sexo e idade. O resto é balela. As interações teriam alfas ajustados pela correção de Bonferroni. 

Protocolo publicado a priori, não contemplaria nenhuma modificação ao longo do estudo. Base de dados seria publicamente disponível, o estudo seria publicado sob a forma de pre-print, submetido a revisão aberta, e finalmente publicado em open journal. Para ficar livre dos religiosos aplausos, o estudo não seria apresentado em congressos de cardiologia, mas sim em pequenos eventos de ciência da replicação. 

Quem financiaria este estudo? O conjunto de países cujo sistema universal de saúde fornece estatinas em prevenção primária. O Brasil estaria dentre esses financiadores. Nenhum dos autores poderia ter qualquer vinculação presente ou passada com a indústria farmacêutica, qualquer jantar, aula ou viagem seria um impedimento. Assim como autores de qualquer trabalho prévio positivo para estatinas estariam excluídos, pelo conflito de interesse intelectual. Não sobraria quase nenhum “formador de opinião”. Autores com viés contrário a estatinas, identificados por qualquer manifestação em artigos científicos ou em redes sociais, seriam também excluídos. 

Qual seria o resultado? Estudo positivo, mas com tamanho de efeito menor do que o conhecido hoje, eu diria 19% de redução relativa do risco com a dose moderada, sem interação com risco basal e com evidente interação com valor do colesterol. A dose elevada mostraria 21% de redução relativa do risco. Pouco diferente da usual. 

Quanto aos efeitos adversos, na ausência do run-in, haveria uma maior incidência, 20% no grupo estatina, comparada a 11% no grupo nocebo. Ou seja, a incidência seria maior nos dois grupos e subtraindo no nocebo, estatinas causaria diretamente dor muscular em 9% das pessoas. 


Reflexões Finais


Meus amigos de esquerda me julgam de direita, enquanto os de direita me julgam de esquerda. Meus amigos cardiologistas me julgam contra estatinas, enquanto naturalistas me julgam defensor destas drogas. No final, não agrado ninguém, pois o contra (audácia) incomoda mais do que o favorável (mera obrigação).

Não é o caso de conciliar conceitos opostos, até porque quem não é boa ideia andar no meio da rua. Temos que andar de um lado ou de outro. Mas a escolha do lado depende da situação e das evidências.

Controvérsia científica pode ser construtiva quando baseada em racionalidade, mas torna-se inútil polarização quando a procura da verdade dá lugar à obstinação de provar um ponto de vista. A valorização da incerteza não deve levar ao método anticientífico de “provar ausência”. 

O interesse pela polarização, permeada por manifestações com teor de indignação e moralismo, resulta em aumentos das “curtidas” em redes sociais, mas não em evolução da sociedade. Isto ocorre pois este tipo de manifestação não influencia o pensamento racional de pessoas antes imparciais, apenas incitam os que já pensavam dessa forma. 

Revolução proveniente do surgimento de conceitos originais representam evolução.  Mas como John Lennon lembrou na música revolution, “when you talk about destruction, you know that you can count me out”. Ou seja, revolução não é o mesmo que destruição. 

Lennon também criou a frase “give peace a chance”. Terminarei adaptando: “give evidence a chance”. 


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