Canais de Luis Correia

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Feitiço do Tempo na Pandemia: a inversão do ônus da prova



Lembro-me de um filme da década de 90, estrelado por Bill Murray. Um filme simples e filosófico,  cujo personagem acordava todo dia no mesmo dia:  Feitiço do Tempo. Sinto-me assim, parece que o tempo não passa, os problemas não passam, as controvérsias não passam. 

Controvérsias não passam quando os argumentos de ambos os lados carecem de princípios de pensamento adequados. Atualmente, argumentos ditos científicos violam a (1) noção do ônus da prova e (2) desconsideram o pensamento científico bayesiano.

Já me nego a pronunciar ou digitar o nome da dita medicação, sinto vergonha de discutir esse assunto. Não quero mais contribuir para a pandêmica discussão enfeitiçada pelo tempo. Há exatos dois meses, no dia em que a droga começou a ser propagada, escrevi neste Blog. Pensava que minha postagem ficaria obsoleta em algumas semanas, eu apenas queria usar como gancho para discutir princípios cognitivos do processo de decisão médica. Mas o post “viralizou”, hoje com 130.000 acessos. 

De tão absurda que a história parecia, achei que se dissiparia como qualquer fofoca. Cunhei o termo “fofoca científica” para certos tipos de estudo, ou “anti-estudos”. A história ficaria na memória, serviria para minhas aulas de medicina, assim como serviu a história da outra droga proposta para o tratamentos de “cânceres em geral”.

Diferente de minha expectativa, a discussão em torno do tratamento fantasioso para COVID-19 se fortaleceu com o passar do tempo. Semelhante a epidemias virais em populações não imunizadas, o assunto ganhou um novo pico de contágio, estando hoje mais forte do que nunca. É o feitiço do tempo, a controvérsia não passa. Como em epidemias virais, se a população não está suficientemente imunizada, haverá recorrência de surtos. Não estamos imunizados quando à irracionalidade das polarizações.

O fenômeno da utilização de condutas médicas sem base empírica não foi criado durante a atual epidemia, é antigo e prevalente. Nada de novo, apenas ganhou um novo nome, amanhã será outro nome. Portanto, não há motivo de perplexidade. Não precisamos de “líderes” promovendo terapias para que médicos e pacientes “acreditem” em condutas fantasiosas. Desde sempre acreditamos. 

A relevância de minha discussão não está na droga em si, nem mesmo na crença de médicos e pacientes. Refiro-me à falta de clareza do que se trata a racionalidade clínico-científica.

Perdemos o foco principal da discussão ao citar os recentes estudos negativos sobre o dito tratamento, publicados em revistas de prestígio de forma crescente. Assim como fugimos do tema quando falamos dos potenciais efeitos adversos da hoje tão popular droga. Estes não são argumentos que explicam a racionalidade científica. São argumentos quase tão fracos quanto os argumentos a favor do tratamento. 

Precisamos de esclarecer a filosofia científica. E nos afastarmos de discussões “menores”.


A Inversão do Ônus da Prova


A inversão do ônus da prova se concretiza quando procurarmos evidências contra uma conduta médica. O verdadeiro ônus da prova está no argumento a favor da conduta médica. 

O ônus da prova se aplica à escolha da conduta; não se aplica à não escolha da conduta.
O ônus da prova está na comprovação de eficácia; não está na comprovação de ineficácia.

Ateísmo é saber que não existe; agnosticismo é não saber se existe.
O paradigma ateísta é crente em sua ideia; já o paradigma científico é agnóstico. 

Em ciência, é impossível demonstrar que um fenômeno não existe. Em ciência, apenas podemos demonstrar se algo existe. 

Não podemos demonstrar que disco voador não existe, pois haverá sempre alguém argumentando que a observação foi insuficiente no tempo ou no espaço para que um ovini fosse visualmente capturado.

Da mesma forma, não podemos demonstrar que um tratamento não funciona, pois sempre haverá crítica em relação ao desenho do estudo. Nunca saberemos o resultado de outra dose, administrada de outra forma, feita em outro momento da doença (mais precoce) ou em um tipo de paciente mais adequado. A pesquisa nunca se esgotaria. Impossível concluir. 

Assim, partimos da inexistência como estado basal do pensamento (hipótese nula). E mudamos quando for demonstrada existência. O ônus da prova está na existência, a ser comprovada por evidências empíricas ou por leis naturais que tornam alguns fenômenos de extrema probabilidade (paradigma do paraquedas). 

Assim, não cabe à ciência demonstrar que o tratamento não funciona. Os estudos são desenhados para demonstrar que funciona. E na medida em que os estudos falham, prevalece o desconhecimento a respeito do benefício.  

Não temos motivo para prescrever a popular droga. Não precisamos de um motivo para desprescrever. 

A equivocada tentativa de argumentar contra a prescrição fabrica um equilíbrio na discussão, causando a interminável polarização. Ambos os lados terão argumentos pífios a favor de sua ideia. 

E devemos lembrar que um estudo negativo não é o que prova ausência, é o que não consegue provar presença. Não precisamos provar ausência.


O Risco da Droga


Na ausência de benefício, usar como argumento o risco de tratamento viola a racionalidade do pensamento clínico.

Em primeiro lugar, segurança não é argumento para a prescrição. O argumento primário é eficácia.  Ser seguro não justifica o tratamento. Assim como risco não é argumento para não prescrever, pois prescrevemos adequadamente muitas terapias de alto risco (desde que haja um benefício justificável).

Segundo, no caso da droga que protagoniza debates nacionais, não temos evidências concretas quanto ao risco (incidência, probabilidade) de desfechos indesejados. Nem percebo as argumentações sobre risco virem acompanhadas da descrição quantitativa e qualitativa de arritmias. As coortes publicadas não citam arritmias, exceto o registro hoje publicado no Lancet (fui despertado com uma enxurrada de mensagens), que descreve 5% de incidência de arritmias ventriculares, mas sem mencionar a importância clínica. Esses dados se invalidam pelo caráter observacional e não cego dos estudos: o uso da droga é acompanhada de monitoramento para arritmias, levando a maior registro de arritmias, que poderia estar presente na mesma frequência no grupo de não usuários da droga. Além disso, indivíduos que usam são mais graves. Evidências precisariam ser proveniente de ensaios clínicos randomizados, duplo-cegos. Ainda não temos nenhum com amostra suficiente para descrever este risco. Portanto, sem evidências, não podemos falar em risco.

Terceiro, falar do risco de efeito clínico adverso é minimizar o paradigma das “consequências não intencionais”, alicerçado na multiplicidade e imprevisibilidade: tudo tem custo, que é de diversas ordens. Diversas probabilidades independentes, não condicionais, que se somam. Assim, a probabilidade de uma das múltiplas e desconhecidas consequências negativas ocorrer é sempre maior do que a única consequência positiva que apostamos ao prescrever a droga (amenizar a doença).

Neste paradigma, a probabilidade do desconhecido supera a probabilidade do conhecido. Falar de arritmia é infantilizar a discussão científica. 

Esta inversão do ônus da prova (risco no lugar de benefício) em parte decorre do princípio bioético primum non nocere (primeiro, não prejudicar; first, do no harm), cuja forma de pensamento é conceitual, refere-se a princípios. O raciocínio clínico é pragmático, refere-se a tomada de decisão: decidimos agir com base no benefício da ação. Em seguida, esse processo passa pelo crivo da segurança. 

Portanto, o raciocínio de segurança necessita da presença da ação: algo inseguro é algo que seria feito se fosse seguro. Não há sentido em definir como inseguro uma ação que não seria realizada.


Probabilidade a priori


Um importante alicerce para o princípio da hipótese nula é o pensamento científico bayesiano: antes de falar da evidência per si, precisamos estimar a probabilidade a priori da hipótese ser verdadeira. E o principal conceito nesta discussão é a diferença entre plausibilidade e probabilidade. 

A falta de percepção de uma baixa probabilidade pré-teste promove o “mito da descoberta”, caracterizado pela hipervalorização das novas evidências, compartilhadas de forma epidêmica nas redes sociais: “evidenciomania”. A adequada percepção da baixa probabilidade pré-teste no caso do anti-malárico traria menos valor a evidências negativas (não mudam o status do pensamento) e às evidências positivas (estariam longe de confirmar o conceito) - e preveniria a hipercitação de evidências por ambos os polos da discussão, com se estivéssemos em um jogo para ver quem cita mais. 

Diferente do “mito da descoberta”, o conhecimento científico se constrói pelo acúmulo de informações. Não será o resultado de um estudo em meio a um vácuo probabilístico que vai resultar na descoberta. 

A grande quantidade de ensaios clínicos desenhados para testar a eficácia desta droga de baixa probabilidade pré-teste tem no “mito da descoberta” o combustível necessário para a corrida dos pretendentes a heróis científicos. É quando a ciência se perde em seu propósito, a pesquisa deixa de ser meio e passa a ser o fim. O resultado de um estudo toma o lugar da verdadeira compreensão da natureza como o objetivo da ciência. 

Preciso explicar porque esta hipótese tem probabilidade quase nula.

Ao nascerem, hipóteses são improváveis. Não notamos isso, pois nosso mundo perceptivo se constrói com base na falácia narrativa daqueles que convivem apenas com as hipóteses que vingaram como verdadeiras. No entanto, para cada hipótese que se confirmou verdadeira, houvera uma infinidade de hipóteses boas que não vingaram. Estas ficam esquecidas pela história, comprometendo o denominador, e gerando a impressão que a probabilidade a priori de uma hipótese é maior do que sua realidade. 

As hipótese que nascem são improváveis pois nascem com base em plausibilidade (mecanismos, estudos experimentais). Plausibilidade é diferente de probabilidade. Há inúmeras hipóteses plausíveis que não se confirmaram nas provas de conceito. O fenômeno de reversão médica decorre da crença exacerbada em plausibilidade, do viés de confiança por coerência. Probabilidade não é determinada por plausibilidade. 

Probabilidade é influenciada pelo resultado de estudos preliminares ou evidências indiretas, pertencentes ao campo de pesquisa. 

A hipótese de eficácia do antimalárico nasceu de um racional mecanicista, reforçado por citação de estudo in vitro: plausibilidade. 

Embora sempre baixa ao nascer, a probabilidade pré-teste de uma hipótese pode variar com evidências indiretas e comportamento do campo científico. No primeiro caso, estudos clínicos com a tal droga não comprovaram eficácia em outras doenças virais, como foi o caso do teste em pacientes com influenza. Em segundo lugar, em diferentes campos científicos, drogas de repropósito têm baixa probabilidade (anti-malárico usado como anti-viral). Portanto, este é o caso de uma hipótese cuja probabilidade a priori está nos mais baixos percentis.

Hipóteses que vingam nascem com uma probabilidade inicial, que aumenta progressivamente na medida em que estudos preliminares positivos aparecem em sequência. Estes estudos exploratórios aumentam a probabilidade até uma faixa intermediária, justificando o momento para o teste confirmatório: um estudo de fase III, que se positivo eleva a probabilidade de intermediária para alta. Desta forma, para ser confirmatório, um estudo requer duas condições: ser de alta qualidade científica e ser realizado em ambiente probabilístico intermediário. 

O cerne da discussão não poderia ser a droga em si, mas como o conhecimento científico deve ser construído: com base em probabilidade, que evolui a partir da condição a priori e com resultados de evidências sequenciais, que devem ser avaliadas em relação a sua acurácia científica. 

Se pensássemos assim, a ideia deste tratamento seria periférica, apenas mais um a passar pelo processamento normal do ecossistema científico, evitando o desvio de energia cognitiva e gasto de esforços científicos nesta questão. 


O Cerne da Questão


O cerne da questão não é o antimalarial, que representa apenas um exemplo da cultura médica permeada de irracionalidade. Em uma hierarquia de prejuízo ao paciente, o antimalarial é um caso relativamente benigno quando comparado a rastreamentos de certos cânceres, de doença coronária ou carotídea, quimioterapias fúteis e tantas outras medidas típicas da cultura médica. 

O maior problema não são fantasias que se parecem com fantasias, como fosfoetanolamina, ozonioterapia ou o antimalárico. O pior problema não é a caricatura da realidade, é a própria realidade: os meses coloridos que fazem propaganda de doenças, promovendo procedimentos fúteis, overdiagnósticos e overtratamentos. A pandemia da irracionalidade já nos contagiava antes do coronavírus. 

Não há culpados, somos apenas profissionais em estágio evolutivo ao longo do último século, quando se estruturou o paradigma epidemiológico. Um paradigma que se estruturou, porém ainda não se tornara habitual ao pensamento médico quando a epidemia nos surpreendeu.

A insistência na polarizada discussão sobre esta droga enfocar em um pequena árvore, esquecendo a perspectiva da floresta em que vivemos. Isso explica o feitiço do tempo. 


OBS: após concluído o texto, para quem não mora do planeta terra: a tal droga é “hidroxicloroquina”. 


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