Canais de Luis Correia

domingo, 24 de janeiro de 2021

Medicina Baseada em Evidências não pode ser uma imposição

 

Manifestações sugerindo que Conselhos regulem o exercício da medicina no sentido de decisões baseadas em evidências têm se tornado frequentes. Estes recentes artigos e cartas abertas são motivados pela  notória irracionalidade das prescrições de drogas fantasiosas para COVID-19. Se por um lado o diagnóstico de irracionalidade é adequado, questiono a efetividade da solução proposta. 


Este tipo de proposta me parece ingênua e talvez advenha do parcial entendimento do que se trata “medicina baseada em evidências”. Mais que uma forma de agir (prescrever), é uma forma de pensar (racionalizar). E não impomos maneiras de pensar … podemos, influenciar, educar, motivar e moldar uma cultura em prol da racionalidade científica. Mas isso não se faz por regulamentação. 


A atividade médica tem duas vertentes, uma técnica e outra cognitiva. A primeira pode ser regulada com base em regras: posso obrigar que todo cirurgião, antes da cirurgia, faça um checklist para aumentar segurança de seu ato médico. A segunda, é impossível de regular, pois é uma atividade interna do médico (inside-out), um processo de decisão baseado em incerteza. 


Imagine que decidíssemos proibir (tornar um crime) a prescrição individual de antimaláricos, remédios de verme e de piolho para tratamento de COVID-19. A regulamentação (proibição) poderia prevenir eventos adversos dessas drogas, no entanto não estaríamos resolvendo o principal efeito colateral deste tipo de prescrição: a promoção da cultura da irracionalidade ou da cultura da fé aplicada a atos profissionais. Não estaríamos entrando no cerne do problema. Estaríamos isentando o médico da responsabilidade de pensar, defender e assumir suas próprias decisões. 


Entendo a preocupação contida nestas manifestações. Porém, do ponto de vista de um acadêmico cuja atividade principal há 15 anos é o ensino do pensamento científico aplicado a decisões médicas (medicina baseada em evidências), estas propostas de regulamentação parecem simplórias. Não podemos criminalizar a irracionalidade, pois esta é inerente da mente humana. O caminho é a discussão, não a polarização; o treinamento, não a imposição ou punição. 


Pior, este tipo de conduta (a regulamentação) nem mesmo seria “baseada em evidências”. Há uma vasta literatura comportamental apontando para a incerteza do efeito benéfico de proibições. Seria um paradoxo, impor medicina baseada em evidências sem evidências de que esta imposição seria benéfica para a sociedade. 


A ingenuidade desta proposta reside também na falta de percepção de que atos médicos irracionais ou não baseados em evidências são (muito) prevalentes em medicina, fazem parte de nosso cotidiano … o fenômeno da cloroquina não surgiu com a COVID-19, sempre existiu. E há “cloroquinas” muito mais prejudiciais para a sociedade e indivíduos. 


Boa parte dos atos médicos irracionais não aparentam ser esdrúxulos. O maior perigo mora no que parece benéfico, mas não é. São as condutas inerentemente benéficas, porém aplicadas de forma inadequada e excessivas. Por exemplo, angioplastia coronária é um grande advento, muito benéfico em pacientes com infarto do miocárdio, porém fútil e prejudicial em pacientes estáveis assintomáticos ou oligossintomáticos. Quimioterápicos, alguns eficazes se bem indicados, são utilizados em condições de extrema futilidade. Diagnósticos, parte essencial da prática médica, ganham potencial maléfico quando feitos fora do contexto clínico (overdiagnosis). São estes tipos de “cloroquinas” que mais devem nos preocupar. E estes não podem ser regulados, pois dependem do pensamento médico. 


Achar que a solução está nos Conselhos de Medicina é reduzir a medicina a uma profissão meramente técnica …. é reduzir o paradigma da medicina baseada em evidências a uma fantasia regulamentar. 


Na verdade, não existe “medicina baseada em evidências”, este termo é apenas um avatar do que  deveríamos simplesmente denominar de “medicina”. Diferente da medicina tradicional, milenar, a medicina contemporânea tem a possibilidade de ser norteada por conceitos científicos advindos de um método novo (científico), criado no início do século passado. Hoje podemos e devemos utilizar evidências (de qualidade) como bússola no processo de decisão. 


Podemos ir mais fundo da descrição do processo médico… Decisões não devem ser apenas cópias de evidências científicas. O processo cognitivo deve ser norteado por conceitos científicos comprovados, mas também levar em conta particularidades clínicas e preferências do paciente, além de características do ecossistema a sua volta. 


A qualidade do processo de decisão médica reside na principal característica que define o problema: a incerteza. Sendo medicina a tomada de decisão diante da incerteza, o objetivo não será  a decisão certa, esta não existe no momento da escolha. Só saberemos o que foi certo (ou errado) depois. O objetivo é a melhor decisão. Não podemos confundir certo e melhor. A escolha do melhor é um processo probabilístico e as probabilidades residem nas evidências. Na verdade, “evidências são um meio, não um fim.”


Esse processo não pode ser regulado. Seria como querer regular como dirige um piloto de Fórmula 1. Diferentemente de ser regulamentado, este piloto pode evoluir com treinamento, aprimoramento reflexivo, cognitivo. Portanto, ao invés de regulamentação, precisamos de evolução da habilidade de pensamento e atitude reflexiva. 


Mas isso não basta, precisamos de algo que promova motivação intrínseca em prol desta evolução. Como fazer isso em um mundo cuja motivação está nos poucos minutos de fama advindos de postagens no Instagram (motivação extrínseca)?


O autor comportamental Daniel H. Pink propõe que um dos pilares da motivação intrínseca é a sensação de maestria. Não foi por acaso que fiz analogia com pilotos de Fórmula 1, pois estes remetem à excelência da pilotagem. E aqui está uma  solução para potencializar a racionalidade científica no médico. A indução da motivação intrínseca pelo desejo de excelência. 


Esta “indução” é denominada pelos cientistas comportamentais de nudge. Precisamos estimular as novas gerações (e as velhas também) à procura da excelência cognitiva, não apenas a técnica. No dia em que se tornar interessante procurar a maestria no processo de decisão, todos vão querer ser interessantes. Imaginem um mundo em que a “moda” é a racionalidade científica. 


Neste novo mundo, a mentalidade da prescrição (de qualquer coisa) baseada no paradigma da ação dará lugar à motivação pela excelência da escolha cognitiva. Neste mundo, médicos sentirão vergonha de prescrever cloroquinas e desejarão postar das redes sociais a maestria de seus processos de decisão baseados em incerteza e probabilidade. 


Não só médicos, toda a sociedade. Afinal, "medicina" é um termo genérico, advindo do latim mederi que significa “escolher o melhor caminho”.


O melhor caminho não está na regulamentação da maestria médica. 


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sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

2021: o Novo Valor da Incerteza



Em dezembro de 2019 vivíamos um outro mundo. Foi naquele mês que concluí minha TED Talk desejando um “ano novo imprevisível”. Era minha forma de valorizar nossa volatilidade, afinal meu tema era “O Valor da Incerteza”. 

Eu não tinha ideia de que a conclusão de minha talk se tornaria tão real. Do ponto de vista coletivo, vivemos o ano mais imprevisível de muitas décadas … O problema foi que o imprevisto veio na forma de uma maldição que causou 1.8 milhões de mortes. 


A princípio, eu poderia interpretar que a vida me ensinou a não desejar tanto o imprevisível, que é muito arriscado “brincar com a própria sorte”. Por outro lado, o maior benefício da valorização da incerteza não está nas boas surpresas que podem advir do acaso, pois quando temos sorte não precisamos de soluções cognitivas. O principal valor da incerteza está em utilizar o incerto para solução de problemas, pela construção de boas decisões clínicas, populacionais e pessoais. 


Por este motivo o desejo do imprevisível se tornou mais essencial em 2020. Desejar o imprevisível é reconhecê-lo como a principal lei da natureza, e utilizá-lo para tomada de decisões racionais. 


Essa racionalidade tem duas utilidades principais: primeiro, evitar uso excessivo de condutas médicas que remetem a uma futilidade prejudicial; segundo, evitar relutância excessiva nos processos de decisão. 


A primeira situação é a mais tradicionalmente discutida em medicina baseada em evidências: overuse. Se refere a evitar condutas que fantasiam uma segurança perceptível, mas reduzem a segurança real. Esse foi o ponto central de minha TED Talk no ano passado, quando usei o exemplo clínico do rastreamento da doença coronária em Papai Noel (overuse), nas vésperas do natal, e suas prováveis consequências não intencionais em cascata. 


Esta primeira aplicação da incerteza, que diz respeito ao paradigma clínico (individual), pode ser aplicada ao uso de tratamentos sem evidências de qualidade e com probabilidades a priori quase nulas. Nestes casos, a probabilidade de consequências não intencionais (clínicas, sociais, cognitivas, culturais) supera a ínfima probabilidade de benefício individual. Mas isso não é novidade em medicina, nem surgiu na era COVID. É apenas reflexo da antiga prática medica de confundir crença e evidência.


O que o ano de 2020 nos trouxe foi a relevância do segundo aspecto sobre a necessidade de valorização da incerteza. No final de 2020, a TED Talk II, se houvesse, seria o valorizar da incerteza em prol da assertividade de nossas decisões. Afinal, medicina baseada em evidências não é medicina baseada em certeza. Eu preferiria denominar de medicina baseada em incerteza ou baseada em probabilidade. Evidências servem para nos esclarecer a respeito das probabilidades, não para nos dar certeza. A assertividade de nossas decisões não podem depender de uma certeza que não existe, mas sim no saber raciocinar com o uso da incerteza. 


Evidência científicas, mesmo as de qualidade, não nos trazem certezas de consequências positivas. Uma conduta baseada em evidências (empíricas) confirmatórias de eficácia não é necessariamente a conduta “certa”. Na verdade, é a “melhor” oferta probabilística. Assim como uma conduta de plausibilidade extrema (evidência não empírica, naturalmente óbvia) não é garantia de benefício. Por exemplo, uma dose de insulina bem indicada pode promover hipoglicemia, queda, TCE e morte. Enfim, tudo se resume a escolha das melhores probabilidades. 


Evidências (empíricas ou naturais) ajudam a mensurar o grau de incerteza e avaliar se este ultrapassou o limiar do processo de decisão. Ultrapassando o limiar, incerteza não deve ser confundida com insegurança. 


Portanto, não escolhemos um conduta por termos certeza de seu resultado, mas por percebermos uma probabilidade que pesa assimetricamente para o benefício em relação ao potencial dano. E no caso de fenômeno sistêmico (populacional), a assertividade das condutas é reforçada pelo benefício exponencial. 


Aparentemente não estávamos treinados neste racional quando a pandemia nos pegou, de surpresa.


Em paralelo com surgimento do maior fenômeno sistêmico do último século, o valor da incerteza foi substituído pelo “apego à dúvida”, quando no início da pandemia surgiam controvérsias intensas a respeito do benefício de medidas de controle da transmissão da doença, muitas destas medidas de plausibilidade extrema, benefício exponencial, que faziam parte de conceitos científicos epidemiológicos bem estabelecidos. Até mesmo o conceito de custo-efetividade que se aplica a condutas individuais (quando muitos devem pagar o preço para um se beneficiar) foi sequestrado em prol do apego à dúvida. Epidemia é um fenômeno sistêmico, único. E há um único tratamento para um único problema, um único doente: a população. Não há muitos pagando para um se beneficiar.


A esta controvérsia se seguiu a irracional inversão do ônus da prova, quando proliferaram os ensaios clínicos no intuito de comprovar ineficácia de terapias de ínfima probabilidade a priori. A dúvida foi depositada na inexistência, sem perceber a incoerência científica desses processos de pesquisa. 


E no final do ano, quando nos chega a melhor solução, presenciamos o apego à dúvida no questionamento da eficácia ou segurança das vacinas. 


Nestes processos, falta a percepção de que dúvida é uma propriedade intrínseca da medicina. E certas decisões devem ser tomadas de forma assertivas, com base no limiar de dúvida. O grau de dúvida deve ser moldado pelas evidências empíricas de eficácia ou por princípios de racionalidade como plausibilidade extrema ou assimetria. Neste momento, entendendo que fé é inerente ao ser humano, devemos ter cuidado para que não ajustemos esse limiar de acordo com nossas crenças.  


Valorizar a incerteza é utilizar a dúvida como parte de um processo racional, que nos remete a probabilidades. Devemos evitar o (1) apego a certeza como justificativa de atos fúteis e (2) o apego à dúvida como justificativa para negar o potencial probabilístico de medidas de grande impacto potencial. 


Essa irracionalidade do uso inadequado da incerteza não decorre de má intenção, pelo menos em minha opinião. O que ocorre é que nossa sociedade ou sistema de educação pouco discute processos de decisão. Em medicina, profissão cuja essência está em tomar decisões frente a incertezas, não é diferente. Estávamos órfãos de racionalidade quando a pandemia nos pegou de surpresa. E essa é uma lição importante, precisamos nos alfabetizar cientificamente.


 Por outro lado, “se o vento apaga a vela, por outro lado aumenta o fogo”, como diz Nassim Taleb. Ser antifrágil não é apenas ser resistente ao choque, mas é crescer com o choque. Podemos, se quisermos, utilizar a volatilidade que a pandemia nos trouxe para nos tornarmos mais fortes cognitivamente. Para isso, precisamos discutir sobre racionalidade, em um formato não polarizado. Uma discussão de conceitos, evitando controvérsias pontuais ou pessoais. Uma discussão impessoal, quase anônima, na qual as ideias interagem quimicamente em prol de uma nova fórmula. A fórmula da racionalidade. 


Nos tornamos frágeis enquanto sociedade quando politizamos uma discussão que deveria ser permeada de pureza científica. Condutas médicas ou opiniões epidemiológicas hoje são confundidas com condutas de direita ou de esquerda. A irracionalidade ou exagero não está apenas nos de opiniões contrárias às apresentadas neste texto. Percebo inadequação ou exagero em posicionamentos de "defesa da ciência", quando estes são influenciados por posicionamentos políticos. Morro de medo de me tornar um dogmático científico. 


Ambos os lados do corredor político tem faltado com racionalidade, quando permitem que posicionamentos médicos ou científicos sejam contaminados por tendência política. Nessa hora, o legítimo da política é utilizado de forma ilegítima. 


Ciência e política possuem importante interface, na medida em que decisões políticas devem ser baseadas em evidências científicas. Mas cometemos um grande equívoco quando invertemos os fatores dessa equação e deixamos nossas posições científicas serem influenciadas por preferências políticas. E essa é nossa tendência, sem querer. Assim, se quisermos promover de fato uma discussão em um plano maior, isento de vieses ideológicos em qualquer dos dois sentidos, precisamos separar as coisas. 


É por tudo isso que continuo desejando um ano novo imprevisível. Enquanto o controle da epidemia de coronavírus se tornou previsível, desejo algo quase inusitado: o surgimento da racionalidade nos processos de discussão científica. Que saiamos antifrágeis de uma epidemia que nos ensinou não apenas que vírus representam uma ameaça à humanidade. Essa pandemia nos ensinou que nossa principal ameaça está nas reações aos desafios permeada pelo conflito de dois interesses assimétricos: o interesse na solução e o interesse ideológico. 


Que a volatilidade de 2021 nos surpreenda com a vacina da racionalidade. 


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