Canais de Luis Correia

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Sacubitril/Valsartana em Chagásicos (PARACHUTE-HF): Uma Reflexão Necessária

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Há dias um amigo me chamou atenção da publicação do protocolo do ensaio clínico PARACHUTE-HF, fazendo um trocadilho de que este seria um paraquedas furado. Este ensaio clínico em andamento compara Sacubitril/Valsartana versus Enalapril em pessoas com miocardiopatia chagásica. 

Seria redundante usar todo este post para repetir a crítica metodológica que fizemos anos atrás, quando comentamos sobre o estudo PARADIGM-HF. O que este protocolo traz de original é a população chagásica, vulnerável biológica e socialmente. A vulnerabilidade biológica é retratada pelos comentários de alguns colegas que, ao longo desses anos, me diziam “não ter tido coragem” de incluir nenhum paciente neste estudo. A vulnerabilidade social é mais fácil de ser percebida se o modelo biomédico der espaço ao modelo ecosocial de saúde, ou como se diz, “determinantes sociais de saúde." A causa primária da doença de chagas não é o barbeiro ou o tripanossoma, é o fator social.

O "parachute" é furado no que tange à inconsistência da terapia vasodilatadora quanto se compara o grupo controle ao grupo droga. Em inferência causal, o critério de “consistência da exposição” é violado quando diferentes versões da exposição são misturadas. Por exemplo, água mata? Se consideramos um copo de água, claro que não. Mas se consideramos uma piscina, esta mata algumas vezes. E a versão de um tsumani é ainda mais fatal. Essa analogia virou um clássico artigo do epidemiologista Miguel Hernan sobre o critério de consistência da exposição. Pois bem, a inovação farmacológica é o Sacubitril, não a Valsartana. A inferência causal é a respeito da inovação. O interesse clínico genuíno é saber se o "custo clínico" do uso de mais uma droga hipotensora é compensado pela redução de eventos clínicos, como descompensações de insuficiência cardíaca ou mortalidade. Portanto, sacubitril (exposição) versus não sacubitril (não exposição) deve ser comparado em populações de consistentes terapias vasodilatadoras. 

Por alguma razão, desde o advento do primeiro estudo (PARADIGM-HF) decidiu-se padronizar a Valsartana no grupo Sacubitril, tendo sua dose máxima como alvo, versus enalapril no grupo controle, dose intermediária. Justificava-se que o enalapril teria sido usado em outros estudos em doses menores quando houvera sido comparado a placebo. Não se trata de discutir prescrição clínica de dose baseada em estudos prévios, a questão é inferência causal. Para um novo estudo de eficácia comparativa (inovação versus tradicional), deve-se montar um protocolo consistente. Por que ter drogas diferentes como terapia vasodilatadora basal? E por que uma droga tem uma dose alvo diferente da outra, em termos relativos?

O antigo estudo PARADIGM-HF sugeriu que o uso de Sacubitril agrega valor clínico, mas ficamos sem saber se essa diferença decorreu desta inovação, da maior intensidade da terapia vasodilatadora basal ou de ambos. Estudos subsequentes que foram mais consistentes nesta dose, alguns inclusive usando Valsartana nos dois grupos, não foram convincentes como o PARADIGM-HF. Revisão sistemática publicada este ano mostra que a superioridade do Sacubitril se limita aos estudos que tinham inconsistência de exposição.

O PARACHUTE-HF é mais um estudo que objetiva avalia a eficácia do Sacubitril, associado ao Valsartana com dose alvo máxima, com a originalidade de avaliar uma população de chagásicos. Por que chagásicos? 

Para os que estão convencidos de que Sacubitril/Valsartana é superior ao tratamento tradicional, torna-se questionável randomizar uma população com insuficiência cardíaca para não usar este tratamento. Em medicina, uma vez comprovado um conceito de eficácia, este é expandido para populações externas desde que não haja um motivo que sugira forte modificação de efeito. Na prática, consideramos a diferença de cada paciente em relação à população do estudo, e variamos o cuidado na prescrição. O pensamento de validade externa é essencialmente clínico, e nos permite adaptar um conceito científico para um paciente em participar. Do ponto de vista científico, devemos ter cuidado em protocolar um grupo para não uso de uma terapia superior. Chagásicos têm uma etiologia diferente, mas a insuficiência cardíaca sistólica é fisiopatologicamente  parte do mesmo processo. Seguindo este racional, todos os outros tratamentos de insuficiência cardíaca, comprovados em outros tipos de populações, são utilizados nos chagásicos com base nestas evidências indiretas (Princípio da Complacência). 

Mas tem aqueles, como eu, que têm dúvida se Sacibitril/Valsartana é superior ao tratamento tradicional. Para estes, o PARACHUTE-HF é um estudo que ainda tenta avaliar a superioridade de um tratamento para insuficiência cardíaca. Neste caso, incomoda o teste de eficácia primária em uma população vulnerável. 

Portanto, seja qual for a premissa inicial da eficácia comparativa do Sacubitril/Valsartana, a escolha desta população vulnerável se direciona para um lado indesejado no subjetivo espectro da ética em pesquisa.

Historicamente, princípios de ética em pesquisa foram aprimorados nos Estados Unidos pelo Belmont Report em 1979, após o Tuskegee Study, que observou a história natural de Sífilis em uma população socialmente vulnerável de negros americanos. Não proponho comparar o PARACHUTE-HF com o Tuskegee Study ou com outros casos emblemáticos, mas a questão social é um contexto especialmente importante no Brasil, onde disparidades em saúde são mais fortes. Em um ensaio sobre os princípios do CONEP publicado em revista de saúde pública, Karla Amorim menciona: “ao se falar nos estudos multicêntricos, merecem destaque os ensaios clínicos de medicamentos. Observa-se, por vezes, que tais pesquisas têm como proponente principal as indústrias farmacêuticas, com sede em outros países, onde o centro de pesquisa brasileiro e seus membros recrutam os pacientes brasileiros que, além de se apresentarem vulneráveis pela doença, são socioeconomicamente vulneráveis.’’ Aqui não falamos apenas de brasileiros, falamos de pessoas brasileiras com doença de chagas.

Não proponho uma visão binária de caracterizar PARACHUTE-HF como ético ou antiético. Mas precisamos trazer essa discussão, sob o entendimento de que um certo desvio no espectro ético parece se dar por uma falha na construção da “pergunta de pesquisa”, que tem na escolha da população um componente essencial. Isso pode decorrer da visão meramente biomédica, que desconsidera Chagas como uma doença social. Nota-se a falta de qualquer menção no protocolo deste estudo de quem trata essa população do ponto de vista social.

O incômodo com a população vulnerável em um ensaio clínico se soma à teimosia com a inconsistência de terapia entre os grupos, repetindo no PARACHUTE-HF a estratégia do PARADIGM-HF. No final, não saberemos se um resultado positivo significa eficácia do Sacubritil. Assim, uma população vulnerável é submetida a um estudo que tem risco de ser inconclusivo na visão de inferência causal, embora possa ser conclusivo na visão de interesses diversos ao da saúde pública.

É genuíno querer avaliar se um efeito comprovado para uma população alvo pode ser transportado para outra população-alvo. No entanto, este refinamento de conhecimento de efeito terapêutico pode ser obtido por estudos de efetividade, com desenhos observacionais cuidadosos, usando metodologias como target trial emulation para avaliar heterogeneidade de efeito. A insistência na repetição da observação empírica no mesmo modelo em diferentes grupos faz parte do que se denomina de realismo inocente (naive realism), quando achamos que a observação é a realidade. População vulnerável requer maior flexibilidade de protocolo em um ensaio clínico (por exemplo, estudo aberto para ajuste de dose como foi o caso do PARACHUTE-HF), comprometendo o próprio rigor deste desenho.

Aos poucos, a ciência médica vai evoluindo da tradicional pirâmide de evidências para a “triangulação de evidênicas”, quando diferentes desenhos possuem valor complementar. Para tratamentos, um conceito inicial de eficácia deve ser comprovado em uma população ideal, utilizando um protocolo ideal, como um rígido ensaio clínico. Após estas validações, diferentes desenhos de estudos triangulam no refinamento do conhecimento, na transportabilidade, em uma “complacente” triangulação de evidências. 

Inferência causal não é constituída apenas de empirismo (observação). Não “vemos” a causa em um ensaio clínico randomizado. O que registramos na observação é associação. Para traduzir a associação para causa, faz-se necessário um modelo de pensamento de causalidade que contém premissas importantes, entre elas a consistência da exposição. Inferência é ver fumaça e interpretar como fogo. Neste contexto, o realismo ingênuo e um limitado entendimento a respeito da triangulação de evidências talvez sejam componentes responsáveis por este duvidoso protocolo de estudo. 

Este exemplo demonstra que uma posição questionável dentro do espectro da "ética em pesquisa" nem sempre decorre de ética moral. A "ética em pesquisa" é fortemente entrelaçada com a habilidade de pensamento científico para a construção da pergunta da pesquisa e da estratégia de investigação. 

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Apoio: Fundação Maria Emília 

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Benefício Líquido em Saúde


 

Em economia, a mediada ponderada mais utilizada é a de custo-benefício, em que o custo e o benefício são colocados na mesma unidade, para que comparação fique intuitiva e clara. Por exemplo, uma medida de saúde pública para redução de acidentes de trânsito (construção de melhores estradas) pode quantificar as vidas salvas em unidade monetária, visto que as diferentes sociedades definem o “valor estatístico de uma vida” para fins de tomada de decisão. Desta forma, se compara o ganho de vida em dólares versus o gasto com estrada em dólar. Isso torna intuitivo o processo de decisão. Outra alternativa é transformar o custo das estradas em números de vidas salvas, ficando os dois lados da equação mensurados pelo benefício líquido.

No entanto, no campo da saúde, os estudos de economia costumam priorizar as medidas de custo-efetividade, onde o custo é monetário e a efetividade é clínica. A mais utilizada é a razão de custo-efetividade incremental, expressa em dólares por cada ano de vida salva, ajustado para qualidade. Embora o entendimento desta medida tenha se difundido, a utilização desta torna o processo de decisão enviesado. 

Primeiro, esta medida conota vidas perdidas devido a economia monetária, o que torna irracionalizável o processo de decisão. Segundo, esta medida diz respeito apenas à doença em questão, perdendo a perspectiva de custo-oportunidade do sistema de saúde. Estes dois problemas não ocorreriam caso fosse utilizada uma medida de custo-benefício. 

A medida ideal seria a de “net health benefit”, na qual o curso é transformado em vidas. Sabendo-se a definição do limite custo-efetividade de um país, podemos transformar custo da terapia em vidas. 

Por exemplo, consideremos que a definição do limite de custo-efetividade no Brasil é R$ 50.000 por ano de vida salva. Caso a terapia custe 1 milhão por vida salva, essa vida foi salva a um custo de 20 outras vidas (1 milhão / 50.000). Este cálculo se aplica a sistemas públicos universais onde o orçamento em saúde é fixo. Portanto, o gasto no orçamento para salvar essa vida custa ao sistema 20 outras vidas, caso esse mesmo valor fosse aplicado a um outro tratamento (de outra doença) definido como custo-efetivo. 

Assim, a medida de “net health benefit” deixa explícito a noção de custo-oportunidade, e eventualmente uma negação do tratamento traz a percepção de ganho para a sociedade, ao invés da percepção de perda para um paciente. Em paralelo, uma aprovação acima do limite de custo-efevidade deverá vir acompanhada de uma justificativa do porquê que nesta circunstância tratamento essa vida salva de forma assimétrica em relação a outra. Por vezes, existe esta justificativa. 

Devemos enfatizar que não se trata de encontrar formas mais confortáveis de negar tratamentos aos pacientes, mas sim evitar a “aversão à perda” que domina os processos de decisão baseados da razão de custo-efetividade incremental, e imputar o pensamento de custo-oportunidade ao norte da decisão. 

Conclusão

Diante da percepção de que há grande benefício, porém alto custo, o pensamento econômico-monetário deve ser baseado em custo-benefício e custo-oportunidade, ao invés de uma medida que confronta dinheiro e vidas.