Canais de Luis Correia

sábado, 19 de fevereiro de 2011

O Colesterol, os Cardiologistas e o Ministério da Saúde


Uma recente controvérsia a respeitos dos valores ótimos do colesterol nos serve de estímulo para discutir como devemos nos posicionar quando pensamos em medidas preventivas em saúde pública. Uma medida preventiva populacional deve ser o mais abrangente possível e para isso precisa ser democratizada, descomplicada. Quando pensamos em prevenção de doença cardiovascular, devemos simplificar a identificação de candidatos e uniformizar a terapia. Assim mais pessoas se beneficiarão. Esta é uma idéia que começa a surgir no meio cardiológico, embora ainda pouco difundida (vide Yusuf, Circulation  2010).  Vamos à história que motivou nossa discussão:

A Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) divulgou por e-mail aos associados e em seu site que enviou documento à Secretaria de Atenção à Saúde, solicitando alterações na Diretriz de Dislipidemia do Ministério da Saúde, colocada em consulta pública em dezembro de 2010.

Ao tempo em que mostra certa insatisfação por não ter sido consultada quando da preparação da Diretriz, a SBC expressa discordância quanto à concentração plasmática de LDL-colesterol que devemos considerar ótima. Do site da SBC:

“A entidade maior dos cardiologistas, que não foi consultada ou ouvida quando da redação da Diretriz, lembra ... que a recente "IV Diretriz Brasileira de Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose", da SBC, faz recomendações que podem levar à redução expressiva dos eventos cardiovasculares, ... mas essas recomendações não foram contempladas no documento gerado em Brasília.”

“Um dos argumentos dos cardiologistas é que na "Consulta Pública" o nível ótimo do LDL-colesterol (colesterol ruim) é apontado como inferior a 100 miligramas por decilitro de sangue, enquanto os cardiologistas consideram o nível ótimo muito mais baixo, inferior a 70 mg/dL.”

Procurei na notícia do site as referências que embasam as afirmações dos cardiologistas. Não há citações de quais evidências justificam a discordância em relação ao Ministério da Saúde. O documento enviado ao Ministério deve conter tais citações, mas não consegui achar o documento original no site.

Imagino que tenha sido principalmente o estudo JUPITER que instigou os cardiologistas ao posicionamento quanto ao valor ótimo do colesterol. Como já fizemos algumas vezes neste Blog, é sempre estimulante voltar a discutir o estudo JUPITER, pois ele é um bom exemplo para treinamento de análise crítica de  artigo científico.

O estudo JUPITER foi um ensaio clínico que avaliou indivíduos sem doença cardiovascular, de risco intermediário, com mediano do LDL-colesterol de 108 mg/dl, randomizados para usar estatina ou placebo. A concentração final de LDL-colesterol apresentou mediana de 55 mg/dl no grupo estatina, sendo observado redução de eventos cardiovasculares.

Provavelmente, esta evidência de benefício da estatina é verdadeira. Mas não basta que uma informação seja verdadeira, sua aplicabilidade deve depender também da relevância (magnitude do benefício). Principalmente quando a recomendação é populacional, feito pelo ministério da saúde de um país.

Os autores do estudo JUPITER argumentaram na época que a magnitude do benefício foi surpreendente. Porém o cálculo do número necessário para tratar (NNT) em cinco anos para prevenir um evento cardiovascular foi totalmente impreciso e extrapolado. Isto porque o JUPITER foi um estudo truncado (interrompido antes da hora) e apenas 300 dos 18.000 pacientes foram seguidos pelos cinco anos planejados. Apenas 7.000 dos 18.000 pacientes foram seguidos por pelo menos dois anos. Isso dá uma imprecisão enorme na estimativa da magnitude do efeito da intervenção durante cinco anos. Se utilizarmos os dados do hazard fornecido pelo estudo, podemos fazer nosso próprio cálculo do NNT para prevenir uma morte no período de um ano, o que dá 400 pacientes. Se compararmos com estudo 4S, por exemplo, este NNT é 160, bem menor.

Segunda coisa importante é que o cálculo do NNT do JUPITER foi para desfechos combinados. Dentre estes desfechos, está a necessidade de internação por angina e revascularização. Estes eventos são menos importantes do que infarto, AVC ou morte, e nunca haviam sido considerados nos estudos clássicos de estatina. Portanto, do ponto de vista qualitativo, o tipo de evento prevenido também foi menos importante em boa parte das vezes. Metade dos eventos do estudo foi representada por estes dois tipos de desfecho.

Analisando a seqüência histórica de ensaios clínicos sobre eficácia de estatinas, percebemos que o grande benefício é proveniente do simples uso de estatina. Ao passo que o benefício adicional de uma terapia mais agressiva em relação a uma terapia moderada é de menor magnitude, embora existente. O próprio estudo PROVE-IT que comparou terapia agressiva versus moderada em pacientes com síndromes coronarianas agudas (extremo superior de gravidade) mostrou um NNT para morte quatro vezes maior do que o observado no estudo 4S, que comparou estatina versus placebo. Imaginem isso em prevenção primária, o benefício seria menor ainda. Pena que não há estudo que compare terapia agressiva versus moderada em prevenção primária.

Ou seja, a grande diferença mesmo é obtida quando se introduz a estatina, independente de sua dose. O ganho adicional de uma dose alta ou de uma estatina mais potente é proporcionalmente bem menor.

Além disso, o JUPITER estudou pacientes de risco intermediário (selecionados a partir de um valor elevado de proteína C-reativa), enquanto a população geral tem risco menor do que a amostra deste estudo. Isso faria com que a magnitude do benefício fosse menor ainda na população geral.

Do ponto de vista de saúde pública, o importante é difundir o uso de estatina para quem precisa. Ou seja, uma estatina barata em dose moderada, oferecida de forma generalizada para pacientes com dislipidemia, mesmo que discreta. Ficar falando em terapia agressiva, em meta de colesterol em torno de 70 mg/dl, nos faz perder o foco populacional. Com o custo de 1 terapia agressiva para colesterol, seríamos capazes de tratar 4 pacientes da forma convencional. 

Além disso, como dito acima, a terapia agressiva nunca diretamente foi comparada à terapia moderada em prevenção primária. Assim, não podemos saber precisamente dados de custo-efetividade a este respeito.

Técnicos do Ministério da Saúde pensam com o foco da saúde pública, enquanto cardiologistas pensam de forma individualizada, pois tratamos pacientes e não populações. Isso é natural. Por este motivo que os cardiologistas não concordaram com a Diretriz. Por sinal, muito bem escrita, em forma de revisão sistemática. Deveríamos nos mirar nela ao escrever nossas Diretrizes.

Na verdade, alguém poderia argumentar que do ponto de vista estritamente cardiovascular, o colesterol ideal é provavelmente zero, quanto mais baixo melhor. A controvérsia em cima de um valor ideal (70 mg/dl vs. 100 mg/dl) é algo muito mais filosófico do que de ordem prática. Para ser de ordem prática, do ponto de vista populacional deveria existir evidência, a evidência deveria ser relevante e a relação de custo-efetividade deveria estar bem definida.

Enfim, o ótimo é inimigo do bom, principalmente em saúde pública. É natural que uma diretriz do governo seja diferente de uma diretriz de uma sociedade cardiológica. O enfoque é diferente.

8 comentários:

  1. Muito contente com a volta do blog.
    A análise feita sobre a discordância de indicações está bastante esclarecedora.

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  2. Em entrevista recente à Folha de São Paulo, Dr. Jadelson Andrade, Presidente da SBC, falando sobre os conflitos de interesse dos médicos que elaboram Diretrizes pelas Sociedades Médicas, afirmou que “médicos de ponta geralmente são chamados pela indústria para participar de estudos e dar consultorias ou palestras”. E que, para ele, o ideal seria que “o governo destinasse uma verba para a produção de diretrizes clínicas formuladas por pessoas isentas de conflitos”.

    Não sei se entendi direito, mas tenho dificuldade em crer que a SBC não tenha condições de elaborar Diretrizes sem, ou com poucos, conflitos de interesse. E não entendi também porque a SBC reclama agora que “A entidade maior dos cardiologistas, que não foi consultada ou ouvida quando da redação da Diretriz (de Dislipidemias do Ministério da Saúde)”. Qual o problema que o Ministério da Saúde tenha destinado “uma verba para a produção de diretrizes clínicas formuladas por pessoas isentas de conflitos”. Não foi o sugerido???

    Vejam a reportagem no link: http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/870060-medicos-ligados-a-industria-ditam-regras-de-conduta.shtml

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  3. Júlio, excelente você ter trazido a reportagem. Lembra o problema dos conflitos de interesse (possivelmente presentes na história dessa postagem) e mostra como alguns dirigentes da SBC estão confusos.

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  4. Interessante a reflexão.. pois o que temos visto é um absurdo.
    No final das contas, a consulta o ato médico não vale mais nada, mas só a imposição do IMPÉRIO da industria que cerca a medicina, seja ela de medicamentos seja de produtos médicos.. já estamos pagando por isso com essa medicina, vejamos os hospitais privados.. estão LOTADOS com pessoas que poderiam muito bem estar nos consultórios e não internados fazendo exames..

    Abraços
    Leandro Serafim

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  5. Me arrisco a dizer que um dos grandes déficits da saúde pública no Brasil é justamente a carência de profissionais/gestores formados com o olhar da saúde pública, que segue uma lógica diferente da clínica individual para cada paciente.
    Ótimo post.

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  6. Luis, ótimo texto. Aproveito para sugerir a quem gostou: http://www.unisimers.com.br/videos/index.php?palestra=353 - complementa aspectos trazidos por ti... Um abraço, Guilherme

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