Canais de Luis Correia

sábado, 21 de janeiro de 2012

Dabigatran Causa Infarto? - Meta-análise de Antônio Alberto Lopes



Na recente postagem Dabigatran Causa Infarto?, sugerimos que essa idéia representava apenas uma ilusão meta-analítica:

Temos um estudo (RELY) de alta influência no resultado da meta-análise sugerindo aumento de risco, somado a um conjunto de estudos pequenos que não mostram associação. Qual o resultado final da meta-análise: prevalecerá o resultado de maior influência, a despeito dos outros estudos sugerirem ausência de malefício. 

Essa meta-análise não confirma o resultado no RELY, e sim praticamente copia o resultado do RELY. Os outros estudos não estão de acordo como RELY, simplesmente não conseguem anular seu resultado. Desta forma, é criada uma ilusão meta-analítica baseada apenas no RELY. 

Baseado nesta idéia, Prof. Antônio Alberto Lopes realizou uma meta-análise excluindo o estudo RELY. O resultado de sua análise está representado pelo texto abaixo e confirma nosso raciocínio. Vejam seu texto e o gráfico da meta-análise:


Prezado Luis,

Achei os dados interessantes e resolvi fazer uma reanálise dos dados com e sem os dados do RELY. Os resultados estão em anexo. A meta-análise do artigo foi de odds ratio mas como o risco do evento é pequeno a meta-análise de odds ratios e de riscos relativos mostram resultados muito semelhantes. Como você comentou os resultados mostrados no sumário da odds ratios (1,33 no artigo e 1,32 na re-análise) do evento coronariano agudo são em grande parte devido aos resultados do RELY, devendo ser observado que evento coronariano agudo não foi o evento primário. Na meta-análise sem o RELY a odds ratio e o risco relativo (1,12) ficam bem mais próximos da hipótese nula. O número necessário para lesar (NNH) no presente caso deve ser interpretado com cautela pois é o que se observa ao se comparar com pacientes não tratados usando outro anticoagulante. É errado, portanto, interpretar que dabigatran aumenta risco de eventos coronarianos agudos. Na meta-análise de diferença de risco incluindo todos os estudo o NNH foi de aproximadamente 667 (1/0,0015). Grosseiramente poderíamos dizer que ao tratar 667 pacientes com dabigatran em lugar do outro anticoagulante ocorre 1 desfecho adicional, no caso evento coronariano agudo. O NNH foi estimado em 2000 (1/0,005) ao se excluir o RELY da análise. Estes dados sugerem que a pequena diferença no isco de eventos coronarianos entre os grupos não permite concluir que o benefício de dabigatran é menor do que do anticoagulante usado para comparação. Outros eventos clínicos devem ser levados em consideração e o valor que é conferido  (pelo paciente e médico) para evento. 

Obrigado por trazer este trabalho para o meu conhecimento e pela sua análise crítica.

Abraço
Antonio Alberto


O conteúdo desta postagem foi aceito como Letter to the Editor, a ser em breve publicada nos Archives of Internal Medicine.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Eficácia versus Efetividade


Essas são duas palavras usadas como sinônimos na linguagem coloquial, porém de significado científico diferente. Eficácia é uma propriedade intrínseca de uma conduta médica. Efetividade é o resultado da interação do tratamento com o ambiente em que ele está sendo aplicado.


Imaginem um excelente jogador de futebol, Ronaldinho Gaúcho nos tempos áureos. Um gênio, recebeu o titulo de melhor jogador do mundo. Porém os entendidos afirmam que ele não brilhava da mesma forma na seleção brasileira. Ronaldinho era um jogador muito eficaz, porém na seleção brasileira era menos efetivo do que no Barcelona. Talvez devido à forma como ele era usado na seleção ou ao ambiente de glamour que o fazia perder o foco.

Agora imaginem uma droga. Em primeiro lugar, precisamos saber da sua eficácia e segurança. O melhor nível de evidência para responder esta pergunta são ensaios clínicos randomizados, que tenham eventos clínicos como desfecho. Uma vez isto demonstrado por ensaios clínicos de qualidade metodológica satisfatória, apenas outro ensaio clínico pode refutar esta informação.

Uma droga com clara demonstração de eficácia e segurança pode então ser liberada para utilização clínica. Aí entram os estudos de efetividade, que fazem parte de uma linha de pesquisa denominada outcomes research. Uma vez entrando na prática clínica, a droga deve ter seu efeito no mundo real monitorado por este tipo de estudo.

E nem sempre a eficácia se traduz em efetividade. Mas não por culpa da droga, mas sim por culpa do sistema de utilização ou por culpa do médico.

Por exemplo, na década de 90, o estudo RALES demonstrou eficácia e segurança da espironolactona em pacientes com insuficiência cardíaca grave (redução de mortalidade). Cinco anos depois foi publicado no New England Journal of Medicine o estudo Rates of Hyperkalemia after Publication of the Randomized Aldactone Evaluation Study. Este foi um trabalho observacional que mostrou aumento dos casos de morte por hiperpotassemia após a publicação do RALES (figura acima).

Maior incidência de hiperpotassemia também foi observada com o uso de espironolactona para ICC em nosso meio, de acordo com publicação de Constança Cruz e Carlos Marcílio.

Por que? Será que o ensaio clínico RALES estava errado e a droga é deletéria? Não, o fato ocorreu porque os médicos utilizaram a droga de forma indiscriminada, em pacientes com disfunção renal, sem a monitorização adequada. Estes são estudos de efetividade, que não vão de encontro aos achados do RALES, pelo contrário, ratificam que o esquema utilizado no RALES deve ser obedecido estritamente. Percebam assim que estudos de efetividade avaliam mais o médico ou o sistema do que a droga.

Por isso que afirmamos acima que o resultado de um ensaio clínico só pode ser refutado por outro ensaio clínico. Isto porquê estudos de efetividade não avaliam o valor intrínseco do tratamento.

Outro bom exemplo é angioplastia primária versus trombólise no infarto com supra. Angioplastia é um pouco mais eficaz do que a trombólise de acordo com ensaios clínicos randomizados. Porém se o tempo porta-balão (tempo para se iniciar a trombólise) for mais prolongado do que o tempo dos ensaios clínicos (90 minutos), esta superioridade da angioplastia se perde. E é isto que acontece em boa parte dos hospitais. O tempo para se iniciar a angioplastia é prolongado, e na verdade não se sabe se aquela angioplastia fora do tempo ideal não ocorre em detrimento de um tratamento mais efetivo, que seria trombólise em tempo hábil. É uma falha do sistema fazendo que um tratamento intrinsecamente mais eficaz, se torne talvez menos efetivo.

Trazendo estas definições para uma questão bem contemporânea, ultimamente o FDA vem alertando sobre relatos de sangramentos graves com o dabigatran no mundo real, aparentemente mais do que o número de relatos com warfarina. Estranho, pois no ensaio clínico randomizado RELY, seu perfil de segurança foi igual à warfarina e a eficácia um pouquinho superior. O RELY falhou em detectar o verdadeiro risco da droga? Não, o RELY está correto. Estes relatos, os quais no futuro poderão vir na forma de estudos observacionais melhor sistematizados, servem de importante alerta de que no mundo real pode estar havendo um uso inadequado ou indiscriminado da droga.

De fato, o maior risco do dabigatran é a banalização da indicação de anticoagulação. Considerando a complexidade que é anticoagular um paciente com warfarina, o médico antes pensava duas vezes para introduzir o tratamento. Agora com a facilidade do dabigatran, pessoas de alto risco de sangramento podem estar recebendo anticoagulação, que antes não recebiam com warfarina. Estes relatos nos lembram que a indicação de anticoagulação com dabigatran é a mesma da warfarina, os mesmos critérios de ponderação risco-benefício devem ser  usados e não devemos ser mais liberais da indicação só porque agora temos dabigatran. Além disso, à semelhança do caso da espironolactona, pacientes com disfunção renal (CC < 30 ml/Kg/min) não devem usar dabigatran.

Para garantirmos que uma terapia eficaz seja também efetiva, devemos analisar com cuidados que tipo de paciente foi testado no ensaio clínico e como a terapia foi instituída. Principalmente nos momentos de experiência inicial com novas terapias, devemos ser rígidos e utilizar os mesmos critérios na prática clínica. Se fizermos isso, a eficácia provavelmente terá seu correspondente de efetividade.

Em conclusão, estudos de eficácia e segurança falam de coisas diferentes, seus resultados se complementam e não entram em conflito. Devemos defender o tipo de evidência certa (ensaios clínicos ou outcomes research) para a pergunta certa (eficácia ou efetividade, respectivamente).

OBS: Depois falaremos de uma outra palavrinha parecida, porém de significado diferente: eficiência.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Dabigratran Causa Infarto - Verdade ou Ilusão Meta-analítica?



Nesta semana que passou foi publicada nos Archives of Internal Medicine a meta-análise intitulada Dabigatran Association With Higher Risk of Acute Coronary Events. O assunto teve grande repercussão nos sites de cardiologia e mereceu um editorial da revista. 

Quando se fala de uma informação proveniente de meta-análise, normalmente se interpreta como um nível de evidência definitivo, quase como a voz de Deus. Porém meta-análises também devem passar pelo crivo da análise crítica metodológica. 

Antes de iniciar esta análise, vamos primeiro fazer uma pequena revisão história sobre o dabigatran, voltada para os não cardiologistas leitores deste Blog.

Um dos maiores sonhos do cardiologista tem sido anticoagular cronicamente um paciente com uma droga de ação estável e previsível, sem necessitar de controle laboratorial (RNI). Parando um pouco para refletir, percebemos que quase todas as drogas funcionam assim, a ação é tão previsível que não precisamos medir laboratorialmente seu resultado. Os anticoagulantes, por outro lado, sofrem interferências biológicas e de fatores ambientais, resultando em uma ação instável. Portanto sua farmacologia precisa ser monitorada constantemente.

Assim sempre funcionaram os dois mais tradicionais anticoagulantes, heparina não fracionada (uso hospitalar) e a warfarina (uso ambulatorial). Na década de 90 foram descobertas as heparinas de baixo peso molecular, cuja administração poderia ocorrer de forma subcutânea e não se fazia necessário monitoramento laboratorial, pois estas pouco se ligavam a proteínas plasmáticas, o que fazia de sua ação estável e previsível. Ensaios clínicos randomizados demonstraram que as heparinas de baixo peso molecular são não inferiores à heparina não fracionada em diversas patologias (em alguns casos até superiores), disseminando o uso destas drogas em detrimento da heparina não fracionada. Agora foi a vez do surgimento de uma alternativa prática de anticoagulantes orais. Os inibidores diretos da trombina de administração oral foram desenvolvidos da década passada e não necessitam de monitoramento laboratorial. Seria a grande esperança. Primeiro veio o ximelagatran, porém estudos iniciais mostraram que esta droga era muito hepatotóxica. Foi uma decepção. Mas aí inventaram o dabigatran, droga que se mostrou segura do ponto de vista hepático. O ensaio clínico randomizado RELY, publicado em 2009, testou o dabigatran na prevenção de eventos embólicos em pacientes com fibrilação atrial, demonstrando não inferioridade do dabigratan em relação ao warfarina e até mesmo uma pequena superioridade na dose de 150 mg (NNT = 345). Não houve aumento de sangramento com dabigatran em relação à warfarina. Desta forma, ficou demonstrado que tínhamos uma droga de uso muito mais prático do que warfarina, de eficácia e segurança comparáveis. Sonho realizado, pelo menos para a indicação de fibrilação atrial. O problema restante seria o preço da droga, muito alto (em torno de 150 reais por mês), o que deve perdurar nos próximos anos.  No entanto, agora estão dizendo que o sonho de anticoagular os pacientes sem precisar medir o TP causa infarto do miocárdio. Estranho, um anticoagulante causando infarto. Os próprios autores da mata-análise afirmam "We do not know the pharmacologic mechanism that may result in dabigatran increasing the risk of MI or ACS." Mas não saber o mecanismo não significa que a informação não é verdadeira, precisamos analisar sem preconceito contra ou a favor. 


Como surgiu esse história? Isso é uma afirmação baseada em evidências com características de veracidade?


O problema é que no estudo RELY a freqüência de infarto do miocárdio foi um pouco maior no grupo dabigatran quando comparado ao grupo warfarina. Isso levantou uma suspeita. Agora vem uma meta-análise que mostra o mesmo resultado. Ora, primeiro um estudo levanta uma suspeita, depois uma meta-análise de vários estudos mostra o mesmo resultado. A impressão que fica é de confirmação na suspeita. Só que isso pode ser verdade ou simplesmente ser uma mera ilusão meta-analítica


Vamos analisar. O gráfico acima é o forrest plot da meta-análise. O pequeno diamante preto na parte inferior do gráfico representa o efeito resultante da combinação dos diversos estudos, o qual está do lado direito da linha da nulidade, ou seja, odds ratio maior do que 1, indicando aumento da chance de infarto com a droga. Agora observem o resultado de cada estudo individualmente. A meta-análise foi feita de 7 estudos, sendo o maior deles o RELY. Enquanto só o RELY possui 18.000 pacientes, o tamanho dos outros 6 estudos varia de apenas 500 a 3500 pacientes. O tamanho amostral do RELY é maior do que a soma das amostras de todos os outros seis estudos. Neste momento entra um conceito importante de meta-análises, o effect size. Este efeito diz que a contribuição de um estudo na análise dos dados deve ser proporcional ao seu tamanho amostral (à sua precisão), naturalmente. Isso quer dizer que o impacto do RELY na metaanálise é maior do que o impacto de todos os outros estudos somados.

Agora observem o resultado de cada estudo. Como já sabemos, o RELY mostra aumento do risco de infarto com dabigatran. Por outro lado, a tendência nítida do conjunto dos 6 estudos pequenos é a ausência de efeito do dabigatran no infarto.  Tanto pela estimativa pontual (4 estudos com o pontinho em cima da linha da nulidade), como pela posição dos intervalos de confiança (dois estudos com o ponto do lado direito, mas o intervalo de confiança invadindo demais o lado esquerdo do gráfico), o conjunto dos estudos pequenos sugere ausência de associação entre infarto e dabigatran.

Agora vejamos, temos um estudo (RELY) de alta influência no resultado da meta-análise sugerindo aumento de risco, somado a um conjunto de estudos pequenos que não mostram associação. Qual o resultado final da meta-análise: prevalecerá o resultado de maior influência, a despeito dos outros estudos sugerirem ausência de malefício. 


Essa meta-análise não confirma o resultado no RELY, e sim praticamente copia o resultado do RELY. Os outros estudos não estão de acordo como RELY, simplesmente não conseguem anular seu resultado. Desta forma, é criada uma ilusão meta-analítica baseada apenas no RELY.


Meta-análises avaliam também a heterogeneidade entre os resultados dos estudos, no intuito de testar se existe discordância entre eles. Um teste estatístico é realizado, cujo o valor de P < 0.05 indica heterogeneidade, e se não for estatisticamente significante indica homogeneidade. Esta meta-análise sugeriu homogeneidade entre os estudos. Baseado nisso, alguém poderia interpretar que os estudos pequenos estão dizendo a mesma coisa que o RELY. Engano, na verdade os 6 estudos pequenos são tão semelhantes entre si ao dizer que não há associação, que esta semelhança prevaleceu sobre a heterogeneidade de apenas um estudo, o RELY. Ou seja, dentre os 7 estudos, 6 se assemelham (na nulidade), por isso que o teste mostrou homogeneidade. 

Mas o RELY não é um estudo grande, randomizado, de boa qualidade metodológica? As conclusões do RELY não devem ser vistas como verdadeiras? Sim, em relação ao seu desfecho primário. Quando falamos de desfechos secundários, como já comentado neste Blog, há uma boa probabilidade do erro tipo I. Ou seja, encontrarmos associação falsas, decorrentes do problemas da múltiplas comparações: quando múltiplos desfechos (secundários) são testados simultaneamente, algum pode aparecer significativo por acaso. Inclusive alguns autores sugerem que o valor de P a ser considerado estatisticamente significante para múltiplas análises secundárias não seja 0.05, seja 0.05 / número de análises = 0.05 / 6 (neste estudo) = 0.008 (correção de Bonferroni). Se fizéssemos isso, veríamos que o limítrofe 0.048 descrito pelo RELY na verdade não representa significância estatística. Pode ser que tudo não passe do bom e velho acaso.


Análises secundários como a do infarto no RELY devem ser vistas como geradoras de hipóteses, a serem descartadas ou confirmadas por outros estudos. O que foi feito aqui foi confirmar a hipótese gerada pelo RELY, analisando o próprio RELY. O mesmo estudo que gerou uma hipótese um tanto implausível é incluído na meta-análise que vai responder a questão, e além disso é o maior de todos os estudos. É o mesmo que utilizar o conhecimento da probabilidade pré-teste de doença para laudar a imagem de um exame diagnóstico. Claro que a interpretação da imagem do teste vai ser influenciada pelo que se sabe previamente. Outra analogia: quando se cria um escore prognóstico a partir de uma amostra, este deve ser validado em outra amostra, diferente da que foi utilizada para a derivação do escore. Para evitar o erro da repetição. Considerando que a hipótese foi criada a partir de um achado inesperado do RELY, seria necessário ter excluído este estudo da meta-análise em questão. Aí sim seria uma validação da hipótese gerada pelo RELY.


Além destas análises estatísticas, há outras justificativas para este resultado. A fim de demonstrar que algo provoca infarto, este algo deve ser comparado ao nada (placebo) e não a uma coisa que previne infarto. Sabemos que warfarina previne infarto tão bem quando aspirina (AAS é preferido pois é mais prático e causa menos sangramento). Então pode ser que para prevenir infarto, warfarina seja melhor do que dabigatran, por isso a incidência de infarto com dabigratran foi maior. Mas isso não quer dizer que dabigatran é pior que placebo, ou seja, que causa infarto. 

Mas vamos considerar que tudo que eu falei está errado e que dabigatran de fato provoca infarto. Aí vem a segunda questão: qual a magnitude do problema? O aumento absoluto do risco de infarto com dabigatran foi de 0.21%. Calculando o NNH (number needed to harm) para infarto, 100 / 0.21 = 476 pacientes. A cada 476 pacientes tratados com dabigatran, um apresenta infarto, sendo que no estudo boa partes desses infartos foram silenciosos, sem nenhuma repercussão clínica. Ou seja, o problema é irrelevante, comparado ao ganho de praticidade da anticoagulação com dabigatran.

Portanto, esse negócio de dabigatran causando infarto é irrelevante e tem alta probabilidade de ser devido ao acaso. Lembram que no início diziam que estatina causava câncer?

Com isso tudo isso, não quero dizer que o dabigatran deve ser adotado de forma indiscriminada, sem o cuidado necessário. Na verdade, acho que devemos ser muito cautelosos. Primeiro, haverá uma tendência (freada pelo preço, é verdade) de maior indicação de anticoagulação, devido à maior praticidade. Hoje em dia, o médico pensa duas vezes (ou 3, 4, 5 vezes) antes de indicar anticoagulação crônica, pela complexidade do tratamento. Com dabigatran, a facilidade pode predispor ao uso indiscriminado. Coincidentemente ou não, paralelo ao advento do dabigatran, inventaram o escore CHADSVASC, cuja utilização indica anticoagulação para 92% dos pacientes com fibrilação atrial. Temos que ter cuidado, dabigatran causa sangramento quase tão frequente como a warfarina. Segundo, temos evidências de eficácia apenas em fibrilação atrial. Já vi gente usando para trombo em VE, embolia pulmonar. Ainda não temos dados para estas indicações. Terceiro, a ausência do controle laboratorial pode fazer falta em algumas situações específicas. Quarto, temos que iniciar o uso devagar, para aprendermos a usar um anticoagulante cuja forma de utilização representa uma mudança de paradigma, algo que não estamos acostumados. Esta é um droga cuja efetividade (mundo real) pode ser diferente da eficácia demonstrada nos ensaios clínicos, por erro ou negligência na sua utilização. Portanto, temos que ser cautelosos e monitorar o uso da droga no mundo real (estudos de efetividade).

Usualmente fazemos postagens críticas em relação a drogas, por motivos didáticos e porque criticar é mais divertido do que apoiar. Mas deve ter dado para perceber que neste artigo fiz a defesa de uma droga recentemente lançada pela indústria. É importante salientar que não tenho vínculo algum com o fabricante desta ou de nenhuma droga. Nosso vínculo é com a verdade científica, devemos ser imparciais, seja contra ou a favor da indústria. Devemos ser parciais a favor do paciente. Dabigatran, apixaban, rivaroxaban representam um avanço médico, que não podemos resistir com base em evidências questionáveis, em detrimento de boas evidências de eficácia. Aliás, lembrando a velha teoria da conspiração, será que o apixaban ou rivaroxaban estão por trás destas críticas ao dabigatran? Estamos no mundo capitalista.


A forma mais fácil de convencer alguém é dizer: uma meta-análise recentemente publicada comprova que ... A mensagem principal desta discussão é a de que meta-análises não garantem bom nível de evidência simplesmente porque são meta-análises. Sabemos que nem sempre é assim.


* O conteúdo desta postagem foi aceito como Letter to the Editor, a ser em breve publicada nos Archives of Internal Medicine.