Canais de Luis Correia

terça-feira, 17 de abril de 2012

A Evidência Científica e o Julgamento Clínico




* Esta é a terceira postagem da série Os Sete Princípios da Medicina Baseada em Evidências. Na primeira postagem apresentamos os primeiro três princípios; na segunda demonstramos o quarto princípio. Nesta postagem nos antecipamos e descreveremos o sétimo princípio. Em breve completaremos como os princípios 4, 5 e 6.

Estas são as duas principais ferramentas da prática médica, se complementam com perfeição e devem coexistir na tomada de decisão, cada uma com sua função específica. Este é o sétimo princípio da medicina baseada em evidências, o princípio da complementaridade entre a ciência e a decisão clínica. Este é o princípio que dá sentido a tudo que se fala sobre evidências científicas, é o momento em que a ciência se une com a habilidade do médico.

Denominamos propositadamente este como o Princípio da Complementaridade, pois é prevalente o equívoco de que ciência faz oposição ao julgamento clínico. Alguns se opõem à medicina baseada em evidências, pois acreditam que esta prática exclui o julgamento clínico do processo, engessa o médico, o impede de pensar. Pelo contrário, a evidência científica precisa do julgamento clínico para ser empregada. Na verdade, o processo mental de aplicação do conhecimento científico é bem mais intenso do que na medicina baseada em receita de bolo.

Outros consideram que evidência científica é coisa para ser discutida nos porões da academia, enquanto medicina é a prática, o mundo real. Como se teoria e prática fossem coisas antagônicas. Mal percebem que a teoria vem da prática, observada cuidadosamente, por estudos metodologicamente adequados. Lembremos do quarto princípio, aquele que diz que não basta plausibilidade biológica (teoria) para garantir eficácia ou efetividade (prática). Temos que observar a prática, usando uma observação metodológica, científica. Por isso que teoria (evidência científica) é coisa muito mais prática do que o achismo.

Evidência sem julgamento clínico ou julgamento clínico sem evidência torna capenga a prática médica. Este é uma das grandes causas de decisões médicas equivocadas. 

Sendo assim, o primeiro objetivo desta postagem é deixar claro que ciência e julgamento clínico são funções complementarem e não antagônicas. 

Em segundo lugar, precisamos discutir como estas duas funções devem se complementar. Outro erro muito comum de pensamento médico é confundir as funções destas duas ferramentas cognitivas. Digo, achar que o julgamento clínico pode determinar se uma terapia é eficaz ou achar que o médico deve copiar exatamente a conduta aplicada em um ensaio clínico. Equívocos.

Vamos organizar o pensamento: evidência serve para determinar se uma terapia é eficaz, ou qual a melhor terapia ou se um exame é acurado. Ponto. Julgamento clínico serve para analisar se a terapia eficaz (ou a melhor terapia ou o método acurado) deve ser aplicada a um dado paciente.

Vamos aos exemplos.

Exemplo 1. Imaginem que um ensaio clínico determina a eficácia de uma terapia quimioterápica que prolonga de 3 meses para 6 meses a vida de um paciente com câncer. Porém o mesmo ensaio clínico demonstra que a qualidade de vida do paciente piora como consequência dos efeitos colaterais da quimioterapia e ainda quantifica o grau de redução na qualidade de vida. Até aqui temos uma informação científica verdadeira, que não poderia ser obtida com a mesma confiabilidade a partir da experiência clínica. Até aqui utilizamos a ferramenta científica, como deve ser feito. Agora vamos começar a usar o julgamento clínico na decisão final. O que é melhor: 3 meses de vida com razoável qualidade ou 6 meses de vida de ruim qualidade? Essa não é uma pergunta cientifica. Para tomar esta decisão, o médico precisa de experiência com casos anteriores, sensibilidade, intuição, capacidade de captar (ou ouvir) o real desejo do paciente e de sua família. Percebam neste exemplo, que os dois processo cognitivos (conhecimento científico e julgamento clínico) se complementam, porém cada um com sua função.

Exemplo 2. O conhecimento científico indica que, na doença coronária estável, implante de stent coronário não reduz mortalidade, nem infarto. Apenas promove melhor controle dos sintomas do que o tratamento farmacológico isolado. Sendo assim, temos a liberdade de escolher tratamento clínico ou angioplastia para um paciente com angina estável.  A escolha é nossa, e essa liberdade é embasada em evidências. Agora usaremos o julgamento clínico para escolher, utilizando nossa experiência, intuição, sensibilidade. Se tivermos um idoso, limitado funcionalmente pela própria idade, o tratamento medicamentoso pode ser a melhor escolha inicial. Mas se tivermos um paciente de 40 anos, que gosta de jogar tênis e vinha muito limitado pela angina, talvez a angioplastia traga um grande benefício de qualidade de vida. Isto é julgamento clínico. Se tivermos um paciente assintomático com obstrução coronário, é burrice clínica instituir um tratamento que apenas controla sintomas. Controlar sintoma no assintomático? Bem, para quem mora em marte, aviso que esta é uma prática em nosso mundo. E isso não decorre só do distanciamento do médico em relação à evidência, decorre também do distanciamento em relação ao julgamento clínico, preguiça de pensar.

Exemplo 3. Estatina em prevenção secundária reduz mortalidade de pacientes com dislipidemia. Isso é evidência científica proveniente do estudo 4S. Quanto reduz? NNT de 25 para um tratamento de 5 anos. Deparo-me agora com um paciente que há um ano apresentou um problema de rabdomiólise sem causa definida (não usava estatina), com disfunção renal, ficando 40 dias internado na UTI. Uso estatina? Estatina reduz mortalidade, é prevenção secundária! O julgamento clínico utiliza o dado científico de que apenas 1 em 25 pacientes tratados com estatina se beneficiará com a prevenção de morte. Este conhecimento científico quanto à magnitude do benefício nos permite julgar que não devemos indicar estatina para este paciente, que quase morre de rabdomiólise recentemente. Mas se o NNT da estatina fosse de 1, sem dúvida usaríamos a droga. Entre 1 e 25, pensaríamos. Isso é julgamento clínico, é a prática do pensar. 

Exemplo 4. Em prevenção primária, estatina não reduz mortalidade, apenas eventos cardiovasculares, com NNT maior do que prevenção secundária. Se um paciente relata dor muscular com uso da droga, o que faço? Se o julgamento clínico me indica que a qualidade de vida do paciente está muito prejudicada, não seria absurdo suspender a droga (julgamento), visto que é apenas 1 em muitos pacientes que se beneficiam da terapia (evidência), que nem chega a reduzir mortalidade.

Exemplo 5. Temos um método de imagem comprovadamente acurado com base em ciência. Mas é o julgamento clínico quem vai nos dizer qual paciente deverá ter o método utilizado, é o pensamento médico que determinará a probabilidade pré-teste que mostrará a necessidade do exame. Pacientes de baixa probabilidade pré-teste não se beneficiam da pesquisa de isquemia por métodos de imagem ou teste ergométrico, pois as razões de probabilidade não são boas o suficiente para nos fazer mudar de idéia no sentido de que este paciente de baixa probabilidade clínica na verdade tem doença. O conhecimento da acurácia destes testes é científico (não por experiência), enquanto este raciocínio probabilístico é julgamento clínico.

Como diz o Princípio da Hipótese Nula, uma conduta se justifica pela demonstração de sua eficácia. Na ausência desta demonstração, não devemos adotar a conduta. Mas precisamos do julgamento clínico para identificar a exceção ao Princípio da Hipótese Nula. Precisamos do julgamento clínico para identificar quando estamos nas raras situações de Plausibilidade Extrema, onde o tratamento deve ser adotado a despeito da ausência de evidências.

Precisamos também do julgamento baseado em experiência clínica para reconhecer que o paciente em questão é o tipo de paciente que foi representado por um dado ensaio clínico. Sei que um anticoagulante deve ser usado em síndromes coronarianas agudas, por evidências científicas. Porém preciso do julgamento clínico para avaliar se realmente aquele caso se trata de uma síndrome coronariana aguda. Ou é uma elevação de marcador de necrose circunstancial, secundário a aumento de consumo ou redução de oferta por hipotensão, hipoxemia? O edema agudo de pulmão foi conseqüência de um infarto ou foi o edema agudo que causou a elevação de troponina. Isto é julgamento clínico.

Percebam em todos estes exemplos que utilizamos as duas ferramentas cognitivas e em nenhum caso confundimos as suas funções. Não devemos achar que é o julgamento ou experiência clínica que determina a verdade sobre eficácia, nem sobre acurácia. Mas não é apenas a evidência que determinará a conduta médica final.   

Evidência científica precisa de médico para beneficiar o paciente. E o bom médico é aquele que se utiliza do conhecimento científico como premissa básica para seu julgamento clínico. O mau médico é aquele que acha que pode gerar conhecimento baseado no achismo ou em sua anedótica experiência médica. Experiência médica boa é a resultante do treinamento em alinhar o conhecimento científico com o julgamento clínico.

Temos dois cérebros, o esquerdo (racional) e o direito (intuitivo, emocional, criativo). Precisamos utilizar os dois cérebros da decisão médica e não apenas um deles, como se tivéssemos tido um AVC hemisférico. Não podemos ser médicos sequelados, sem o hemisfério esquerdo (sem evidências) ou sem o hemisfério direito (julgamento). Estes dois devem se complementar, como em tudo na vida.

Falamos em postagem recente da Magia no NNT. Mas devo confessar que me precipitei com o termo magia. Magia mesmo ocorre quando nosso processo mental de decisão permite a sinergia da evidência com o julgamento clínico da tomada de decisão médica. Neste momento, a medicina baseada em evidência ganha outra dimensão, a dimensão de beneficiar o paciente. A dimensão médica, que vai além da ciência.

6 comentários:

  1. Daniel Nogueira Vilela - Estudante do 5º Período de Medicina18 de abril de 2012 às 02:24

    Parabéns pelo blog. Ótima série de postagens
    Sugiro que você faça uma postagem com seus posts passados que possam oferecer uma revisão da MBE para alunos de graduação que chegaram tarde ao blog (eu por exemplo hahaha)

    Agora, uma dúvida,
    No seu exemplo 2, no paciente assintomático, o estudo que relatou mesma eficácia em relação à mortalidade para angioplastia e terapia farmacológica, afirmou que é necessário instaurar um dos dois para, de fato, reduzir mortalidade certo?
    A questão é, no paciente assintomático, instaurar essa terapia pode reduzir mortalidade à longo prazo? Ou não há estudos que façam "screening" de pacientes com obstruções coronarianas e comecem essa terapia profilática? Se sim, qual o resultado?
    Se não existem evidências, a decisão não cairia na plausibilidade biológica de evitar alguma interrupção de fluxo? Ou isso só seria aquela plausibilidade de desejo do "encanador" e viraria hipótese nula?

    Espero não ter sido muito confuso.

    Obrigado e até a próxima

    Daniel
    Estudante do 5º período de Medicina.

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  2. A terapia "profilática" não depende do diagnóstico de DAC, é redução dos fatores de risco. Importante entender que mesmo os que fazem angioplastia, devem fazer tratamento clínico também.

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  3. Com certeza esse blog tem qualidade de um ótimo livro de medicina. O dominio do hemisfério esquerdo é um produto de escolas e faculdades que não incentivam o pensamento filosófico. Formam técnicos altamente especializados e esquecem das relações humana, do subjetivo, do que não pode ser quantificado. Se fosse assim não precisaríamos de médicos, máquinas já resolveriam todos os problemas de nossa sociedade

    Continue o ótimo trabalho

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  4. Luis, fantástico o blog, a leitura fácil,a profundidade adequada, o equilíbrio e a boa colocação dessas questões. Indico a todos que vejo. Um abraço e parabéns! R2CM

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  5. Lembrei de um slide que utilizei´para dar inicio a uma aula sobre Truncus, ha uns tempos atras, que era assim: varias palavras de cores em cores diferentes das mesmas.Todo mundo ja deve conhecer este slide, e em cima dizia assim: digas as cores , nao as palavras. Outro dia ví isto ser utilizado como teste de estresse mental para induzir angina, nos ABC. Mas, diferente da minha aula que utilizava isto apenas para significar que o aluno apenas se preocupasse em descrever o que via e nao em dar trezentos nomes classificatorios para a mesma coisa, pois o foco era apenas a imagem a ser descrita, percebi que isto se dá no seu texto como duas funções a serem utilizadas em conjunto, daí a "preguiça mental"..este estado de constante tensão interna ( como diz Nilton Bonder em A Alma Imoral) é que nos mantém alinhados com os nossos propositos humanos, e quanto maior for esta capacidade de lidar com isto mais "completos" e integrados seremos. Por certo, medicos melhores.
    Parabens!

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  6. Parabéns pelo ótimo blog. Sugeriria que você abordasse o método Bayesiano uma vez que seus posts são bem claros e conseguem traduzir em linguagem simples conceitos complexos. Achei esse artigo interessante mas de difícil leitura.
    "Effect of Formal Statistical Significance on the Credibility of Observational Associations" (http://aje.oxfordjournals.org/content/168/4/374.long)

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