Canais de Luis Correia

domingo, 1 de julho de 2012

Aplicabilidade de Evidências sobre Terapia: Princípio da Complacência



* Quinta postagem da Série Análise Crítica de Evidências sobre Terapia.
* Terceira postagem da série Os Sete Princípios da Medicina Baseada em Evidências. Na primeira postagem apresentamos os primeiro três princípios; na segunda demonstramos o quarto princípio. Na quarta postagem nos antecipamos para o sétimo princípio. Nesta abordaremos o sexto princípio: princípio da complacência. Em postagem futura concluiremos com o quinto princípio e revisaremos todos simultaneamente.


Na série Análise Crítica de Evidências sobre Terapia, abordamos os tópicos veracidade e relevância da eficácia terapêutica em várias postagens prévias (1, 2, 3, 4). Agora chega a hora de abordarmos o último tópico, a aplicabilidade da evidência.

É evidente que nosso pensamento tem sido bastante rígido nas análises de veracidade e relevância, muitas vezes contradizendo opiniões mais entusiasmadas em relação a certas formas de tratamento. Esta rigidez do pensamento baseado em evidências se justifica pela preocupação em não gerar falsas verdades, o que é pode ser bastante prejudicial (princípio da hipótese nula). Por outro lado, na análise de aplicabilidade, vocês perceberão que chega a hora da medicina baseada em evidências assumir uma postura mais complacente. É o princípio da complacência.


Após concluirmos que uma evidência é verdadeira e relevante, devemos pensar em sua aplicabilidade. O ideal é que ela seja aplicada a um maior número de pessoas possível. Isso justifica a maior complacência na análise de aplicabilidade. Por outro lado, não podemos extrapolar demais.

A decisão a respeito da aplicabilidade requer maior maturidade científica e clínica, pois não é uma avaliação tão objetiva como as análises de veracidade e relevância. Isto faz com que muitas vezes indivíduos decidam não aplicar terapia quando deveriam aplicar ou extrapolar demais uma evidência, como se ela fosse verdadeira em qualquer circunstância.

Isto passa pelos conceitos de validade interna e validade externa do trabalho. Observem, validade interna é o mesmo conceito da análise de veracidade, que se faz nas circunstâncias internas do estudo em questão, ou seja, a veracidade de uma eficácia exatamente nos paciente estudados e exatamente  como o tratamento foi aplicado. Já a validade externa descreve até que ponto podemos extrapolar os resultados de um estudo para uma população diferente da avaliada ou para uma forma de aplicação um pouco diferente da realizada no estudo.

Aplicabilidade da terapia se refere a 3 aspectos: em quem esta será aplicada, como será aplicada, onde será aplicada.

Vamos iniciar pelo problema mais comum: em quem será aplicada. Por exemplo, quase todos os conhecimentos básicos sobre eficácia terapêutica em cardiologia foram provenientes de ensaios clínicos realizados em países de primeiro mundo, no final do século passado (benefício da trombólise ou angioplastia primário no IAM, antitrombóticos nas síndromes coronarianas agudas, inibidor da ECA ou beta-bloqueadores em ICC e inúmeros outros exemplos de uma grande lista). Estes estudos não avaliaram o típico paciente brasileiro, de raça miscigenada. Então podemos aplicar estes conhecimentos no brasileiro? Nossa decisão histórica foi que poderíamos aplicar, ou seja, julgamos que a validade externa daqueles estudos envolvia nossa população. Observe que se fôssemos rígidos demais privaríamos nossos pacientes destes benefícios. Desta forma, a maior complacência da medicina baseada em evidências na análise de aplicabilidade permite que um maior número de pessoas se beneficie dos tratamentos. É por isso que utilizamos tratamentos em pacientes octagenários, embora eles não sejam bem representados por ensaios clínicos.

Por outro lado, não podemos ser totalmente complacentes, essa deve ser uma análise caso a caso. Devemos aplicar tudo isso em uma paciente de 104 anos? Tenho minhas dúvidas ... Devemos ponderar melhor nestes casos extremos. 

Então, como fazer esta análise a partir de um ensaio clínico?

Em primeiro lugar, observamos cuidadosamente de quem se trata a amostra estudada, lendo a tabela de características clínicas. Lá teremos acesso à média de idade, sexo, raça, gravidade da doença naquela amostra (fração de ejeção na ICC, escore GRACE na síndrome coronariana aguda) e presença de co-morbidades (função renal, diabetes). Vale salientar que os critérios de inclusão do estudo nem sempre refletem a amostra estudada. Por exemplo, você pode ter como critérios a inclusão de paciente de 18 a 75 anos, mas aquela doença é rara em jovens e praticamente não há ninguém com idade < 30 anos. Sendo assim, temos que nos condicionar a contemplar bastante a tabela de características clínicas, usualmente a tabela 1 em artigos científicos. 

Uma vez conhecendo exatamente quem foi avaliado no ensaio clínico, vamos saber que é neste tipo de paciente que o estudo tem a validade ideal. Vamos agora à validade externa. Quando nos depararmos com um paciente diferente da amostra estudada, devemos nos perguntar: existe alguma forte razão para aquele benefício se perder neste tipo de paciente; ou para surgir um efeito adverso grave. Ou como diz David Sackett, “nosso paciente é tão diferente daqueles do estudo de forma que os resultados não se apliquem a ele?”

Por exemplo, o clássico estudo SOLVD demonstrou que enalapril reduz mortalidade em pacientes com ICC, cuja média de fração de ejeção foi 25% e não tinha ninguém com fração > 35%. Vamos supor um paciente sintomático, com fração de ejeção de 40%. Devemos usar enalapril? Existe alguma forte razão para aquele benefício se perder neste tipo de paciente? A resposta é não. Portanto nós costumamos usar inibidor da ECA em pacientes com disfunção moderada ou até disfunção leve.


Evidências sobre tratamento de hipertensão é outro grande exemplo. Todos os ensaios clínicos que demonstram redução no risco de eventos cardiovasculares com o tratamento são realizados em amostras de hipertensos pelo menos moderados e de alto risco cardiovascular. Isto é feito para que a incidência de desfechos seja grande o suficiente para oferecer o poder estatístico necessário. Mesmo assim, nós extrapolamos estas evidências para pacientes com hipertensão leve e de baixo risco. Ou seja, qualquer paciente que se mantenha hipertenso apesar de medidas não farmacológicas serão colocados em tratamento medicamentoso. É mais um exemplo do princípio da complacência

Ao extrapolar, devemos ter em mente que a magnitude do benefício tente a ser menor (para uma mesma redução relativa do risco, o NNT aumenta na medida em que o risco absoluto diminui). Ou seja, se um hipertenso de baixo risco tiver sintomas de hipotensão postural com a droga, uma eventual suspensão não lhe deixará tão vulnerável quando um paciente de alto risco.

Na verdade, quando extrapolamos para amostras de baixo risco (fração de ejeção maior, pressão arterial menor), devemos recalibrar o NNT, a partir da incidência de eventos esperada na população em questão. É só aplicar a redução relativa do risco (que tende a ser relativamente constante) no risco absoluto esperado daquele tipo de população sem tratamento. Isso nos dará a redução absoluta do risco esperada, que permitirá o cálculo do NNT na amostra de baixo risco (100/RAR).

Este tipo de raciocínio também se baseia no fato de que interação qualitativa entre o efeito da droga e o tipo do paciente é um fenômeno muito raro em medicina. Mais comum é interação quantitativa. O que quer dizer isso? Interação qualitativa é uma droga ser benéfica em um subgrupo de paciente e maléfica em outro subgrupo (a qualidade do efeito da droga muda). Isso quase nunca ocorre, em se considerando o mesmo desfecho nas duas análises. Interação quantitativa é quando a magnitude do efeito da terapia muda com o tipo de paciente, ou seja, o paciente com fração de ejeção maior vai ter menor benefício ou na pior das hipóteses não vai ter benefício. É pouco provável que na presença de benefício em pacientes com fração muito baixa, haja malefício nos de fração mais alta. Esta observação de como as evidências se comportam é a base científica para o princípio da complacência na análise de aplicabilidade.


Este mesmo raciocínio nos induz a utilizar inibidor da ECA em pacientes com miocardiopatia chagásica, nos quais esta terapia não foi suficientemente testada. Já quanto ao uso de beta-bloqueador em chagásicos, acho que esta análise deve ser mais criteriosa e individualizada, pois estes pacientes possuem mais predisposição a bradiarritmia (menor validade externa). No outro extremo, a aplicabilidade das evidências de desfibrilador implantável (CDI) pode ser pequena nos chagásicos. O número de choques nestes pacientes é muito alto, podendo até ser prejudicial, causar lesão miocárdica e agravamento da função ventricular. Este tópico é discutido de forma provocativa por Anis Rassi Jr., em artigo publicado no J Cardiovasc Electrophysiol em 2007. Por este motivo, será realizado no Brasil o ensaio clínico CHAGASIC, idealizado por este autor e financiado pelo Ministério da Saúde.

Enoxaparina foi demonstrada eficaz para o tratamento de SCA, mas pacientes com disfunção renal severa não fizeram parte dos estudos. Neste caso, há razão para que a droga cause problema nestes pacientes, pois a disfunção renal pode provocar aumento da ação anticoagulante, causando sangramento. Portanto não devemos extrapolar para estes pacientes.

E assim vai, são múltiplos os exemplos e nós devemos pensar, refletir caso a caso. Observem que nesta situação, não há uma medida específica (valor de P, NNT, RR, RA). É um pensamento criterioso que deve avaliar o grau de extrapolação da validade interna de um estudo, ou seja, a validade externa. Gosto de denominar isso de limiar de validade externa, o qual varia com cada situação.

Até aqui comentamos da validade de uma evidência para o tipo de paciente. Mas também devemos pensar sobre validade em relação à forma como a terapia é aplicada. Vejamos. Imagine que um estudo mostra benefício da atorvastatina 80 mg versus placebo. Mas isso é uma terapia de alto custo. Podemos então aplicar a evidência utilizando atorvastatina 10 mg se isto for suficiente para trazer o LDL-colesterol para níveis ótimos? Parece-me que sim. Na pior das hipóteses teríamos uma redução da magnitude do benefício, que possivelmente não será grande se 10 mg for suficiente para atingir um LDL-colesterol de 70 mg/dl.

Percebam que muitas vezes precisamos variam um pouco a forma de tratamento para torná-lo factível. Até um certo ponto, isso é aceitável. Usar uma droga mais cara na fase aguda e depois mudar para uma droga de custo mais baixo para o uso crônico pode ser aceitável, se não houver uma grande razão para isso causar problema. Por exemplo, em pacientes com síndromes coronarianas agudas de alto risco, Ticagrelor ao invés de Clopidogrel pode ter um NNT que justifique seu uso da fase aguda, mas esta é uma droga de alto custo e, a depender do paciente, pode ser razoável fazer a transição para Clopidogrel no uso de longo prazo.


Diferentemente do que alguns pensam, medicina baseada em evidências não é copiar com exatidão a conduta de ensaios clínicos na prática. 

Um ensaio clínico é feito para testar uma hipótese. Sendo assim, a especificidade da amostra estudada e outros aspectos de seu desenho existem para evitar vieses ou maximizar o contrate de resultado entre intervenção e controle, aumentando seu poder estatístico. Uma vez provada a hipótese, a tradução disso para a prática clínica pode sofrer certa variação a fim de que se torne realidade. Isso não é infringir a evidência, é valorizá-la a ponto de criar condições para que esta seja aplicada ao maior número de pacientes.


Por fim, onde será aplicada a terapia. Este item diz respeito a terapias que dependem da habilidade da equipe médica. Ou seja, procedimentos invasivos ou cirurgias. Transcatheter Aortic-Valve Implantation (TAVI) é uma forma percutânea de corrigir doença da valva aórtica, em pacientes que queremos evitar cirurgia. Esta forma foi validada pelo ensaio clínico PARTNER, que mostrou redução de mortalidade quando comparado ao tratamento clínico de pacientes com impossibilidade clínica de cirurgia. No entanto, devemos antes analisar se nossa equipe de clínicos, intervencionistas, ecocardiografistas está suficientemente treinada para reproduzir os resultados deste estudo.

Um segundo aspecto que diz respeito ao onde será aplicada é a questão de custo. Uma terapia pode ser eficaz, porém não custo-efetiva, fazendo um país de medicina racional e socializada decidir pela não implementação generalizada daquele tratamento.

Ao falar deste assunto, devemos mencionar os guidelines de aplicabilidade de terapia, os quais classificam o nível de evidências das recomendações em A, B ou C. Nesta classificação, há com frequência violação dos princípios da medicina baseada em evidências. Nível A é aquela situação em que há comprovação da veracidade do tratamento, ou seja, um ensaio clínico randomizado de boa qualidade, demonstrando benefício em desfecho clínico; nível C é ausência de evidência, quando a recomendação ocorre por consenso de especialista. Este só se justifica em situações de plausibilidade extrema (paradigma do para-quedas). Muitos têm feito estas recomendações em outras situações, de forma bastante inadequada. E o nível B, quando se aplica? Exatamente nas situações que estamos discutindo nesta postagem. Ou seja, em situações em que a evidência não diz respeito àquele tipo específico de população, mas há uma evidência de qualidade em outra população que se decide extrapolar. Ou seja, afirmar que devemos utilizar IECA em pacientes com fração de ejeção de 45% não é apenas consenso de especialistas, é uma recomendação baseada evidências de pacientes com fração de ejeção de 25%. Nível B não se aplica a evidências de veracidade questionável, tais como estudos com vieses importantes ou que avaliam desfechos substitutos. Estes devem gerar hipóteses, mas não recomendar terapias.

Sendo assim, após ler o artigo (rígida análise de veracidade e relevância), devemos refletir sobre em quem, quando e onde aplicaremos aquela terapia. Nesta postagem procuramos traçar uma sequência de pensamento, que aborda os aspectos que necessitam ser avaliados neste tipo de pensamento que requer maturidade científica e julgamento clínico.

O princípio da complacência na análise de aplicabilidade de evidências potencializa o impacto positivo de uma evidência que julgamos ser verdadeira e relevante. Esta é a hora de sermos mais contemplativos. 


* Na próxima postagem desta série, discutiremos análise de subgrupo, um importante tópico relacionado a aplicabilidade da terapia.

2 comentários:

  1. Vou passar a recomendar este post a colegas/amigos que gostam de criticar a MBE justamente com o pensamento de que a "medicina baseada em evidências é copiar com exatidão a conduta de ensaios clínicos na prática" ou que julgam que a MBE diminui o peso do racionínio clínico - pelo contrário...

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  2. Seu site é excelente. Nunca antes tinha lido a epidemiologia clínica com tamanha clareza. Muito obrigado!

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