Dando sequência à reflexão do
multivariado versus univariado, um
dos maiores exemplos clínicos da inadequada predominância do pensamento
univariado é a escolha pelo tipo de stent (convencional ou farmacológico) a ser
usado no tratamento de obstruções coronárias.
Esta
questão foi muito bem retratada em um importante artigo publicado (online first) esta semana
nos Archives of Internal Medicine, intitulado Use of Drug-Eluting Stents as a Function of Predicted Benefit,
o qual demonstrou como os stents farmacológicos são usados de forma
indiscriminada nos Estados Unidos. Neste trabalho, foram analisados 1.5 milhão
de procedimentos realizados entre 2004 e 2010, dados provenientes de um
registro nacional de intervenção coronária.
Para contextualizar esta questão, os
stents farmacológicos são próteses que apresentam um risco de reestenose
coronária menor do que os stents convencionais. No entanto, seu custo
é maior, tanto o custo financeiro como o custo da necessidade de terapia anti-agregante
plaquetária agressiva por mais tempo. Não há vantagem do stent
farmacológico em relação ao risco de infarto ou morte. Portanto, a
escolha de stents farmacológicos deve ser criteriosa, para valer a pena o custo
de sua utilização.
Para sabermos se vale a pena, temos que
pensar na magnitude de seu benefício,
ou seja, no NNT do stent farmacológico (no lugar do convencional) para se
prevenir uma reestenose. Reestenose é um inconveniente, mas não é exatamente um
desfecho na mesma importância de morte, infarto ou AVC. Portanto, somos mais
exigentes com o NNT e considera-se que um NNT de 25 é razoável para justificar o uso de stent farmacológico. Significa implantar stents farmacológicos em 25
pacientes para que apenas um paciente se beneficie da prevenção de reestenose.
Vejam que estamos sendo bondosos.
Para uma mesma redução relativa do risco
(em torno de 40% de acordo com trabalhos prévios), quanto maior o risco absoluto
de reestenose, maior a redução absoluta do risco e consequentemente menor
(melhor) será o NNT. Sendo assim, é necessário que o risco absoluto de
reestenose com o stent convencional seja de pelo menos 10%, para que a redução
absoluta do risco seja de 4%, o que dará o NNT de 25.
Mas como saber o risco absoluto de
reestenose? No ano passado foi publicado importante trabalho no Circulation (Predicting the Restenosis Benefit of Drug-Eluting Versus Bare Metal Stents in Percutaneous Coronary Intervention), o qual validou um
modelo multivariado que calcula a
probabilidade de reestenose com base em muitas variáveis clínicas e
angiográficas, denominado MassDAC model. Este modelo é disponível na internet
para que calculemos o risco de reestenose se o paciente utilizar stent convencional, podendo assim selecionar os de maior risco para o stent farmacológico.
No trabalho publicado nesta semana, os
autores utilizaram o MassDAC e calcularam o risco de reestenose dos 1.5 milhão
de pacientes, dividindo-os em baixo risco (< 10%), moderado risco (10 – 20%)
e alto risco (> 20%). Na amostra, 43% dos pacientes eram de baixo risco, 44%
eram de moderado risco e apenas 13% de alto risco. Em seguida foi descrita a
proporção dos pacientes em cada grupo que tiveram a escolha por stent
farmacológico.
Seria de esperar que quanto maior o risco
basal de reestenose, maior o uso do stent farmacológico. Porém, impressionou o quanto semelhante foi a frequência de stent
farmacológico nos grupos de baixo, moderado e alto risco. Respectivamente, 74%,
78% e 83%. Ou seja, o stent farmacológico é muito usado em pacientes de
baixo risco, quase na mesma proporção dos pacientes de alto risco. E estas
proporções são bastante altas.
É neste momento que entra a discussão do
pensamento univariado versus
multivariado. O modelo utilizado pelo trabalho para predizer reestenose foi
multivariado, ou seja, considerou todas as variáveis que se associam de forma
independente com o risco, dando o peso que cada uma merece de acordo com sua
força de associação. Diferentemente, o que os médicos têm feito
na decisão do stent é um pensar de forma univariada:
Se o paciente for diabético, escolherei
stent farmacológico, não importa as demais variáveis.
Se o diâmetro da lesão for < 3 mm,
escolherei stent farmacológico, não importa as demais variáveis.
Se a lesão for longa, escolherei stent
farmacológico, não importa as demais variáveis.
E outros critérios, que somados não dão
chance a quase ninguém de receber um stent convencional. Por isso que só sobra 20% utilizando o stent convencional.
Os autores estimaram que uma redução de 78% para 50% de uso de stent farmacológicos nestes pacientes de baixo risco, geraria uma economia de 205 milhões de dólares.
Sabemos que as instituições ganham
com o uso de materiais de alto custo. E
aí está uma simbiose do pensamento univariado com o conflito de interesse a
favor dos stents farmacológicos. É muito mais fácil justificar a escolha
com um único e simples argumento univariado, do que ficar a mercê da real probabilidade
de reestenose, calculada a partir do conjunto das variáveis relevantes.
Corroborando com estes achados, em
trabalho realizado por nosso grupo, demonstramos que o julgamento de um intervencionista
treinado no pensamento univariado indica muito mais stent farmacológico do que
o modelo multivariado (dados ainda não publicados).
Este é um dos grandes exemplos de um
pensamento univariado prejudicando o sistema de saúde. Ao contrário da
realidade americana, no Reino Unido o uso do stent farmacológico é muito mais
restrito. E o desfecho dos pacientes ingleses não é em nada pior do que os
americanos. O modelo de gasto americano deve servir de exemplo do que não
fazer.
No entanto, nós imitamos os americanos
direitinho e ainda ficamos a reclamar quando nossa remuneração não é boa. Claro,
essa não é a única causa da baixa remuneração médica, porém precisamos perceber
que nessa discussão deve entrar nossa parte de responsabilidade na equação. Se
estamos queimando os recursos com utilização indiscriminada, vai sobrar menos para
nosso salário. Desta forma, acredito que uma discussão madura deva contemplar
propostas médicas de uso racional dos recursos. Principalmente para o serviço
público, mas também para o privado. Esse é o racional da proposta de Obama para
universalizar o sistema de saúde americano, sem necessariamente aumentar
impostos. Seria saúde para todos, oferecida de forma mais racional, sob um
custo menor.
Outra exemplo comum: como podemos reclamar do valor que nos
pagam pelo teste ergométrico, se a grande maioria das indicações são
inapropriadas? Pacientes assintomáticos ou de baixa probabilidade pré-teste
representam a maior parte da população submetida a este exame. Modelos
multivariados devem primeiro estimar a probabilidade pré-teste e indicar o
teste naqueles de probabilidade intermediária.
Em conclusão, o cerne da questão está
nossa tendência (natural) de pensar de forma univariada. Esse tipo de
pensamento é principal responsável pelo uso indiscriminado de stents
farmacológicos, descrito no artigo recém publicado. É mais um exemplo da importância
do pensamento multivariado. O modelo probabilístico multivariado está disponível, é só
utilizar.
Muito boa colocação e questionamento, Luis.
ResponderExcluirAbs
R.Dultra
Caro Luis , desta vez não vou parabenizar e sim agradecer pelos importantes ensinamentos. Muito obrigado.
ResponderExcluirLuis Claudio,
ResponderExcluirCoincidentemente estamos avaliando na CONITEC a incorporaçao de stents farmacologicos no SUS para pacientes com alto risco de reestenose de lesão alvo e chegamos a uma conclusão preliminar que o grupo que se beneficiaria de um stent farmacologico estaria por volta de 9% dos candidatos a stent. Consideramos apenas tres fatores na analise: diabetes e vasos de calibre reduzido e lesoes longas
O assunto deve entrar em consulta publica em breve no portal da saude/sctie
O calculo de risco pelo DAC é bem interessante. Vou divulgá-lo aos nossos consultores
Obrigada pelo excelente trabalho!
Clarice, me mande seu e-mail.
ResponderExcluirCaro Luís Cláudio.
ResponderExcluirSou cardiologista e preceptor de um serviço de residência médica em Curitiba.
Sou também um entusiasta do seu blog desde maio de 2011.
A bioestatística é uma ciência deficiente na formação médica e acabei usando seu blog (desculpe pela honestidade e cinismo)como uma ferramenta para ajudar na formação de médicos residentes de nossa instituição.
Gostaria de pedir sua autorização para utilizar algumas de suas opiniões (na minha opinião perfeitas, tanto na conclusão, quanto na redação) nos ensinamentos de novos especialistas.
De qualquer forma, parabéns pela iniciativa e clareza ao compartilhar conhecimento.
Atenciosamente.
José Fortes CRM 19867-PR
Prezado José Augusto,
ResponderExcluiré um prazer saber que o Blog está lhe servindo de material didático. Fique a vontade.
Caso deseje, pode ser comunicar diretamente comigo pelo email que exposto no Blog.
Na minha mãe prefiro farmacológico
ResponderExcluirLuis Cláudio, simplesmente fantástico suas observações. Parabéns.
ResponderExcluir