Canais de Luis Correia

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Terapia de Reposição Hormonal: previne eventos cardiovasculares?

Como fazer quando uma nova evidência vai de encontro com o conhecimento vigente? Neste caso, precisamos analisar criticamente a nova evidência, comparando-a com a evidência mais antiga que atualmente norteia a conduta. Ou seja, o novo não é necessariamente melhor, temos que analisar onde está a verdade.

Isso aconteceu há algumas semanas, quando foi publicado no prestigioso British Medical Journal um estudo dinamarquês intitulado Effect of hormone replacement therapy on cardiovascular events inrecently postmenopausal women: randomised trial. Trata-se de um ensaio clínico randomizado (1.000 mulheres), demonstrando que a terapia de reposição hormonal (TRH) traz benefício cardiovascular em mulheres menopausadas. No grupo tratamento a incidência de eventos cardiovasculares foi 3.2% versus 6.6% no grupo controle (P = 0.015). Além disso, não houve aumento de câncer de mama, nem de eventos tromboembólicos.

Essa informação é contrária ao conhecimento trazido pelo WHI, grande (16.000 mulheres) ensaio clínico randomizado, publicado em 2002, o qual demonstrou que este tratamento aumenta a incidência de eventos coronários, AVC, tromboembolismo pulmonar e câncer de mama. Baseado nisso, se considera que não há indicação do uso desta terapia para fins de prevenção cardiovascular. A justificativa para este tratamento é melhora da qualidade de vida, naquelas mulheres com sintomas de menopausa.

Mas e agora?? Com este novo ensaio clínico, devemos passar a prescrever TRH em menopausadas como estratégia de prevenção cardiovascular? Inclusive os autores argumentam que o benefício foi alcançado devido à introdução precoce da droga após a menopausa (timing hypothesis), diferente do WHI que randomizou as pacientes vários anos após a menopausa. Isso mesmo, se você introduzir na hora certa, traz benefício; se introduzir na hora errada, traz maléfico. Até parece história de feitiçaria. Existe algum tratamento assim, que a depender do momento do uso gera efeitos totalmente paradoxais?

Sendo assim, antes de aceitar essa explicação causal para o resultado favorável, devemos avaliar a possibilidade deste resultado ser causado por acaso ou viés.

Acaso

Em primeiro lugar, este estudo é subdimensionado, tendo poder estatístico reduzido. Possui apenas 1.000 mulheres, um número muito abaixo das 16.000 necessárias no WHI para avaliar benefício e segurança. Inclusive a descrição do tamanho amostral não especifica a incidência esperada do desfecho, tornando impossível de avaliarmos se o cálculo de 1.000 pacientes faz sentido. Provavelmente, não. A descrição serve apenas para fazer parecer que os autores se preocuparam com poder estatístico. E na ausência de poder estatístico, uma diferença encontrada (mesmo estatisticamente significante) tem veracidade duvidosa. Ou seja, a acurácia do valor de P (em estimar a probabilidade do resultado encontrado na vigência da hipótese nula) é reduzida. Portanto, não podemos afastar o acaso como explicação do resultado encontrado. 

A este respeito, foi recentemente publicado no JAMA o trabalho Empirical Evaluation of Very Large Treatment Effectsof Medical Interventions demonstrando que estudos pequenos geram resultados mais favoráveis do que estudos grandes. Da mesma forma, estudos pequenos trazem com mais frequência resultados positivos do que estudos grandes. Percebam que estudos negativos (que não mostraram benefício) publicados em revistas de impacto sempre se tratam de grandes ensaios clínicos. Nunca vemos um pequeno ensaio clínico negativo sendo publicado em revista de grande impacto. Pequenos ensaios clínicos só são publicados quando seus resultados são positivos. Só tendo resultados positivos estes estudos conseguem ser publicados em grandes revistas. Isto é denominado viés de publicação. O problema é que estes pequenos estudos positivos possuem veracidade questionável, pois para conseguirem significância estatística um estudo pequeno necessita de uma diferença de magnitude tão grande que se torna inverossímil. Além disso, o valor de P é a estimativa de um dado resultado ser encontrado apesar da hipótese nula ser verdadeira. Quando o estudo é subdimensionado esta estimativa perde precisão, o valor de P pode não refletir a realidade.   

Viéses

Em segundo lugar, devemos avaliar a possibilidade de viéses. Este é um estudo aberto, tanto o paciente como o médico sabiam se a mulher estava utilizando a TRH. Alguns mecanismos podem fazer com que o caráter aberto enviese os resultados. Neste caso, viés de desempenho (performance bias) pode ser um deles: ao saber que a mulher está em uso de TRH, esta pode receber mais cuidados médicos, melhor controle de fatores de risco, mais atenção quanto a eventuais eventos coronários. Isso pode reduzir o risco destas mulheres, não pela TRH, mas pelo que esta traz em termos de cuidados adicionais. Além disso, a aferição de eventos pode ser enviesada por uma crença do pesquisador (não cego) no benefício da terapia. Na verdade, fico a me perguntar o que faz um pesquisador planejar um estudo de 1000 pacientes, 10 anos de seguimento e não de dá ao trabalho de cegar o estudo com uso de placebo.

Em terceiro lugar, qualquer estudo de prevenção primária em cardiologia avalia eventos relacionados diretamente a doença aterosclerótica, ou seja, infarto e AVC. Sem uma lógica prévia, este estudo colocou insuficiência cardíaca como um dos componentes do desfecho primário e foi este desfecho que mais contribuiu com o resultado. Se tivesse feito como o WHI (morte ou infarto) não haveria benefício demonstrado. Da mesma forma, se tivesse considerado morte, infarto ou AVC, a diferença não seria estatisticamente significante.

Por todos estes motivos, não podemos considerar este estudo verdadeiro em afirmar que a TRH previne eventos cardiovasculares, pois o mesmo não passa na prova da análise crítica de evidências. Este estudo de 1.000 pacientes, aberto e com definição questionável do desfecho primário não é suficiente para modificar nossa crença do prejuízo cardiovascular desta terapia criada a partir de um estudo de 16.000 mulheres, cego, com definição adequada do desfecho primário.

Este é um bom exemplo de como a análise crítica de uma evidência nos ajuda a separar trabalhos que devem modificar paradigmas daqueles que servem apenas de provocação. Este é o valor deste artigo, apenas provocar nossa reflexão.

Visão Bayesiana

Outro aspecto que deve ser discutido é a visão bayesiana na análise de evidências. Neste tipo de análise, devemos considerar a probabilidade pré-estudo do tratamento ser benéfico. Neste caso, temos o WHI mostrando que o tratamento aumenta infarto, AVC, tromboembolismo venoso e câncer. Qual a probabilidade de iniciando o tratamento mais cedo, este provocar redução de infarto, AVC, tromboembolismo venoso e câncer? É pequena. Pode até ser que o prejuízo seja menor porque as mulheres são mais jovens (menos susceptíveis), mas sair de deletério para benéfico seria algo sem precedentes. Sim, sem precedentes, pois não existe interação paradoxal. Excluindo eventos adversos, se pensamos apenas no princípio ativo primário, não conheço nenhum tratamento que seja bom em um grupo de pessoas e ruim em outro grupo. Usualmente, as interações são quantitativas e não qualitativas: é comum ver algo melhor em um grupo do que em outro, mas inversão total do efeito, de maléfico para benéfico é algo muito raro ou até mesmo inexistente.

Sendo então a probabilidade pré-estudo de benefício muito baixa, para mudar nosso pensamento necessitaríamos de uma evidência muito forte, e não é o que temos aqui. 

Entusiasmo versus Evidência

Sei que há os entusiastas da TRH para prevenção cardiovascular. Ser entusiastas do ponto de vista científico tem sua validade, mas devemos ter o cuidado para que este entusiasmo não promova uma interpretação favorável de evidências de baixa qualidade. Temo que este artigo sirva de motivo para que se passe a recomendar TRH como prevenção cardiovascular. Em 2008, uma absurda diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia e Sociedade do Climatério recomendou TRH com prevenção cardiovascular, grau de indicação IIa. Agora, imagine o que “entusiastas” poderão fazer com esta nova evidência.

Sob a ótica de uma interpretação responsável e científica, até que se prove o contrário, TRH não previne eventos cardiovasculares.

11 comentários:

  1. Uma palavra para este post: FANTÀSTICO! Parabéns!
    Lilian Carvalho

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  2. É impressionante como seus posts e comentários sempre me fazem aprender. Gostaria de agradecê-lo, sempre, por ter feito da parte de minha qualificação e banca e pelo excelente curso de bioestatística. Não é possível mensurar a relevância destes fatos em meu conhecimento científico. Obrigada! Flavia Villas-Boas

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  3. Como sempre direto na "veia" , sensacional , brilhante .
    Serve para esse caso e muitos semelhantes
    Wálmore Siqueira

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  4. Outro viés que pode ter ocorrido em decorrência do não cegamento do estudo é o efeito de Hawthorne. Isto é, o próprio fato de as mulheres saberem que estão usando TRH com a espectativa de benefício cardiovascular pode gerar mudanças de comportamento (aumento da atividade física, mudança de hábitos alimentares) que trariam por si só benefício cardiovascular.
    Certamente seus médicos não disseram "olha nós já temos evidencias do WHI de que esse reméio que vou lhe dar aumenta sua chance de ter um infarto" antes de alocarem suas pacientes no grupo DROGA.

    Ótima postagem.

    Michael Sabino

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  5. Excelente!
    Falando sobre TRH, a nova moda são os hormônios bioidenticos, que estão sendo prescritos e adotados como método seguro sem comprovação cientifica com qualidade.

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    1. Infelizmente!
      Ainda me espanta a facilidade com medicos caem nessa.

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  6. Esse post vai de encontro ao novo livro " Bad Pharma" do Ben Goldrace. Parabens pelo post

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  7. Não perco um post.

    Excelente como sempre.

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  8. Concordo com vc. Só uma correção: existe tratamento que a depender do momento do uso gera efeitos diferentes como a endarterectomia pós AVC/AIT, a ACTP em artéria totalmente ocluída pós IAM com supra e a trombólise quimica no IAM com supra e AVCi.

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    1. Mas aí não é efeito paradoxal, é ausência do efeito benéfico pretendido adicionado a eventos adversos "on top of".

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