Na postagem sobre o estudo PARADIGM-HF, analisamos a medida pontual do número necessário a tratar (NNT) do LCZ696. Naquela oportunidade prometi que voltaria ao assunto a fim de discutir como avaliar a precisão da estimativa do NNT. Isto é importante, pois devemos nos condicionar a avaliar não apenas a medida pontual, mas também os limites do intervalo de confiança, os quais representam a estimativa na pior e na melhor hipótese. No contexto de um ensaio clínico, isso vale para as medidas do risco relativo, hazard ratio, risco absoluto e NNT.
Normalmente, o NNT não vem descrito pelos trabalhos, o que fazemos é calcular a redução absoluta do risco (subtraindo o risco de um grupo por outro) e fazendo 100/redução absoluta do risco = NNT.
Mas como saber o intervalo de confiança do NNT ?
Em termos de precisão, o PARADIGM-HF nos forneceu apenas o intervalo de confiança do hazard ratio. Mas o bom é que podemos usar este para chegar ao intervalo de confiança do NNT. Sabemos que hazard é diferente de risco (postagem antiga - hazard leva em conta o tempo livre do evento e não apenas o evento), mas para simplificar usarei hazard ratio como se fosse um risco relativo para o cálculo que virá a seguir.
O risco relativo foi de 0.80, com intervalo de confiança entre 0.73 e 0.87. Desta forma, podemos calcular o intervalo de confiança da redução relativa do risco (1 - risco relativo), que fica entre 13% (1 - 0.73) e 27% (1 - 0.87).
O segredo para estimar o intervalo de confiança da redução absoluta de risco está em utilizar a incidência do desfecho no grupo controle, como representante do que seria esperado de risco sob o tratamento usual com enalapril (risco basal). Este risco no grupo controle foi 26.5%.
Agora, para saber a redução absoluta de risco, devemos multiplicar a redução relativa de risco pelo risco basal. Por exemplo, se eu ganhar 50% de uma herança (relativo), para saber o valor que receberei, multiplico 50% pelo valor absoluto da herança (50% x 10.000.000 = me dei bem).
No PARADIGM-HF, a pior hipótese da redução relativa do risco é 13%. Sendo assim, na pior das hipóteses, a redução absoluta do risco será de 3.4% (13% x 26.5%).
Na melhor das hipóteses, a redução relativa do risco é 27%. Sendo assim, na melhor das hipóteses, a redução absoluta do risco será de 7.2% (27% x 26.5%).
Portanto, o intervalo de confiança da redução absoluta do risco é 3.4% a 7.2%.
Agora vamos usar esse intervalo de confiança da redução absoluta do risco para saber o intervalo de confiança do NNT: 100/3.4% a 100/7.2%. Ou seja, enquanto a estimativa pontual do NNT é de 21 (tratamento de grande impacto) e seu intervalo de confiança fica entre 14 e 29. Observem que isso é preciso, pois na pior das hipóteses o NNT seria de 29, o que se considera um benefício relevante. Se fizermos essa análise para morte, o NNT seria de 30, com intervalo de confiança entre 21 e 55. Na pior das hipóteses a redução de mortalidade seria de magnitude moderada.
Este estudo de grande tamanho amostral nos fornece uma satisfatória precisão do NNT. Lembro que embora o NNT sugira grande magnitude, este estudo tem problema sério de aplicabilidade pois não se definiu como um estudo de prova de conceito ou pragmático (vide postagem anterior).
Percebam que para realizar essa análise, pensamos se a pior hipótese do NNT ainda seria uma número razoável. Essa é a técnica, pensar sempre na pior hipótese.
De intervalo de confiança em intervalo de confiança (RR - RRR - RAR - NNT), terminamos por encontrar o intervalo de confiança do NNT.
Agora vamos a outro exemplo, onde a medida pontual do NNT sugere grande impacto, porém o estudo não tem precisão.
Em postagem antiga do Blog discutimos um ensaio clínico de apenas 76 pacientes com endocardite bacteriana e vegetação grande, que foram randomizados para cirurgia imediata ou tratamento conservador (cirurgia apenas se instabilidade). O trabalho mostra que a cirurgia precoce reduz o desfecho primário combinado de morte e embolia sistêmica de 23% (controle) para 3% (intervenção) - a custa apenas de redução de embolia. Observem que isso resulta em redução absoluta do risco de 20% (23% - 3%), o que dá um impressionante NNT = 5.
Embora esta cirurgia seja de alto risco (paciente usualmente com quadro infeccioso ainda não controlado, muitas vezes instável clinicamente), um NNT de 5 nos motivaria a aventurar esta conduta. Porém devemos nos perguntar qual a precisão deste NNT = 5 ?
Observem que o hazard ratio do estudo é 0.10 (90% de redução do hazard), porém o intervalo de confiança deste hazard ratio vai de 0.01 a 0.82. Isto indica que a redução relativa do risco (hazard) é muito imprecisa, com intervalo de confiança de 18% a 99%. O risco basal (grupo controle) é 23%. Aplicando estas reduções relativas do risco ao risco basal, encontramos que a redução absoluta do risco pode ser tão grande quanto de 22.77% (99% x 23%) ou tão pequena quanto 4,14% (18% x 23%).
Sendo assim, este NNT = 5 tem um intervalo de confiança variando de 4 (100/23) a 25 (100/4). Ou seja, é muito impreciso. E considerando a possibilidade de um NNT = 25 para prevenir um evento embólico (sem reduzir mortalidade), ficamos muito na dúvida se devemos arriscar complicações advindas de uma cirurgia em momento não ideal. Este é um exemplo de estudo pequeno não garantindo precisão suficiente do NNT.
Uma das utilidades de meta-análises é obter um intervalo de confiança do RR mais estreito e permitir melhor precisão do intervalo de confiança do NNT. Da mesma forma que os artigos, as meta-análises não trazem este dado, mas podemos calcular pelo intervalo de confiança do RR e pela medida basal do risco demonstrado da meta-análise.
* Para análise de magnitude de efeito quando o desfecho é numérico, acesse esta postagem do Blog H1 Estatística.
Ótima postagem, professor! Usei este raciocínio para calcular o intervalo de confiança do NNT para o estudo Capricorn (desfecho mortalidade por todas as causas). Para minha surpresa, o NNT oscilou entre 16-133 (quanta imprecisão!). Excelente dica metodológica. Mais uma ferramenta para que possamos selecionar melhor as evidências científicas, separando o joio do trigo.
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