Canais de Luis Correia

quinta-feira, 14 de abril de 2016

O Sofisma Científico no Caso Zika e Microcefalia.





Em dezembro do ano passado, utilizei a suposta causalidade entre Zika e microcefalia com gancho para discutir o paradigma científico (ou ausência dele) no pensamento médico. O texto ganhou grande repercussão, com 57.000 acessos, citações na Folha de São Paulo e Associated Press. A partir daí, resolvi deixar o assunto de lado, pois nosso Blog não objetiva esgotar tópicos específicos, mas visa discutir ciência aplicada à medicina. Além do mais, sou cardiologista e fiquei cansado desse assunto.

Mas o assunto nunca me deixou de lado, pois colegas insistem em me mandar cada artigo publicado sobre o microcefalia. Este é o exemplo de Julival Ribeiro, infectologista e amigo de Brasília, um inconformado com a carência de pensamento científico sobre esta questão. Foi nesse contexto que Julival me mandou ontem uma manchete do CDC: "Zika Virus Definitely Causes Microcephaly", que cita um novo artigo do New England Journal of Medicine. Não li o artigo, deixei para depois, quando chega uma nova mensagem de Julival dizendo “vale a pena ler”. E nas horas subsequentes, mais três colegas me mandaram o artigo em PDF. 

Daí pensei, deve ser uma nova evidência que surge, quem sabe algum estudo epidemiológico grande, mostrando uma decente associação entre Zika e microcefalia. Então resolvi verificar e me surpreendi com o fato de que não havia uma nova evidência, apenas uma análise das poucas evidências existentes até o momento. 

O título do trabalho publicado ontem e que gerou essa posição “definitiva” do CDC é “Zika Virus and Birth Defects: Reviewing the Evidence for Causality”. Lendo a revisão, podemos confirmar que de fato há muito pouca evidência dando suporte à associação causal.  Nenhuma novidade. 

O que me chamou atenção neste artigo foi o espetacular sofisma científico criado pelos autores. Ficou irresistível, tive que voltar usar Zika e microcefalia para falar de ciência. 

Aristóteles, o filósofo, foi o primeiro a dividir argumentos em duas classes: os verdadeiros e outros que não o são, embora pareçam. Estes últimos são os sofismas. Os sofismas parecem verdadeiros, pois são pautados em fatos verdadeiros. Porém estes fatos não levam necessariamente a argumentos verdadeiros. 

O uso dos Critérios de Shepard para teratogênese criou um bom ambiente para sofismar, pois deu veracidade ao texto, uma veracidade baseada na autoridade de um cientista respeitável. Foi nesta ambientação que a aplicação das evidências existentes aos Critérios de Shepard se constituiu em um grande sofisma.

A leitura do artigo é um tanto cansativa, pois passa por vários critérios. Por isso vou resumir aqui a engenhosidade do sofisma. De acordo com os Critérios de Shepherd, a causalidade é sugerida quando os critérios 1, 3 e 2 ou 1, 3 e 4 estão presentes. 

O critério 2 não se faz presente, tal como reconhecido pelos autores. Seria a existência de estudos epidemiológicos de alta qualidade. Sendo assim, sobra a combinação dos critérios 1, 3 e 4 para fechar a causalidade. O critério 3 existe, pois representa a descrição de um fenótipo específico relacionado aos casos. Os fenótipos estão bem descritos nos relatos. 

Vamos então abordar os critérios 1 e 4, que nos apresentam interessantes sofismas.

O critério 4 diz que, em casos de associação exposição-desfecho, a exposição ao agente teratogênico deve ocorrer em momento crítico da gravidez (nos primeiros meses). Sim, há muitos relatos de casos em que a Zika foi diagnosticada nos primeiros meses. 

O problema é que as observações não representam associações: quase todas são relatos de caso, representando co-existência, o que é diferente de associação, como mencionado em nossa postagem anterior. O único trabalho que demonstra associação foi a coorte longitudinal de 88 mulheres publicada recentemente no New England Journal of Medicine: 72 mulheres que tiveram sorologia positiva para Zika versus 16 de sorologia negativa. O primeiro grupo apresentou casos de filhos com defeitos congênitos, enquanto o segundo grupo não. Detalhe é que este estudo não traz o valor de P desta comparação. Por curiosidade eu calculei: P = 0.054, ou seja, esta associação, neste pequeno estudo, não alcançou significância estatística. 

Portanto, este critério 4 (exposição nos primeiros meses de gravidez) é observado em relatos de caso (não são associações) e em um único estudo que "mostra" uma associação não estatisticamente significante. Sofismou, pois descreveu estudos, porém estes não são suficientes para conclusão.

Sofisma Estatístico


É a discussão do critério 1 a mais interessante do ponto de vista estatístico e científico. Este é o critério da combinação entre uma rara exposição associada a um raro desfecho (raro tipo de defeito congênito). A lógica desse critério é que a co-existência de duas coisas raras é aleatoriamente improvável. Tão improvável de ocorrer aleatoriamente, que sugere ser uma relação causal (o que não é acaso, é causa).   

Sim, é aceitável que microcefalia seja considerado um evento raro. Mas Zika é raro? Claro que não, em nosso meio. Mas daí o autor usou raras observações feitas de grávidas que moravam em lugares sem Zika, que transitoriamente passaram por países como o Brasil e terminaram com um filho acometido pela microcefalia. É raro mulheres não brasileiras pegarem Zika e microcefalia é raro. 

Esse método de rara exposição/raro desfecho é também chamado do “método do médico astuto”, pois caracteriza um caso inesperado (não procurado) com que o médico se depara e por ser astuto ele percebe algo importante. No entanto, o médico só seria astuto se tivesse se deparado com um caso raro/desfecho raro antes do modismo atual. 

Hoje em dia, reconhecer essa associação não faz de ninguém astuto. Não ser astuto significa que todo mundo está procurando uma associação dessa, portanto encontrar no mundo duas coisas raras coexistindo, quando o mundo todo está procurando por isso, deixa de ser raro. Este encontro deixa de ser improvável.

É pouco provável que essa rara coexistência seja encontrada aleatoriamente. Porém é muito provável que essa rara coexistência seja encontrada se todos os médicos do mundo estiverem procurando por isso. 

Sendo assim, aqui não estamos diante de uma coisa inusitada. Se procuramos é fácil encontrar coincidências raras. O raro é encontrar isso sem procurar, como faria o médico astuto. 

Portanto, esse é o sofisma mais inteligente de todos. 

Problema das Múltiplas Comparações


Isso nos remonta ao fenômeno que faz com que, no momento inicial de testes de hipóteses, haja uma grande prevalência de pequenos estudos positivos, pois está todo mundo tentando encontrar significância estatística em milhares de observações simultâneas no mundo. Ocorre o problemas das múltiplas comparações. 

Se apenas um estudo está sendo realizado e o alfa do estudo for 0.05, ao obter um valor de P < 0.05 o pesquisador vai rejeitar a hipótese nula e comprovar a hipótese de causalidade. Ele rejeita a hipótese nula pois tem no máximo 5% de probabilidade de errar por acaso. 

No entanto, imaginem que 1.000 pesquisadores estão testando uma mesma hipótese, que é falsa. Se cada pesquisador usar o alfa de 0.05 (como usual), 50 estudos serão positivos (P = 0.05) por acaso (falso-positivos). 1000 x 5% = 50 estudos.

Sabemos que no período inicial do teste de uma dada hipótese, o entusiasmo faz com que cada um desses 50 estudos falso-positivos tenham mais chance de ser publicados do que cada um dos 950 estudos verdadeiro-negativos (viés de publicação).

Os autores da revisão das evidências, publicada na mais importante revista médica do mundo, falam apenas dos Critérios de Shepard, criando um ambiente sofístico. Mas se esquecem que a premissa científica inicial é escrutinar a qualidade da evidência que dá suporte às análises de causalidade. Estas evidências são de qualidade insatisfatória.

Secundariamente, os autores ainda avaliam a causalidade pelos critérios de Hill, mas esta análise deve ter feito Hill levantar do caixão. Nem comentarei. 


O Estado da Arte


Do ponto de vista de experimental, está comprovado (in vitro) que o vírus da Zika tem competência para destruir neurônios. Esta informação traz plausibilidade biológica para a relação causal entre  infeção por Zika e aumento da incidência de microcefalia. Mas este é apenas o primeiro passo, precisamos evoluir para confirmação de associação em estudos de qualidade, seguida de ajustes estatísticos que demonstrem que a associação é independente de confundidores. O vírus mata neurônios, mas isso é diferente de dizer que o vírus é o causador de um suposto aumento substancial de microcefalia.

Neste momento, a discussão de causalidade não pode ser definitiva, como dizem as manchetes. Assim corremos o risco de sofismar. Esta questão será resolvida dentro de uns três anos, quando o entusiasmo baixar e as evidências positivas que estão rapidamente surgindo (viés de publicação é mais prevalente na fase inicial dos testes de hipótese) forem confrontadas com evidências negativas que aparecerão gradativamente. 

Depois de uma análise cuidadosa da totalidade das evidências, dentro de alguns anos, poderemos chegar a uma conclusão a respeito da probabilidade desta hipótese causal ser verdadeira. 

Por enquanto, vale mais a pena discutir o que é ciência: a humildade de reconhecer a incerteza das hipóteses e utilizar a lente do método científico na prevenção das ilusões criadas pelo mundo a nossa volta. 

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Objetivos Didáticos da Postagem:

- Pensamento científico (ceticismo versus crença)
- Teste estatístico de hipóteses
- Casualidade versus causalidade
- Problema das múltiplas comparações
- Viés de publicação




11 comentários:

  1. Me tranquiliza ler uma postagem sobre esse assunto feita por alguém tão embasado!!

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  2. Acho que muitos, incluindo Ministros da Saúde, estão como o garotinho da charge... não fizeram a lição de casa, mas tem o que dizer. Gostei! Sem histeria.

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  3. Obrigado pelo compartilhamento, agora após ler integralmente vou estudar esta publicação mais profundamente.

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  4. Talvez o critério do médico astuto tenha sido inicialmente preenchido pela médica Adriana Melo do setor de medicina fetal do Isea, a principal maternidade pública de Campina Grande. Entre outubro e novembro do ano passado, compartilhou a angústia de pacientes grávidas de bebês que nasceriam com microcefalia. Adriana Melo suspeitou que se estava diante de um novo padrão de microcefalia: “Eu nunca tinha visto casos de destruição do cérebro dos fetos com tamanha virulência”.Havia uma pista: pacientes tiveram manchas vermelhas na pele e coceiras durante as primeiras semanas da gravidez. O zika era visto ainda como uma modalidade branda de dengue. Em novembro,quando o mundo ainda não procurava por esta associação , por iniciativa de Adriana Melo, a Fiocruz recebeu material colhido das pacientes e a partir daí, do relato dos casos, é que o talvez tenha começado o "modismo" .

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    1. Colega, bem lembrado, a Adriana Melo serve de exemplo para aprofundarmos o conceito.

      O critério de causalidade do "médico astuto" se refere a exposição rara/evento raro. Essa combinação é importante para que o evento seja extremamente inusitado. Adriana Melo deve ser astuta, porém cientificamente não preenche este critério, pois Zika (exposição) não é rara no Brasil.

      Por este motivo os autores do artigo se referiram apenas a grávidas não brasileiras. Mas nesse caso, todos os médicos do mundo já estavam atentos, ficaram menos astutos que Adriana.

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  5. Desculpe, mas o autor do texto bastante inteligente por seus raciocíonios e perspicaz em suas definições e lógicas de observação parece não apresentar qualquer conclusão que auxilie a médicos, cientistas e população quanto aos "trabalhos científicos" que trariam a luz o verdadeiro causador de tamanho malefício. O texto é muito bom, mas após várias definições filosóficas e científicas carece de conclusão de igual retidão e cientificismo. Em minha ignorância sobre todos os componentes que possivelmente estariam associados a microcefalia de números alarmantes em alguns Estados brasileiros, gosto da busca de dar méritos aos colegas que trabalham em busca de respostas, mesmo quando a matemática (epidemiológica) parece desmentir.

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  6. Sugiro ler:Objetivos Didáticos da Postagem:

    - Pensamento científico (ceticismo versus crença)
    - Teste estatístico de hipóteses
    - Casualidade versus causalidade
    - Problema das múltiplas comparações
    - Viés de publicação

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  7. Analise perfeita meu caro jovem professor! Eu nunca tive duvidas que o Zicavirus foi colocado como "boi de piranha" "pagando o pato", etc. E a gente sabe muito bem a causa da epidemia de microcefalia que abalou o nordeste. Em respeito a algumas publicacoes aceitas em revistas de altíssimo nivel eu nao vou discutir que, em rarissimos e pontuais casos, o zicavirusZica virus possa provocar microcefalia. Quanto a ser agente que provocou a epidemia eu diria que sofisma é pouco . Foi uma artimanha vergonhosa pra encobrir erros grosseiros. A gente espera que o MPF de Recife investigue a fundo e que os responsaveis paguem pelas mais de 6000 familias destruidas

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  8. Amigo Luís, como sempre, li seu textos com grande admiração. Parabéns! É fundamental que se entenda ciência como ciência, e aquilo que se divulgue como resultado de "pesquisa científica" precisa ter passado por todas as adequadas "peneiras". Você tem uma missão valiosíssima de ajudar pessoas e, em virtude do seu espírito cético, investigativo, curioso e determinado, parece possuir uma lente que detecta rapidamente falácias e sofismas. A principio são argumentações que parecem apresentar dados consistentes, em muitos instantes são assinadas por cientistas gabaritados e afiançadas por instituições respeitáveis. Entretanto, quando miradas a partir de um olhar mais cuidadoso, essas observações não parecem atender ao que se poderia chamar de conhecimento científico. E você tem expertise para se debruçar dessa forma sobre os dados e ver o que para alguns está oculto. Sabemos que, em se tratando de saúde pública, que dizem respeito à iniciativas legais e vontade política, há várias questões éticas a serem observadas. Muitas ditas "pesquisas" - e é preciso que se destaque esse aspecto - servem a interesses bastante diversos daqueles que visam ao bem comum. Considero muito importante o que você vem fazendo, em seu papel de esclarecer, e quem for um pouco mais audaz não se conformará com ideias já mastigadas, e questionará essas "verdades". Como dizia Kant: "Sapere aude!" ("Ouse saber"). Entretanto, como minha estrada não é científica, transito por estradas do conhecimento diferentes - filosofia, arte, mitologia, senso comum - para mim e, provavelmente, para outros leitores também, ficam algumas questões: o que fazer enquanto a ciência não tem a resposta definitiva sobre zika-microcefalia? Levando-se em conta que, muito provavelmente, serão necessários alguns anos para pesquisas sérias oferecerem maiores evidências, e para se saber se essa hipótese causal é verdadeira ou não, o que cientistas sérios como você sugerem à população? Embora a ciência seja incapaz neste momento de dizer um sim ou um não, pelo que li em seu texto, a população faz bem em manter atitudes preventivas? Grande e forte abraço, amigo.

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    1. Kau, um prazer ler suas palavras, vindo de um filósofo como você.

      Sua pergunta é uma das que não quer calar. E vai além da questão zika/microcefalia. É universal. Portanto minha resposta se aplica universalmente a questões deste tipo.

      A demonstração da causalidade entre Zika e microcefalia não é necessária para que haja um combate à doença. Reduzir mosquitos e evitar exposições excessivas a doenças durante a gravidez são condutas que independem desta prova de conceito. Devem ser implementadas sempre.

      A necessidade da prova do conceito se faz quando falamos de condutas que têm um preço (aqui não me refiro apenas ao financeiro). Por exemplo, mulheres mudarem de país durante a gestação ou ficarem confinadas durante 9 meses em um quarto ou usarem excesso de repelentes (faz bem ao feto?) ou até mesmo abortarem pela suspeita de ter tido Zika (há relatos); ou um investimento desproporcional em financiamento em pesquisa para esta questão, em detrimento de outras questões em igual importância.

      Estas condutas precisam ser embasadas por evidências de qualidade e principalmente por uma noção quantitativa de risco (probabilidade), que apenas estudos epidemiológicos de qualidade podem nos trazer.

      Condutas possuem inúmeras consequências não intencionais que concorrem com apenas uma consequência intencional. Por isso que, na incerteza, certos atos terão mais probabilidade de um custo/benefício desfavorável.

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