Canais de Luis Correia

domingo, 17 de julho de 2016

A Tríade do Pragmatismo em Pesquisa Clínica



Tenho percebido um uso crescente do termo estudo pragmático na literatura médica. Recentemente foi publicada uma revisão no New England Journal of Medicine dedicada a este tipo de estudo. No entanto, há uma evidente heterogeneidade na literatura quanto à definição do significado e propósito deste tipo de estudo. Em meio a esta heterogeneidade, há equívocos que precisam ser clarificados. 

Em recente revisão realizada por nossa equipe de pesquisadoras no tema “evidências sobre evidências”, percebemos que os trabalhos falham em apontar importantes detalhes na distinção de estudos pragmáticos e discordam quanto a definições. 

Esta postagem tem o intuito de discutir de forma didática o sentido da palavra pragmático em estudos científicos, classificando-os em três tipos de contexto: a mensagem pragmática de eficácia, ensaio clínico pragmático de eficácia e estudo pragmático de efetividade. Enfatizo que os dois primeiros contextos se referem a estudos que avaliam eficácia, enquanto o terceiro caso representa o verdadeiro tipo de estudo de efetividade. Vocês perceberão ao longo deste texto que enfatizarei a importância da preferência na escolha do tratamento como um importante componente da efetividade. 

Mensagem Pragmática de Eficácia


Esta situação se refere a um tradicional ensaio clínico, onde a alocação para o tipo de conduta médica é randomizada. Neste caso, utilizamos o termo mensagem pragmática quando o resultado do estudo  se limita a orientar qual a melhor conduta, porém o seu significado científico não prova um conceito mecanicista. Utilizamos este raciocínio na análise do SPRINT trial, que traz a mensagem pragmática de que devemos almejar um controle mais intenso da pressão arterial. Porém, o desvio-padrão dos valores de pressão arterial alcançados nesse grupo foi amplo, indicando que boa parte dos pacientes randomizados para o tratamento intenso (PA < 120/80) apresentavam valores pressóricos acima disso. Sendo assim, o estudo não serviu para provar o conceito de que níveis de pressão hoje considerados normais podem na verdade causar de injúria vascular a ponto de predispor a efeitos adversos. Neste caso, denominamos a mensagem pragmática, pois este não é um estudo de prova de conceito. 

Por outro lado, quando analisamos o estudo IMPROVE-IT, interpretamos que este teria o valor de provar o conceito do colesterol como fator de risco para doença coronária. Alguns ainda tinham dúvida se o benefício do tratamento com estatina decorria da redução de colesterol ou do efeito direto (pleiotrópico) deste tipo de droga. Pois bem, ao demonstrar redução de eventos com outro tipo de droga (ezetimibe), este estudo serve para reafirmar o conceito de que colesterol é um fator de risco. A partir do critério de causalidade denominado reversibilidade, este é um estudo que prova o conceito de que colesterol incrementa risco cardiovascular, pois ao reduzir o valor do colesterol, o risco foi revertido. No entanto, não julgo que este estudo tem uma mensagem pragmática de nos indicar o uso corrente do ezetimibe associado à estatina, pois a redução do risco foi de pequena monta, com alto NNT. 

Um bom exemplo hipotético é o efeito do exercício na perda de peso. Já publiquei neste Blog uma postagem mostrando ensaios clínicos randomizados que negam este efeito. Nestes ensaios clínicos, o padrão dietético é igual entre os grupo exercício e não exercício, portanto avalia-se o efeito direto do exercício, independente da dieta. Esse efeito direto significa um teste de conceito mecanicista, explanatório. Mas se os pacientes fossem randomizados para exercício ou não exercício, e se deixasse livre a dieta, poderia ser que ao iniciar exercício os pacientes se motivassem a comer menos e perdessem peso. Daí haveria uma mensagem pragmática de que exercício leva a perda de peso, porém não uma mensagem mecanicista. 

Nestes casos, o efeito é demonstrado no mundo controlado dos ensaios clínicos randomizados, onde não há preferências na escolha da conduta (definida aleatoriamente). Por isso a mensagem se refere a eficácia e não efetividade. 

Ensaio Clínico Pragmático de Eficácia


Aqui nos referimos à implementação da conduta. Imaginem que queremos demonstrar a eficácia da fisioterapia para um quadro osteomuscular. Os pacientes são randomizados para realizar ou não realizar fisioterapia. Porém como exatamente será realizada a fisioterapia (tipo de exercício, número de sessões) ficará a cargo do fisioterapeuta. A pergunta é se devemos indicar fisioterapia, porém neste caso a liberdade dada ao fisioterapeuta se aproxima da forma como a conduta é adotada no mundo real. Mesmo assim, este ainda é um estudo de eficácia (não de efetividade), pois não há preferência do profissional ou do paciente na decisão médica (randomizada). 

Outro bom exemplo é o de estudos que randomizam pacientes para fazer ou não o screening de doença e depois deixam a critério do médico o que fazer com o resultado do exame. A pergunta se refere ao screening e é necessário avaliar o efeito real deste screening, por isso deixa-se o médico livre para tomar a conduta após saber o resultado do exame. Aí está o pragmatismo. Mas isso também não é efetividade (é eficácia), pois a decisão em questão é fazer ou não o exame, e neste caso a decisão é artificialmente determinada por um sorteio. 

Vejam que nesses estudos, a conduta é randomizada, mas a implementação da conduta não é precisamente definida, deixando uma certa liberdade ao profissional de saúde para definir a forma como fará. 

Há também outros critérios que trazem um certo pragmatismo a ensaios clínicos randomizados, como uma seleção ampla de tipos de pacientes, o não uso do placebo quando se quer avaliar o efeito total de um tratamento e outras questões. Porém julgo que o mais importante para a definição de pragmatismo é a implementação do tratamento.


Estudo Pragmático de Efetividade


Como sabemos, efetividade é eficácia no mundo real. Eficácia responde a pergunta: este tratamento pode funcionar? Isso é testado no mundo ideal, no laboratório dos ensaios clínicos, quando se mostra que a conduta gera um efeito. Efetividade é uma pergunta que hierarquicamente deve vir depois da demonstração controlada e válida de eficácia, e se refere à seguinte questão: este tratamento funciona?

Efetividade tem dois componentes que a fazem diferente de eficácia: um primeiro componente que se refere a uma maior variabilidade de tipos de pacientes e da qualidade de aplicação da conduta médica (aderência menor, cirurgiões menos experientes, coisas do mundo real). Este primeiro componente é bastante lembrado. Mas há um segundo componente, tão importante quanto, que é pouco lembrado na literatura: a preferência do binômio médico-paciente na escolha do tratamento. 

Aqui não coloco preferência de uma forma pejorativa, a conotação é de escolha mental, individualização do tratamento. Uma escolha norteada por conceitos de eficácia, mas que requer julgamento clínico para saber se aquele paciente deve de fato receber esse tratamento (qual o desfecho de interesse, risco de evento adverso).

Recomendações de conduta Classe I são aquelas que devem ser feitas quase universalmente. Por exemplo, a prescrição de uma antibiótico para um paciente com pneumonia. Esse tipo de tratamento não deve considerar muito preferência, deve ser quase uma regra, e neste caso é possível que a eficácia (mundo ideal) seja superior à efetividade (mundo real). 

Mas há as recomendações Classe II, onde deve-se ponderar risco/benefício, por exemplo. É um caso do uso de anticoagulantes na fibrilação atrial. Deve-se ponderar a magnitude do benefício da prevenção do AVC versus a magnitude do risco de sangramento. Ou no caso de indicação de cirurgias eficazes, porém cujo risco de complicação em pacientes específicos pode superar o benefício. Nestes casos que devemos ponderar, um estudo de efetividade traz uma informação adicional, pois este avalia se a escolha do médico, caso a caso, incrementa o resultado do tratamento no mundo real. Preferência, portanto, deve ser um aspecto importante nos estudos de efetividade. 

Enfim, nestes casos em que se precisa ponderar, um bom médico decidindo de forma individualizada pode ter um melhor resultado do que a escolha do tratamento por sorteio. A efetividade (mundo real) tende a ser superior à eficácia (mundo ideal).

A preferência do paciente também pode influenciar a efetividade. Por exemplo, imagine que rezar melhora a qualidade de vida de pacientes com câncer. Se a reza for uma escolha do paciente, se for sua preferência, este “tratamento” funcionará melhor do que em um ensaio clínico randomizado, onde a reza foi definida por sorteio, não por preferência. No ensaio clínico, pessoas que não gostam de rezar podem ser alocadas para a reza. 

Imaginem que estamos avaliando o benefício do exercício físico na melhora da capacidade funcional de pacientes com câncer. Se o exercício for um desejo do paciente que gosta de se movimentar, este poderá funcionar melhor do que se o exercício for definido por randomização. Um paciente que prefere o exercício, pode fazer o exercício de maneira mais dedicada do que um paciente foi que não gosta, mas foi randomizado para fazer. Mais uma vez, a efetividade (mundo real) tende a ser superior à eficácia (mundo ideal).

Desta forma, fica claro que um verdadeiro estudo de efetividade não pode ser randomizado. Pois ao randomizar, anulamos a escolha do tratamento por um processo mental. Saliento isto pois alguns autores, de forma equivocada (a meu ver), utilizam o termo ensaio clínico randomizado de efetividade, o que é uma contradição.

Definido o que é a verdadeira efetividade, vamos agora descrever como se faz um “estudo pragmático de efetividade”. Como falamos, este não deve ser um estudo randomizado, é na verdade um estudo observacional. Compara-se pacientes que fazem versus os que não fazem o tratamento. 

Logo, surge uma questão: haverá efeitos de confusão, claro, pois não houve randomização e pessoas que fazem o tratamento são diferentes das que não fazem. Portanto, neste tipo de estudo (observacional) se faz necessário um ajuste para estas variáveis de confusão. Agora vem o pulo do gato: no verdadeiro estudo de efetividade, o ajuste deve ser feito para o risco do paciente em ter o desfecho de interesse e não para a propensão do paciente receber o tratamento. 

Isso é diferente do que normalmente se faz em estudos de coorte que não avaliam impacto de tratamentos, como geradores de hipótese. Cria-se um escore de propensão do paciente receber o tratamento (preditores independentes do tratamento) e se ajusta o efeito do tratamento para estes fatores. Percebam que nesta situação, anula-se o efeito da preferência pelo tratamento, pois esta é representada pelo escore de propensão. Desta forma, estes tipos de estudo servem para gerar um hipótese de eficácia, antes da realização de um ensaio clínico. Depois de realizado o ensaio clínico randomizado que demonstra eficácia, um estudo pragmático deve ser realizado para avaliar a efetividade. E como a efetividade depende da preferência, o ajuste deve ser feito para variáveis associadas a risco do desfecho e não para um escore de propensão ao tratamento.

Assim, sequência cronológica dos testes de hipótese deve ser a seguinte:

  1. Estudo observacional que gera hipótese de eficácia (ajuste para propensão a receber o tratamento).
  2. Ensaio clínico randomizado que prova eficácia.
  3. Estudo pragmático que prova efetividade (ajuste de propensão para desfecho).

É simples, eu diria que há dois tipos de estudos observacionais que avaliam tratamentos: um primeiro que serve para gerar a hipótese de que o tratamento é eficaz, onde se deve ajustar para variáveis relacionas ao tratamento; um segundo que serve para avaliar efetividade de algo eficaz, onde se deve ajustar para o risco do desfecho. 

Estes método de estudo pragmático de efetividade está formalmente descrito por Franz Porzsolt, na revista Pragmatic and Observational Research (2015; 6: 47-54).

Na verdade, qualquer tipo de estudo pode ter um valor pragmático. Mas pragmático não é sinônimo de efetividade. Há pragmatismos relacionados a eficácia e há pragmatismos relacionados a efetividade. Devemos saber diferenciar o uso da palavra pragmático nestas diferentes situações. 


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Objetivos Didáticos da Postagem


  • Mensagem pragmática versus prova de conceito
  • A importância da preferência como componente da efetividade
  • Eficácia versus efetividade
  • Pragmatismo na implementação do tratamento
  • Os verdadeiros estudos pragmáticos

4 comentários:

  1. Olá, Luiz Cláudio, boa noite. Tenho uma questão, na sua opinião os teste de efetividade são geralmente feitos após ensaios clínicos? Não vejo muito desse tipo de estudo sendo feito, ou pelo menos,não vejo ele sendo dado muito valor. Você sabe por quê? Não queria fazer julgamento do que é mais ou menos importante, mas o teste de efetividade seria de maior interesse prático pra nós médicos, e ensaios clínicos são muito mais valorizados aparentemente.

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    1. Prezada Rebeca, obrigado pelo comentário. Acho que devemos evitar uma análise competitiva ensaios clínicos versus estudos de efetividade, no sentido do que é mais importante. Digo isso pois a função científica de cada um deles é diferentes, ambos são igualmente importantes. Há uma tendência a criticar ensaios clínicos randomizados pois se estes não representam o mundo real. Mas no sentido de prova de conceito, este é modelo mais adequado, neste momento não queremos algo que se assemelhe ao mundo real, pois este mundo é repleto de vieses. Depois do conceito demostrado, aí sim, vem os estudos de efetividade.

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  2. Olá Luiz Cláudio, parabéns pelo texto muito esclarecedor. Também tenho uma questão, você falou em relação que um estudo para avaliar a efetividade do tratamento de fisioterapia de forma pragmática seria um estudo de eficácia e não de efetividade. Com isso você pode poderia fazer um comentário a respeito da necessidade neste tipo de estudo de realizar um tratamento simulado para avaliar o efeito placebo. Ou em um estudo pragmático eu poderia simplesmente comparar o tratamento de fisioterapia com outro tratamento padrão. Obrigado

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  3. Olá Luiz Cláudio, parabéns pelo texto muito esclarecedor. Também tenho uma questão, você falou em relação que um estudo para avaliar a efetividade do tratamento de fisioterapia de forma pragmática seria um estudo de eficácia e não de efetividade. Com isso você pode poderia fazer um comentário a respeito da necessidade neste tipo de estudo de realizar um tratamento simulado para avaliar o efeito placebo. Ou em um estudo pragmático eu poderia simplesmente comparar o tratamento de fisioterapia com outro tratamento padrão. Obrigado

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