Canais de Luis Correia

sábado, 30 de julho de 2016

Análise Crítica das Evidências Internas: a quinta dimensão



A prática da medicina/saúde (baseada em evidências) é permeada por uma problema recorrente. Vamos bem até certo ponto, quando a coisa desanda. Todos (quase todos) reconhecem a importância de embasamento científico, nos interessamos por pesquisar evidências, avaliamos o nível de evidência de forma cada vez mais competente. No entanto, ao nos deparamos com a decisão clínica, muitas vezes tomamos um rumo não científico. Na hora H desafinamos. Por que?

A resposta é que falta um importante passo na sequência de ações que caracterizam medicina baseada em evidências.  

Classicamente, a prática de medicina baseada em evidências segue os seguintes passos sequenciais: (1) a partir de um dilema clínico, desenvolver uma pergunta científica; (2) Em seguida, pesquisar evidências a respeito da pergunta científica; (3) Analisar criticamente a qualidade e relevância das evidências; (4) Caso válida e relevante, incorporar a evidência na prática clínica. Nesta sequência clássica, nossa decisão é norteada por “evidências externas”. 

No entanto, por trás de toda decisão, existe o que chamamos de “evidências internas”, que exercem (voluntária ou involuntariamente) um papel crítico na forma como interagimos com evidências externas no processo de tomada de decisão. As evidências internas podem nos aproximar ou nos afastar do paradigma da decisão científica, a depender se estas concordam ou discordam das evidências externas. 

Desta forma, na prática da medicina baseada em evidências não devemos apenas acessar e julgar a qualidade das evidências externas. Devemos fazer o mesmo processo com evidências internas. 

O acesso das evidências internas foi originalmente proposto por Franz Porzsolt em artigo publicado no Evidence Based Medicine, em 2006. Em conversa recente com Franz, evoluímos para o conceito de (não só acessar), mas também analisar criticamente as evidências internas (critical appraisal of internal evidences), tal como fazemos com evidências científicas externas. 

Sendo assim, a análise de evidências internas deve preceder a análise das evidências externas. 

Como ?

Após determinar a pergunta científica, devemos “pesquisar” nossas evidências internas. Ou seja, utilizar um processo mental de busca das nossas crenças a respeito da determinada questão. No que eu acredito ou tento acreditar? Qual minha preferência a respeito desta questão? 

Uma vez identificando as evidências internas, devemos passar para a análise crítica destas evidências. Neste caso, podemos verificar de onde vem nossa crença interna: da percepção de plausibilidade extrema (válida), do conhecimento de trabalhos válidos que trazem evidência suficiente a respeito da questão? Por outro lado, podemos verificar que temos uma crença interna não embasada em evidências. Este processo mental nos traz uma conscientização de um preconceito que pode ser justificável ou não justificável. 

Portanto, ao identificar que já temos uma evidência interna, devemos fazer a seguinte sequência para o “critical appraisal”:

  1. Minha evidência interna tem plausibilidade extrema?
  2. Minha evidência interna é respaldada por trabalho científicos de qualidade que tomei conhecimento previamente?
  3. Se a resposta das questões acima for negativa, partiremos para uma avaliação mais crítica em relação à nossa opinião:
  • Minha crença pode ser provocada por uma vantagem pessoal a respeito da questão (conflitos de interesse material ou intelectual)? Observem que conflitos de interesse não representam apenas questões materiais. Como acadêmico da área, eu posso ser demasiadamente cético em relação a algo, assim como um natureba pode ser demasiadamente crente em relação a algum tratamento natural. 
  • Minha crença é provocada pelo desejo de tomar o rumo mais confortável, pois isto é o que a maioria dos médicos faz? (embora duvidoso).
  • Estou caindo na mentalidade do médico ativo, quando agir predomina sobre não agir, sem um  racional específico. 
  • Estou valorizando devidamente a incerteza ou prefiro me basear em uma certeza platônica?

Após este processo, teremos nos preparado melhor para analisar as evidências externas. Embora não haja garantia de que nosso inconsciente não vá nos trair, este é um processo de conscientização que reduz vieses cognitivos comuns na mente médica. 

Além da análise crítica de nossas crenças, esse processo nos permite reconhecer as preferências nossas e dos nossos clientes. Ou seja, partimos da preferência, olhamos as evidências e se pudermos sincronizar as duas coisas, o faremos. Evidências nos trazem um norte para tomada de decisão, que no entanto devem ser revistas em relação à individualidade e preferência de cada um. Um tratamento eficaz pode ser inefetivo se aplicado a um paciente que o rejeite e cuja aderência será ruim. Precisamos alinhar as duas coisas e o primeiro passo para isso é a análise de nossas evidências internas. 

A Verdadeira Medicina Baseada em Evidências

Medicina baseada em evidências internas e externas. Essa é a verdadeira. 

Esta abordagem leva em consideração que por traz de uma decisão médica, há um ser humano. Mesmo vestido de profissional de saúde, este indivíduo continua humano, sujeito às emoções e contradições de suas condutas. 

Por vezes, noto uma abordagem burocrática em medicina baseada em evidências, principalmente por parte dos norte-americanos. Esta abordagem incomoda médicos e profissionais de saúde, que sentem que o paradigma científico como algo técnico e que não respeita a subjetividade da decisão. Isto distancia ciência de profissionalismo.

O que proponho não é a liberdade de fazer o que simplesmente o que se prefere. Pelo contrário, mantenho uma certa rigidez científica. Mas em primeiro lugar o olhar deve ser para o interior do profissional que estuda evidências, mas que tem crenças, que vive angústias relacionadas às suas decisões. 

Este olhar não implica em nortear decisões pelas emoções. Pelo contrário, implica em reconhecermos, respeitarmos e nos preparamos para evitar que emoções gerem vieses cognitivos em nossas decisões.

O quinto passo aqui apresentado é o reconhecimento de que temos preferências, embora nem sempre estas devam nos nortear.  Falta este passo em abordagens tradicionais e burocráticas. Precisamos evoluir o pensamento médico. E pensamento envolve emoções e preferências. 

7 comentários:

  1. O encontro de 2 seres humanos realmente é permeado de tantas questões..... 2 subjetividades com uma história de vida, crenças, valores. A ciência permear as decisões é essencial, mas determiná-las é um passo além. Parabéns pela reflexão, o conhecimento realmente pode estar entre a verdade e a crença. "A medicina é uma ciência de verdades transitórias"... Ou seja, nem a verdade é desvinculada de um pano de fundo cultural e histórico. (http://paulolotufo.blogspot.com.br/2008/09/medicina-cincia-das-verdades.html)

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  2. Ótimo texto professor! Acredito que o problema vá muito além da decisão médica, sendo na verdade um reflexo da irracionalidade de muitas das decisões que tomamos no dia a dia. Como seres humanos, pensamos que temos controle sobre nossas escolhas, mas estamos alheios aos inúmeros fatores que nos iludem e secretamente manipulam nossas mentes, nos influenciando ao tomar decisões e nos distanciando do racional.

    Sugiro estes dois vídeos aqui:
    https://www.youtube.com/watch?v=V2EMuoM5IX4
    https://www.youtube.com/watch?v=9X68dm92HVI

    O primeiro fala de como o método heurístico afeta nossas decisões, e o segundo fala sobre comportamentos irracionais.

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  3. Por que não buscar uma medicina baseada na promoção de uma vida saudável? Que busque evidências numa ciência que investigue caminhos e soluções para se promover uma vida mais saudável?
    Focar na doença(ao invés da saúde) parece o mesmo que acreditar que ao eliminar um sintoma irá curar o indivíduo!
    Um ser humano não é uma máquina, a expressão da emoção tem muita influência na saúde do organismo. A verdade não exclui a emoção!

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  4. Luiz, artigo brilhante como sempre e extremamente pertinente e verdadeiro. Nossas crenças, preferencias e opiniões influenciam nossas decisões e seu artigo nos dá um caminho de como lidar com isso. Nós tendemos a valorizar os dados que vem de encontro ao que acreditamos e subestimar os dados que nos contradizem, inclusive nas decisões médicas. Vou considerar suas reflexões daqui para frente, pode ter certeza

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  5. Perfeito! Muito inspirador!
    Deveríamos ler isso todo dia para não sermos "corrompidos pelo sistema" e tornar-mos mecanicistas!

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  6. Caro Luís,

    Percebo uma dimensão "ético-filosófica" nessa sua afirmação. Como diria a canção, um (bom) médico é sempre um cientista, "a fim de saber / averdadeira verdade"!

    A busca do viés em si próprio é um passo necessário do processo. O médico deve avaliar de uma maneira tão desprovida de emoção como possível: os sinais e sintomas do paciente, suas reações emocionais, e o que aquele processo representa em sua vida. Constrói assim o chamado "quadro clínico", Interroga o paciente, e lhe deseja "aonde quer chegar" (Quando aprendi isso estava incluído na chamada "Queixa Principal").

    Daí com base em sua Ciência o médico elabora a intervenção (terapêutica e/ ou diagnóstica), pactua seu cumprimento com o paciente e marca o retorno (época em que será reavaliada a "Queixa principal".

    Bem, eu considero que cada paciente é um experimento. Então nós fazemos os passos de 1 a 4, até resolver a "queixa principal". Se alguma coisa não dá certo, reavaliamos. Aquelas intervenções de sucesso, aplicamos em nossos outros pacientes.

    Mas é claro que 1-2-3-4 não podem ir contra o senso comum, ou ontra a ética e ciência vigentes.

    O que se passa é que hoje temos, por exemplo: um sem-número de anti-hipertensivos; diversos padrões de "dieta saudável"; diversas maneiras de se abordar um paciente com Diabetes Melitus, etc. Todos potencialmente validos, desde que se aceitem as premissas de cada um (prazo de efeito, efeitos adversos, hábitos que a pessoa deve sacrificar etc.)

    Então além da "Queixa Principal" nós deveríamos perguntar ao paciente quel é a sua "Solução Pricipal" -- Isto é, dentre as soluções plausíveis, qual a que mais lhe agrada?

    Aí ficamos é claro com o ônus de explicar, bem explicadinho, o que representa cada uma (quando por vezes nem semproe nós temos 100% de certeza, pois não conhecemos por exemplo as isoenzimas daquele paciente).

    Então no meu entender a questão principal não está na Medicina Baseada em Evidências (um instrumento que considero formidável), mas na Medicina e na maneira como ela é aplicada.

    A quinta profissão é nossa de direito como profissionais. Por exemplo, eu jamais indicaria um procedimento que vai contra meus ppricípios básicos, ou contra a legislação, ou o qual não me encontro habilitado a executar. Na melhor das hipótesies, indicaria um outro profissional.

    Mas faço aqui uma digressão. Os Romanos diziam:

    "Quis custodiat custodes?" -- "Quem vigiará os vigias?"

    Taí uma resposta que ainda não encontrei na Evidence Based Medicine.

    - Victor Lage de Araujo

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  7. Prezado Luis, mais uma vez parabéns pela reflexão.
    Contribuindo:
    1) Não percebi diferença substancial entre o conceito de "evidências internas" e o de "viés cognitivo", ao menos quando falamos de evidências internas sem coerência externa: são nada mais que crenças, dogmas, preconceitos, vieses. Sua origem (supostamente) interna ou externa não modifica sua natureza dogmática, e sua influência interna (e normalmente inconsciente) se expressa na forma de enviesamento.
    Parece, à primeira vista, irrelevante falar das semelhanças/diferenças entre esses conceitos, mas não é: vieses e, porque não, falácias, são objeto de estudo da lógica e da filosofia há milhares de anos.O novel conceito de "evidência interna" não apenas é desnecessário para enfrentar o problema como pode nos afastar de extensa contribuição teórica na área.

    2) Por outro lado, um conceito relativamente recente merece atenção quando pensamos nas últimas etapas do processo decisório, na hipótese de que haja conflito entre essas evidências (externas e internas), o que intuo seja mais a regra que a exceção: a dissonância cognitiva.
    O problema do impacto da dissonância cognitiva no processo decisório é que ela não tem a ver com qualidade da evidência e nem mesmo com o "custo" de sua busca (lei do menor esforço, e que mencionastes como "conforto"), mas sim com o sofrimento que produz: continua sendo um problema de economia, apenas que não de energia e sim de emoção.

    3) Ao contrário do que a imagem usada para ilustrar o post faz parecer - e que alguns comentaram aqui - a verdade não está no meio. Nem isso está no aforismo aristotélico (que tratava do equilíbrio e no do ponto central) e nem no brocado latino (virtus e veritas são palavras e conceitos diferentes): epistemologicamente falando, a verdade está onde está. Se o melhor MÉTODO para chegar a ela é um equilíbrio entre conhecimento científico e intuição, ainda teríamos que definir o ponto onde se encontra esse equilíbrio, para cada caso concreto.
    Forte abraço!!!

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