Canais de Luis Correia

sábado, 13 de maio de 2017

A verdadeira magnitude do efeito de um tratamento



* Da série "Tamanhos de Efeito"

A mente humana é mais afetiva do que quantitativa. O psicólogo laureado com o Nobel Daniel Kahneman descreveu o viés de afeto (affect bias), que é uma das causas de confundirmos risco com dano (postagem prévia), superestimarmos riscos pequenos e subestimarmos riscos altos. Aspectos relacionados a emoção (afeto) interferem em nossa percepção da realidade, como já dizia Immanuel Kant. 

Temos mais medo de entrar em um avião do que de entrar no banheiro para tomar banho, apesar do risco de morte por queda no banheiro ser muito maior do que o risco de morte por queda do avião. Tememos mais febre amarela do que gripe, mesmo que o risco de morte por gripe seja muito maior do que morte por febre amarela. Eu mesmo já me vacinei contra febre amarela, mas contra gripe ainda não.

Ao descrevermos um tratamento, normalmente não quantificamos o benefício  intrínseco, apenas o qualificamos. Nos limitamos a dizer “este tratamento é benéfico” ou “este tratamento reduz mortalidade”.  Sim, mas quanto reduz? 

Ao faltarmos na quantificação, caímos no risco de supervalorizar tratamentos de moderado impacto ou subvalorizar tratamentos de alto impacto. E isso vem ligado à forma “afetiva” e não quantitativa de analisarmos as nossas condutas. 

Por este motivo, iniciaremos a série de postagens neste Blog denominada de “Tamanhos de Efeito”. Esta série trará exemplos de tratamentos e suas magnitudes de efeito. 

Nesta postagem darei dois exemplos cardiológicos. Mas em futuras postagens, tentarei não me limitar ao coração e incentivo os colegas trazerem seus exemplos sob a forma de comentários neste Blog. Acho que será divertido perceber como nossa percepção do tamanho do efeito de um tratamento muitas vezes se distancia do que é apresentado pelas evidências. Não só divertido, este é um exercício necessário.


Como medir o tamanho do efeito? 


A abordagem tradicional da medicina baseada em evidências enfatiza a redução absoluta do risco e o número necessário a tratar (NNT) como as principais medidas de tamanho de efeito, em detrimento da redução relativa do risco e do risco relativo. 

É comum dizermos, “o relativo engana, o que vale é o absoluto.” Eu mesmo costumo usar o exemplo da herança. Se ganhei 50% da fortuna de um tio (relativo), posso dizer que fiquei rico? Parece muito, mas se a fortuna for 1 real, ganhei apenas 50 centavos. O que vale é o absoluto. 

Porém isso é só uma parte da história. O relativo tem grande importância e é essencial para o pensamento médico. Na verdade, a redução absoluta do risco (com a qual calculamos o NNT) não é uma propriedade intrínseca do tratamento, é uma propriedade do paciente que recebe o tratamento. Para um mesmo tratamento, o NNT varia de paciente para paciente, a depender de seu risco basal. Podemos dizer assim, que um tratamento não tem NNT, quem tem NNT é aquele tipo de paciente que receberá aquele tratamento.

Na verdade, a propriedade intrínseca do tratamento é a redução relativa do risco, que tende a ser constante nos diferentes subgrupos de risco. Isto é demonstrado por análises de sensibilidade que usualmente não mostram interação entre risco basal e impacto relativo do tratamento.

Como já mencionamos neste Blog, um tratamento de pequeno efeito (redução relativa do risco) pode proporcionar uma grande redução absoluta (pequeno NNT) se aplicado a uma população de altíssimo risco. Da mesma forma, um tratamento de grande efeito, pode ter uma pequena redução absoluta se aplicado a uma população de baixo risco. 

Portanto, a redução relativa mostra o tamanho do efeito intrínseco do tratamento, enquanto a redução absoluta mostra o impacto do tratamento em um certo tipo de paciente, com um certo tipo de risco basal. 

RRR = tamanho de efeito
RAR = impacto do tratamento

Por isso, devemos mensurar o tamanho do efeito intrínseco do tratamento pela redução relativa do risco, enquanto o NNT é o impacto concreto em um dado paciente. 

Se tivéssemos a chance de saber apenas uma das informações a respeito de um tratamento, qual escolheríamos: a redução relativa ou redução absoluta? 

A relativa, é claro. Pois sabendo a redução relativa, a gente pode calcular a redução absoluta de cada paciente individualmente, desde que saibamos o risco absoluto do paciente. 

Por exemplo, digamos que a redução relativa do risco é 33%. Com base em um escore de risco, estimamos 10% como risco basal do paciente. Assim, a redução absoluta do risco deste paciente é 33% x 10% = 3.3% (NNT = 100/3.3 = 30).

Como referência para análise, os bons tratamentos apresentam uma redução relativa do risco em torno de 30%-40%. 

Inibidor da ECA na Insuficiência Cardíaca


É surpreendente notar que inibidor da ECA na insuficiência cardíaca é um tratamento de pequeno tamanho de efeito. De acordo com o ensaio clínico SOLVD, a redução relativa do risco do inibidor da ECA é apenas 16%, menor que a maioria dos tratamentos cardiológicos que funcionam. Quase ninguém se toca disso, porque a mortalidade da doença é alta, provocando um bom NNT. Este é um tratamento de pequeno efeito, mas de impacto razoável devido à gravidade dessa doença. 

Foi neste momento que um aluno inteligente retrucou: “então o que importa mesmo é a redução absoluta, professor”. Nem tanto. 

Observem que interessante. Se eu digo que a redução absoluta é no SOLVD foi 4.5%, isso parece muito bom. No entanto, a figura muda bastante se, ao invés de dizer a redução absoluta, mostramos os números de cada grupo: no grupo placebo, a mortalidade foi 39.7% e isso reduziu para 35.2%. Percebam que esses dois números não são tão diferentes. Muita gente sem enalapril morre (um pouco mais que 1/3 dos pacientes), mas muita gente continua morrendo com enalapril (um pouco mais que 1/3 dos pacientes). Não muda muita coisa. Quando olhamos sob esta ótica, vemos que o tamanho do efeito do tratamento é pequeno. 

Além disso, o intervalo de confiança da redução relativa do risco apresentado por este estudo de moderado tamanho (2.500 pacientes) é amplo, vai de 5% a 20%. Portanto, este tratamento pode oferecer uma redução relativa de risco tão baixa quanto 5%. E o extremo superior do intervalo de confiança (20%) não é tão diferente do que a medida pontual de 16%. Na medida do tamanho do efeito, é importante observarmos a precisão da estimativa descrita pelo intervalo de confiança. 

Não estou aqui querendo reduzir o valor deste importante tratamento na insuficiência cardíaca, até mesmo porque inibidor da ECA também ajuda no controle dos sintomas. Mas é importante termos a perspectiva do tamanho do efeito, ao lado da perspectiva do NNT. 

Esta perspectiva reduz o affect bias a favor do inibidor da ECA, nos tornando mais “pé no chão” e permitindo uma melhor análise do trade-off risco-benefício. Ficaremos mais parcimoniosos quando diante de certos pacientes, como hipotensos desmaiadores ou com certo grau de disfunção renal. Sem angústia, insistiremos menos nas altas doses sincopantes que procuramos alcançar quando pensamos na panaceia de um tratamento. 

É muito interessante revisitar estes dados do passado. Na mente cardiológica, inibidor de ECA é uma panacéia. Era 1988, quando eu estava no segundo ano de medicina, foi publicado o estudo CONSENSUS no New England Journal of Medicine, ensaio clínico seminal como teste dessa hipótese, sempre citado como respaldo da eficácia do inibidor da ECA na ICC. Mas na verdade, este é um minúsculo estudo (apenas 253 pacientes), que foi interrompido precocemente com apenas 118 desfechos (truncado com menos de 200 desfechos é risco de imprecisão). Aquele estudo mostrava uma redução relativa de risco de 40%. E isso que ficou na mente afetiva dos cardiologistas.

Uma das melhores formas de reter o aprendizado é fazer com que este ocorra acompanhado de emoção. Uma criança queimada por tocar em uma panela quente (trauma) vai aprender com certeza que panela pode queimar a mão. Quando o CONSENSUS foi publicado, a notícia da redução relativa do risco de 40% veio como tamanha novidade que, emocionados, retemos essa informação, que ficará para sempre impregnada em nossas mentes. Depois veio o SOLVD, estudo maior que mostrou um valor mais preciso de 16% de redução relativa do risco. Mas não foram os 16% (efeito pequeno) que ficaram em nossa memória afetiva, foram os 40% que emocionaram mais e emocionaram primeiro. 

Novos Anticoagulantes Orais


Há um equívoco do pensamento comum em relação a estas drogas. Consideramos que sua maior vantagem está na praticidade. Normalmente, pensamos que os novos anticoagulantes orais possuem eficácia equivalente à tradicional e barata warfarina. Por isso, usualmente discutimos as duas opções com o paciente: uma droga prática e cara versus uma menos prática e barata. 

Mas este pensamento comum desconsidera um fato importante. A maior vantagem destas drogas não está na praticidade, a maior vantagem está na superioridade de seu efeito em relação à warfarina. Na verdade, estas drogas, quando usadas em uma dose ótima são muito melhores do que warfarina. Superioridade esta que é mais importante do que a tão mencionada praticidade. 

Na verdade, é muito difícil mostrar superioridade de um tratamento novo em relação a um tratamento tradicional que é eficaz. E se o tratamento novo for melhor do que o tradicional, esta superioridade tende a ser de pequena monta. Diferentemente do habitual, os novos anticoagulantes são muito melhores do que warfarina. No estudo RELY, a dose de 150 mg de Dabigatran promoveu uma redução relativa do risco de eventos embólicos de 34% em pacientes com fibrilação atrial, algo que fica no mesmo nível dos bons tratamentos comparados a placebo. Isto é quase sem precedentes na comparação de tratamento versus tratamento. Da mesma forma, o estudo ARISTOTLE mostra que a apixabana promove uma redução relativa de 21% quando comparado a warfarina. 

(OBS: sem querer me aprofundar nestas comparações, a rivaroxabana deve ser tão boa quanto os outros, mas foi boicotada pelo injustificada posologia de uma vez ao dia, o que deve ter amputado parte de seu efeito. Por isso, a rivaroxabana se mostrou apenas não inferior à warfarina no estudo ROCKET. O que quero dizer é que provavelmente essas drogas todas são parecidas e se forem usadas em dose adequada terão superioridade em relação à warfarina de magnitude bem razoável. Mas o objetivo dessa postagem não é ficar nessa boba comparação entre os novos anticoagulantes orais).

O que quero dizer é que usar warfarina ao invés de um novo anticoagulante é o mesmo que optar por um tratamento pior. Portanto, colocar praticidade versus preço como o trade-off principal deste tipo de decisão compartilhada é um equívoco. O trade-off correto é eficácia versus preço, e de quebra essa eficácia ainda vem com mais praticidade. 

E fica fácil entender porque estas drogas são melhores que warfarina. A warfarina tem um efeito muito variável e imprevisível. No mundo ideal dos ensaios clínicos boa parte dos pacientes não está em faixa terapêutica. Imaginem no mundo real. Se os novos anticoagulantes são mais eficazes que warfarina, a diferença de efetividade (mundo real) tende a ser até maior.

O enfoque principal da praticidade, em detrimento de evidente superioridade, é um exemplo de erro pela falta de perspectiva da redução relativa do risco.

Tá vendo, não só falo mal das coisas. A propósito, ao falar bem, preciso declarar ausência de qualquer vinculação com as indústrias que produzem estas drogas. Apenas estou olhando os números e evitando o viés de afeição. 
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12 comentários:

  1. Ótimo seu comentários, prof. Luis. Elucidando questões e tomando uma posição de neutralidade e objetividade, com a eloquência que é característica de suas reflexões.

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  2. Ola Professor. Tudo bem?
    Me formei na UFBa.
    Atualmente faco oncologia. Uma especialidade muito rica em medicina baseada em evidencias, mas tambem muito visada por propaganda e vinculacao ao "efeito/magnitude do tratamento" sem olhar os aspectos sobre "harm".
    Tenho muitas duvidas a respeito de como aplicar adequadamente a MBE em desfechos oncologicos (sobrevida global, sobrevida livre de doenca, reducao de recidiva local, controle de sintomas, toxicidade em quimioterapia). Sem contar no aspecto financeiro do tratamento.

    Acha que existem particularidades especificas na MBE quando se fala na especialidade oncologia?

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    1. Prezado Augusto. Os conceitos são os mesmos para oncologia. O que pode variar é a forma de caracterizar o benefício. Em alguns casos ele fica caracterizado pelo tempo de sobrevida adicional.

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    2. Existe alguma outra variável, além de NNT, que estima magnitude do benefício/malefício?

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  3. Excelente post. Acrescento uma experiência pessoal. Minha mãe teve um câncer de mama e foi afirmado pelo seu médico que a Quimioterapia reduziria seu risco de morte em 10 anos em 50%. Testes adicionais deram como risco absoluto de morte em 10 anos de 3%. O "custo" da QT compensaria uma redução de 1,5%? Na opinião dela não.

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  4. Bom dia Profº Luis, mais um excelente post!

    Gostaria, contudo, de entender melhor a sua afirmação "No mundo ideal dos ensaios clínicos boa parte dos pacientes não está em faixa terapêutica". Considerando que os estudos possuem controles rigorosos e seguimento próximo dos pacientes/voluntários tratados, não soa estranho considerar que boa parte deles não estaria em faixa terapêutica? e, além disso, extrapolar que no mundo real a efetividade do medicamento poderá ser ainda maior pois mais pacientes seriam tratados de foram ideal (na faixa terapêutica)?

    Visto que no mundo real os problemas de adesão ao tratamento medicamentoso são evidentes, me pareceu controverso esta afirmação. Gostaria de entender as razões que apontam para este entendimento.

    Desde já agradeço a atenção, e sempre atento aos vossos posts!

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    1. Prezado Lucas. Apenar do mais rigoroso controle do RNI em ensaios clínicos, mesmo assim, boa parte dos casos estão fora de faixa terapêutica. Agora imagine no mundo real. Pior ainda. Desta forma, no mundo real a superioridade dos novos ACO deve ser até maior.

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  5. Olá, Luis Cláudio.

    Uma questão conceitual: se um tratamento não tem NNT (pois o NNT é de um tipo de paciente, definido pelos critérios de inclusão e de exclusão), não podemos associar a redução absoluta de risco ao impacto do TRATAMENTO; o melhor seria "impacto na saúde", visto que dessa forma não estaríamos associando intrinsecamente o NNT ao tratamento.

    Um abraço e parabéns pelo texto.

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  6. Olá, Luis Cláudio.

    Uma questão conceitual: se um tratamento não tem NNT (pois o NNT é de um tipo de paciente, definido pelos critérios de inclusão e de exclusão), não podemos associar a redução absoluta de risco ao impacto do TRATAMENTO; o melhor seria "impacto na saúde", visto que dessa forma não estaríamos associando intrinsecamente o NNT ao tratamento.

    Um abraço e parabéns pelo texto.

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  7. Texto bem provocativo e rico, deveras enriquecedor para nossa formação de residentes. Grande Dr Luís!

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  8. Brilhante Luis! Vai gostar de ler James Reason! Os conceitos de gestão do risco são universais. Estudar e entender viés cognitivo é fundamental para um bom profissional de saúde! Deveria ser matéria obrigatória, é importante pra vida, pra tudo!

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  9. Brilhante Luis! Vai gostar de ler James Reason! Os conceitos de gestão do risco são universais. Estudar e entender viés cognitivo é fundamental para um bom profissional de saúde! Deveria ser matéria obrigatória, é importante pra vida, pra tudo!

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