Canais de Luis Correia

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Judicialização Médica e o Valor da Incerteza



Ao longo de dois dias de interação entre juristas e profissionais de saúde no III Congresso Baiano de Judicialização em Saúde promovido no Hospital Aliança, me sensibilizei com o dilema de juizes diante de decisões baseadas em relatórios médicos que pregam condutas a serem liberadas pelo Sistema Único de Saúde ou pelo Sistema Suplementar. Traduzirei neste texto as principais mensagens de minha participação no evento, que gerou bastante discussão com os colegas do direito. Foi uma única oportunidade de discutir “medicina baseada em evidências” com juristas e perceber que estes entendem e se indentificam com o conceito. 

Parece utópico querer que juristas saibam “medicina baseada em evidências”. Mas se formos pensar profundamente, o pensamento do direito tem conceitos que se aproximam bastante do paradigma científico: o ônus da prova, a qualidade das evidências. 

Este texto não é endereçado apenas a juristas, pois a evolução da medicina para um paradigma verdadeiramente científico depende da sociedade como um todo direcionar suas expectativas e demandas para esta forma de pensamento. O carência do modelo mental científico envolve todas as áreas, a médica, jurídica, política, econômica, educacional, segurança, etc. Não costumamos ver decisões e debates baseados em evidências. Prevalece como argumento a lógica de cada um, gerando um mundo dogmático e polarizado, evidenciado por uma sociedade “analfabeta cientificamente” (scientific illiteracy). Na medida em que nos alfabetizamos, percebemos que plausibilidade (lógica) não é o mesmo que probabilidade.  

Os adventos dos plantões médicos ou núcleos de avaliação tecnológica (NAT) que hoje dão suporte técnico a decisões de juízes representam uma evolução, porém não solucionam a questão. A decisões continuam angustiantes e sob a percepção de que uma negação pode resultar em dramática perda, decisões se enviesam em prol da liberação da conduta. 

“Medicina baseada em evidências” não é o uso de um amontoado de evidências. É a forma científica de pensar se materializando em decisões (sejam médicas ou judiciais) baseadas nos componentes ceticismo, relevância, valorização das incertezas e probabilidades. 

A solução não está apenas em fornecer informações ao juízes, mas sim na perspectiva do juiz de qual informações se encaixam no quebra-cabeça clínico-científico. Juízes precisam formular a pergunta certa, o que lhes libertará de relatórios médicos dogmáticos e por vezes dirigidos por conflitos de interesse. Ajustando o modelo mental ao encontro do científico, a decisão se tornará menos enviesada, mais simples, e principalmente mais leve. 

Assim, proponho aos juristas 3 perguntas e um modelo mental baseado em incerteza.  

Pergunta 1. É Verdade?


Juizes precisam exercer o ceticismo, sem medo. Ceticismo não é desacreditar ou negar. Ceticismo é duvidar. Judicializações são baseadas em alegações de benefício. Portanto a primeira questão é: este benefício é verdadeiro? 

Qualquer proposição médica, mesmo as exdrúxulas, possuem “respaldo” de trabalhos “científicos”. A questão  principal é de confiabilidade destes trabalhos. Neste contexto, precisamos notar que há diferentes graus de evidências e a maioria dos trabalhos científicos possuem “ruídos” decorrentes de imprecisão amostral ou vieses metodológicos, não podendo ser considerados evidências confirmatórias.

Portanto, quando um proponente citar um estudo, o juiz deve devolver a pergunta: qual o nível de evidência deste estudo? 

Segundo, e os outros estudos? Na verdade, uma questão não pode ser respondida olhando apenas uma evidência, mas sim a totalidade da evidências. Por este motivo existem as revisões sistemáticas, que descrevem todas as evidências, classificando-as pela qualidade.

Desta análise, surge a percepção de que estudos científicos podem (1) sugerir benefício, (2) sugerir ausência de benefício ou (3) não sugerir nada, pois não há bons trabalhos. Nas situações 1 e 2 fica mais fácil se direcionar. Mas como fazer quando não sabemos (situação 3)?

Um princípio básico da medicina baseada em evidências é o ônus da prova. O ônus da prova está na alegação do benefício. Se não demonstrado por estudo (s) de qualidade, ficamos com a “hipótese nula” que remonta à ausência de benefício. Ou seja, na ausência de demonstração científica, nos comportamos como se o fenômeno não existisse. Esse é o mindset científico.

Isso pode dar a sensação de que deixamos de fazer algo com grande potencial de benefício, mas essa percepção é falsa. Na verdade, antes de demonstrada, uma hipótese tem maior probabilidade de ser falsa do que verdadeira. E isso decorre da ausência de associação entre plausibilidade e probabilidade. Plausibilidade vem de nossa lógica, probabilidade não. A baixa probabilidade das hipóteses serem verdadeiras não é notada, pois vivemos a falácia narrativa de conviver apenas com hipóteses que vingaram como verdadeiras. Nosso denominador mental não contém a maioria das hipóteses que morreram pelo caminho do empirismo. 

Em segundo lugar, devemos pensar que pode haver consequências não intencionais na adoção de uma conduta não suficientemente estudada. Por fim, “benefício” demonstrado não é benefício garantido, é apenas a entrega de uma probabilidade. Isso será melhor discutido adiante. 

Portanto, não se precipitar na adoção de condutas incertas não é uma omissão. Pelo contrário, a probabilidade de prejudicar pode ser maior do que beneficiar quando adotamos algo baseado em crença. 

Pergunta 2. É Relevante?


Veracidade não garante relevância. Algo verdadeiro pode ser insignificante, irrelevante. Na verdade, a maioria das condutas médicas benéficas são marginais e justamente por isso precisam da lente de aumento de um estudo grande para detecção de seu efeito. Desta forma, dentre os benefícios, precisamos separar aqueles que fazem muita diferença para o paciente daqueles cujo impacto clínico é tênue.

Primeiro, entender qual o tipo de benefício. Em boa parte das vezes o benefício não está em sobrevida (prevenir morte),  estando voltado para melhora de sintomas ou redução de desfechos não fatais. Em segundo lugar, todo efeito benéfico é a entrega de uma probabilidade, não de uma garantia. Do ponto de vista de redução de desfechos futuros indesejados, precisamos quase sempre tratar muitos pacientes para um deles se beneficiar. 

Portanto, a não adoção de uma conduta questionável não é a negação da vida, nem a negação de um benefício garantido. Isso dá mais leveza e racionalidade à decisão. Precisamos vencer nossa inata tendência ao pensamento determinístico, valorizar a incerteza e utilizar probabilidade no processo de decisão. Até porque tudo tem um preço. 

Pergunta 3. Qual o custo?


Custo não é apenas o monetário. Há o custo pessoal do paciente passar por um tratamento, há o custo clínico decorrente de efeitos adversos e há, finalmente, o custo monetário. 

Um equívoco comum é permitir que a questão monetária penetre no processo de decisão individual. O raciocínio de não oferecer uma conduta benéfica pois “esta é de alto custo e o recurso pode ser utilizado de outra forma para beneficiar um maior número de pessoas” não pode aplicar a um médico que diante de um paciente individual, nem a um juiz que diante de um caso individual. Na verdade, é impossível nos nortear por um coletivo abstrato em detrimento de um caso concreto a nossa frente. 

A questão monetária deve entrar no processo de decisão de políticas de saúde, o que o sistema de saúde cobre ou não cobre. Neste contexto não temos um “drama” individual, o pensamento é ecológico.

Portanto, no processo de decisão do juiz, o pensamento não precisa, nem deve, ser monetário. Afinal, se cortarmos apenas o que é fútil, desnecessário ou prejudicial para o paciente, faremos muita economia. 

Então, como decidir?

A decisão deve ser centrada no paciente, levando em conta seu custo pessoal e clínico. E muitas coisa possuem alto custo clínico. Vejam por exemplo o rastreamento do câncer de próstata (Novembro Azul). Esta conduta não oferece redução de mortalidade, porém causa inúmeras biópsias fúteis, algumas impotências sexuais e incontinências urinárias. Sem precisar falar em finanças, podemos concluir que é decisão anti-econômica do ponto de vista individual. 

A ciência da economia comportamental demostra que em decisões que envolvem perdas e ganhos, vieses de aversão a perda ou ao risco tornam nossas decisões previsivelmente irracionais. 

Temos uma tendência superestimar o benefício de condutas, como se estes fossem de grande magnitude e subestimar os danos. Precisamos pensar “economicamente”, valorizar a incerteza e abrir espaço para uma decisão probabilística. 

O Valor da Incerteza


Temos aversão à dúvida e isso vem de uma questão evolutiva. Na evolução de nossa espécie, indivíduos que procuravam a decisão “certa” pensavam mais, testavam mais, encontravam melhores escolhas. 

Na impossibilidade da certeza, a humanidade recorreu às religiões, que com seus deuses onipotentes garantiriam um futuro bom. Mesmo quando o desfecho não está de acordo com nossa expectativa, “Deus escreve certo por linhas tortas” - tudo sob controle. O segundo advento da procura da certeza foi a ciência, que promoveu grande evolução de nossa espécie: dobrou a expectativa de vida da população e levou o homem à lua. 

Mas em seu processo evolutivo, a ciência hoje considera que nunca podemos determinar com exatidão quando e como um fenômeno acontecerá, apenas sua probabilidade. A ciência hoje, a exemplo da física quântica e das bases da medicina baseada em evidências, é probabilística. 

Incerteza deixa de conotar ignorância e passa a ser considerada a principal lei da natureza. 

Muitas vezes sentenças são favoráveis a condutas de baixo valor, pela impressão de que não aprovar seria deixar de oferecer algo certamente benéfico. Primeiro, a conduta pode não ter suporte científico adequado; segundo, mesmo quando o benefício é demonstrado, este é probabilístico e deve ser contra balanceado com a probabilidade de consequências não intencionais. 

Mederi


Minha aparente intromissão no processo de decisão jurídica, do qual não entendo quase nada, vem da percepção de que medicina e direito se diferenciam na forma, mas se assemelham na essência. A palavra “medicina” deriva do latim mederi, que significa “escolher o melhor caminho”. Em medicina, no direito e na vida estamos sempre tomando decisões a procura do melhor caminho. Decisões incertas …

Medicina portanto é um termo amplo, que se refere a todas as áreas da vida. Neste sentido, direito e medicina convergem como especialidades de uma mesma profissão. A profissão da tomada de decisão baseada em evidências. 

Derivado do movimento “slow food” (contrário de fast food), surgiu o “slow medicine”, que chama atenção do médico de que processos de decisão se fazem melhor ao longo do tempo, sem pressa. Médicos comumente tomam decisões sérias como se estivessem dando uma liminar, na pressa. Na pressa, acabamos por fazer demais, esquecendo que às vezes “menos é mais”. 

Sem pressa não é o mesmo que devagar. Mesmo tendo que decidir rápido, o caminho não é de emitir a liminar e se livrar do medo da omissão. O caminho é saber fazer as perguntas certas:

É verdade? (evidências de alta qualidade)
É importante? (impacto da conduta)
Qual o custo? (consequências não intencionais)

As perguntas não garantem a decisão “certa”, mas abrem margem à dúvida que será equacionada por um pensamento probabilístico a fim de nos aproximar da “melhor” decisão. A “melhor” é a de maior probabilidade de levar a um desfecho favorável. 

Em medicina e no direito, incerteza não é um problema, mas sim a chave para um mundo probabilístico. Incerteza é a chave para decisões ponderadas. 

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16 comentários:

  1. Estava navegando por blogs com esse tema e esse foi o melhor, vou indicar para o colegio zona norte, muito interessante esse prova, vale muito a pena estudar para passar em medicina

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  2. Caro Luis
    Sigo teu blog e teus vídeos do youtube. Parabéns pelo belo trabalho de divulgação científica.
    QUanto ao presente post, tenho uma divergência quanto ao seguinte excerto: “ não pode aplicar a um médico que diante de um paciente individual, nem a um juiz que diante de um caso individual. Na verdade, é impossível nos nortear por um coletivo abstrato em detrimento de um caso concreto a nossa frente. “
    A posição de médico não se assemelha à de juiz. Aquele tem o interesse do paciente em primeiro plano. O juiz não. Há outras pautas normativas que orientam seu trabalho, e que é bom que seja assim, temos lei e temos constituição.
    E a lei que rege a incorporação de tecnologias no SUS é a 12401/11, ela que exige não apenas eficácia e efetividade, que tratas como elementos suficientes, mas também exige custo-efetividade (l 19-0). Não o bastasse, a L. 13655/18 (LINDB) provocou revolução copernicana no pensamento judicial no brasil, quando exigiu que “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”.
    O que salvo engano defendes é que qualquer tecnologia eficaz e efetiva deva ser deferida judicialmente. Isso não acontece em nenhum sistema público de saúde, porque escolhas alocativas são necessárias até na Noruega, que dirá no Brasil, em que o PIB per capita gasto no SUS é lamentavelmente baixo. Deferir tudo (desde que eficaz e efetivo) para todos não passa por uma prova de universalização/generalização, hás de convir comigo, e uma decisão que não passe por essa prova não está amparada em boa moral. Por isso a economia da saúde existe, e por isso que a CONITEC produz um estudo de impacto orçamentário, para saber se é possível dar a tecnologia para toda a população de incidência da doença.
    O judiciário da Costa Rica já tentou, junto com a Cochrane, aparelhar os juízes com informações técnicas, como aqui no Brasil se busca fazer com os NATJUS, núcleos de apoio técnico ao judiciário. Pesquisa lá produzida concluiu que houve um ganho em redução de tratamentos experimentais deferidos judicialmente, porém não houve qualquer alteração em tecnologias de baixa prioridade (custo efetividade negativo e baixa efetividade/eficácia). Aqui a judicialização como a que defendes vai no mesmo caminho. E em tempo em que surgem a cada dia novas orphan drugs milionárias, deferi-las judicialmente, sem exame de custo efetividade ou impacto orçamentário tem resultado fácil de antever: comprometimento gravíssimo de outras políticas de saúde com potencial de obter muito mais em saúde populacional.
    Concluo parcialmente por aqui então repisando noção inicial: médico pensa primordialmente no paciente, e é bom que assim seja -salvo se alguma regra estatutária comande o médico no serviço público a seguir PCDTs, aí entramos em outra discussão para outro momento-. Todavia, se esse é o papel do médico, já o do juiz é de gatekeeper, e não carimbador de receitas bem lastreadas em MBE. E gatekeeper tem que pensar em todos que querem adentrar pela porta, e não só no indivíduo imediatamente a sua frente.

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    1. Prezado Gabriel, obrigado pelos excelentes comentários. Estamos na mesma linha, a de custo-efetividade.

      Na verdade, o que proponho no texto levaria a decisões mais restritivas, não mais liberais. Mas uma restrição centrada no paciente, sem neglicenciar o coletivo. Insisto que na visão de economia clínica individual e coletivo não são coisas opostas, podem ser coisas convergentes, se ajustarmos o modelo de decisão.

      Observe que meu texto é sobre custo-efetividade, mas na nova visão de economia clínica, onde o custo não é apenas monetário. Dentro do componente de custo-efetividade, as duas primeiras perguntas que sugeri representam o denominador (efetividade), sendo que a segunda fala da magnitude da efetividade e não apenas da visão dicotômica da presença ou ausência do benefício. Na verdade, o grande problema de custo/efetividade está no denominador (efetividade), o que não é custo/efetivo normalmente tem benefício marginal. E condutas muito efetivas, mesmo se muito custosas, tornam-se custo efetivas pelas definições tradicionais. A não aprovação do que é questionável ou de benefício marginal (a vasta maioria) beneficiaria muito a questão social. Teríamos muito o que cortar.

      Já minha terceira pergunta, refere-se ao numerador, custo. Mas lembrando que o custo não é monetário apenas, muitos desses benefícios marginais já são contrabalançados pelo custo pessoal e clínico. Por exemplo, muitas quimioterapias de alto custo prolongam minimamente a vida, às custas de efeitos adversos. Esse portanto é o pulo do gato para resolver o "viés da vítima identificável", que torna impossível que o pensamento monetário predomine neste sistema de decisão. Simplesmente o paciente deixa de ser vítima na maioria das vezes.

      Isso é o que diferencia "economia clínica" de economia em saúde (health economics - só pensa em custo monetário). Gostei da frase de Stalin, passarei a usá-la. Parabéns pelo trabalho em parceria com a UFRGS. Acho que é o caminho.

      Mas no final, a resposta estará na habilidade dos juízes de saber fazer as perguntas. Afinal, a decisão é judicial.

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  3. Caro Luis
    Sigo teu blog e teus vídeos do youtube. Parabéns pelo belo trabalho de divulgação científica.
    QUanto ao presente post, tenho uma divergência quanto ao seguinte excerto: “ não pode aplicar a um médico que diante de um paciente individual, nem a um juiz que diante de um caso individual. Na verdade, é impossível nos nortear por um coletivo abstrato em detrimento de um caso concreto a nossa frente. “
    A posição de médico não se assemelha à de juiz. Aquele tem o interesse do paciente em primeiro plano. O juiz não. Há outras pautas normativas que orientam seu trabalho, e que é bom que seja assim, temos lei e temos constituição.
    E a lei que rege a incorporação de tecnologias no SUS é a 12401/11, ela que exige não apenas eficácia e efetividade, que tratas como elementos suficientes, mas também exige custo-efetividade (l 19-0). Não o bastasse, a L. 13655/18 (LINDB) provocou revolução copernicana no pensamento judicial no brasil, quando exigiu que “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”.
    O que salvo engano defendes é que qualquer tecnologia eficaz e efetiva deva ser deferida judicialmente. Isso não acontece em nenhum sistema público de saúde, porque escolhas alocativas são necessárias até na Noruega, que dirá no Brasil, em que o PIB per capita gasto no SUS é lamentavelmente baixo. Deferir tudo (desde que eficaz e efetivo) para todos não passa por uma prova de universalização/generalização, hás de convir comigo, e uma decisão que não passe por essa prova não está amparada em boa moral. Por isso a economia da saúde existe, e por isso que a CONITEC produz um estudo de impacto orçamentário, para saber se é possível dar a tecnologia para toda a população de incidência da doença.
    O judiciário da Costa Rica já tentou, junto com a Cochrane, aparelhar os juízes com informações técnicas, como aqui no Brasil se busca fazer com os NATJUS, núcleos de apoio técnico ao judiciário. Pesquisa lá produzida concluiu que houve um ganho em redução de tratamentos experimentais deferidos judicialmente, porém não houve qualquer alteração em tecnologias de baixa prioridade (custo efetividade negativo e baixa efetividade/eficácia). Aqui a judicialização como a que defendes vai no mesmo caminho. E em tempo em que surgem a cada dia novas orphan drugs milionárias, deferi-las judicialmente, sem exame de custo efetividade ou impacto orçamentário tem resultado fácil de antever: comprometimento gravíssimo de outras políticas de saúde com potencial de obter muito mais em saúde populacional.
    Concluo parcialmente por aqui então repisando noção inicial: médico pensa primordialmente no paciente, e é bom que assim seja -salvo se alguma regra estatutária comande o médico no serviço público a seguir PCDTs, aí entramos em outra discussão para outro momento-. Todavia, se esse é o papel do médico, já o do juiz é de gatekeeper, e não carimbador de receitas bem lastreadas em MBE. E gatekeeper tem que pensar em todos que querem adentrar pela porta, e não só no indivíduo imediatamente a sua frente.

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    1. Prezado Gabriel, obrigado pelos excelentes comentários. Estamos na mesma linha, a de custo-efetividade.

      Na verdade, o que proponho no texto levaria a decisões mais restritivas, não mais liberais. Mas uma restrição centrada no paciente, sem neglicenciar o coletivo. Insisto que na visão de economia clínica individual e coletivo não são coisas opostas, podem ser coisas convergentes, se ajustarmos o modelo de decisão.

      Observe que meu texto é sobre custo-efetividade, mas na nova visão de economia clínica, onde o custo não é apenas monetário. Dentro do componente de custo-efetividade, as duas primeiras perguntas que sugeri representam o denominador (efetividade), sendo que a segunda fala da magnitude da efetividade e não apenas da visão dicotômica da presença ou ausência do benefício. Na verdade, o grande problema de custo/efetividade está no denominador (efetividade), o que não é custo/efetivo normalmente tem benefício marginal. E condutas muito efetivas, mesmo se muito custosas, tornam-se custo efetivas pelas definições tradicionais. A não aprovação do que é questionável ou de benefício marginal (a vasta maioria) beneficiaria muito a questão social. Teríamos muito o que cortar.

      Já minha terceira pergunta, refere-se ao numerador, custo. Mas lembrando que o custo não é monetário apenas, muitos desses benefícios marginais já são contrabalançados pelo custo pessoal e clínico. Por exemplo, muitas quimioterapias de alto custo prolongam minimamente a vida, às custas de efeitos adversos. Esse portanto é o pulo do gato para resolver o "viés da vítima identificável", que torna impossível que o pensamento monetário predomine neste sistema de decisão. Simplesmente o paciente deixa de ser vítima na maioria das vezes.

      Isso é o que diferencia "economia clínica" de economia em saúde (health economics - só pensa em custo monetário). Gostei da frase de Stalin, passarei a usá-la. Parabéns pelo trabalho em parceria com a UFRGS. Acho que é o caminho.

      Mas no final, a resposta estará na habilidade dos juízes de saber fazer as perguntas. Afinal, a decisão é judicial.

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  4. Por fim, quando dizes que “é impossível nos nortear por um coletivo abstrato em detrimento de um caso concreto a nossa frente” tens muito de razão. Mas eu faria um reparo: não é impossível, mas é difícil, porque o drama que se descortina no processo, com detalhes vívidos da doença do autor e de seu sofrimento, bem como de sua família e próximos e com o aceno de uma promessa de cura, isso tudo desperta o chamado “viés da vítima identificável” (identifiable victim bias), fenômeno já identificado na economia comportamental, e que Stalin crismou na antológica “a morte de um homem é uma tragédia; a morte de uma multidão é uma estatística”. Este viés está conectado com outro, o system neglect, em que o agente é incapaz de perceber as consequencias sistêmicas de suas decisões. Os baby judges americanos passam por curso inicial em que um dos temas é justamente vieses, a fim de se alertarem para as heurísticas que, se muito ajudam para economizar tempo decisório, não raro perturbam o raciocínio correto.
    Aqui na justiça federal do Rio Grande do Sul há pouco fechamos parceria para o Telessaude da UFRGS funcionar como nosso NATJUS. São já reconhecidos em MBE e a difundem via teleconsultoria num projeto extraordinário do SUS, e o pulo do gato é que as notas técnicas que começaram a produzir em piloto trazem informações de economia da saúde. Isto, creio eu e outros colegas, é o que pede a adequada judicialização, sem esquecer de se começar a prestigiar as instâncias administrativas adequadas de incorporação, e aí me refiro à CONITEC (recente pesquisa detectou, em amostragem dos maiores tribunais, que algo como 99,5% das decisões sobre saúde pública não tinha referência à conitec, o que dá mostra do desconhecimento do judiciário sobre o próprio funcionamento do SUS).
    Teria muito mais a escrever sobre o tema, mas creio já começo a gerar enfado.
    Quando vieres ao sul será um prazer recebê-lo, e seria uma honra contar com uma aula tua na justiça federal daqui. Tens muito a nos ensinar. Forte abraço e segue o bom trabalho.

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    1. Prezado Gabriel, obrigado pelos excelentes comentários. Estamos na mesma linha, a de custo-efetividade.

      Na verdade, o que proponho no texto levaria a decisões mais restritivas, não mais liberais. Mas uma restrição centrada no paciente, sem neglicenciar o coletivo. Insisto que na visão de economia clínica individual e coletivo não são coisas opostas, podem ser coisas convergentes, se ajustarmos o modelo de decisão.

      Observe que meu texto é sobre custo-efetividade, mas na nova visão de economia clínica, onde o custo não é apenas monetário. Dentro do componente de custo-efetividade, as duas primeiras perguntas que sugeri representam o denominador (efetividade), sendo que a segunda fala da magnitude da efetividade e não apenas da visão dicotômica da presença ou ausência do benefício. Na verdade, o grande problema de custo/efetividade está no denominador (efetividade), o que não é custo/efetivo normalmente tem benefício marginal. E condutas muito efetivas, mesmo se muito custosas, tornam-se custo efetivas pelas definições tradicionais. A não aprovação do que é questionável ou de benefício marginal (a vasta maioria) beneficiaria muito a questão social. Teríamos muito o que cortar.

      Já minha terceira pergunta, refere-se ao numerador, custo. Mas lembrando que o custo não é monetário apenas, muitos desses benefícios marginais já são contrabalançados pelo custo pessoal e clínico. Por exemplo, muitas quimioterapias de alto custo prolongam minimamente a vida, às custas de efeitos adversos. Esse portanto é o pulo do gato para resolver o "viés da vítima identificável", que torna impossível que o pensamento monetário predomine neste sistema de decisão. Simplesmente o paciente deixa de ser vítima na maioria das vezes.

      Isso é o que diferencia "economia clínica" de economia em saúde (health economics - só pensa em custo monetário). Gostei da frase de Stalin, passarei a usá-la. Parabéns pelo trabalho em parceria com a UFRGS. Acho que é o caminho.

      Mas no final, a resposta estará na habilidade dos juízes de saber fazer as perguntas. Afinal, a decisão é judicial.

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  5. Muito oportuno! Como sempre. É sutil essa convergência entre Medicina e Direito. Ainda há muito a fazer para que as pessoas compreendam. "Gatekeeper" e pensando em todos sempre temos que ser e estar, seja numa área ou noutra.

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  6. Mais uma vez uma excelente oportunidade de aprender sobre probabilidade médica, tendo como pano de fundo decisões judiciais e judicialização da medicina. A arte de exercer o ato médico seja talvez mais acertada quando ponderamos e refletimos mais, com mais tempo, com mais filosofia e tentando aplicar a sabedoria advinda da ciência. Seria sobretudo a arte médica filosófica ? Antes das aplicações de conhecimentos científicos ?

    Com o aprimoramento de diagnósticos mais avançados e tratamentos mais caros, devemos sempre reconhecer a incerteza dos resultados, e sempre ter em mente que essas ações podem resultar em consequência não intencionais e muitas vezes prejudiciais aos pacientes. Em escalas de milhares de tratamentos, isso representaria certamente um custo elevadíssimo.

    Essas reflexões médicas e também judiciais merecem toda a reflexão e contemplação de uma sociedade que vê e percebe a medicina como um bem cada vez mais de consumo.

    Obrigado Professor Luis Correia por nos brindar com esse excelente texto e profundas reflexões.

    João Ricardo

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  7. Matéria assertiva e altamente pertinente!! Parabéns!

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