Canais de Luis Correia

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

ISCHEMIA Trial: Útil ou Fútil



Na tarde de um sábado recente, ao final de uma década, as redes sociais foram tomadas por uma avalanche de informações, slides e vídeos simultâneos à apresentação dos resultados do ensaio clínico ISCHEMIA no congresso da American Heart Association: Angioplastia coronária com stent não reduz desfechos cardiovasculares em pacientes estáveis. 

Considerado o maior trial da história do National Institute of Health, ao custo de 100 milhões de dólares e milhares de pacientes randomizados, a repercussão da apresentação do ISCHEMIA foi sem precedentes. Segundo  o site Medscape, durante os 75 minutos da sessão de apresentação do trabalho, 600 cardiologistas postaram mais de 2.000 tweets sobre o ISCHEMIA, totalizando mais de 7.500 mensagens nas horas que se seguiram. 

Mas não apenas o volume de comentários chamou atenção. Mais peculiar foi o tom comemorativo de boa parte dos cardiologistas, nos quais me incluo. Comemoramos naquela noite de sábado o resultado negativo do ISCHEMIA. 

No domingo, acordei me perguntando: porque participei da comemoração internacional de um resultado negativo? Comemorar a ausência de benefício não faz sentido, o natural seria frustração. 

A reflexão sobre este estudo deve ir além de seu resultado, estranhamente ainda não publicado na íntegra. Esta é uma oportunidade de lançar um olhar sociológico, dentro da perspectiva científica: o valor do ISCHEMIA é proporcional a sua repercussão? O que justifica a comemoração de um resultado negativo?

Neste final de década, o contexto de um ecossistema científico baseado em sensacionais notícias deve ser confrontado com princípios de filosofia científica que idealmente devem permear nossas interpretações do valor das evidências. 


A Pseudonovidade


Passados alguns dias, a novidade do ISCHEMIA chegou ao público pela mídia tradicional. Durante entrevista em horário nobre do canal americano NBC, a principal autora do ISCHEMIA afirmou “estar surpresa com o resultado”. No Brasil, em depoimento a Cláudia Collucci da Folha de São Paulo, cardiologista caracterizou o resultado como “mudança de paradigma”. Fico a imaginar a reação de Thomas Kuhn com a banalização do significado de paradigmas.

Não há surpresa, muito menos mudança de paradigma. Na verdade, o resultado do ISCHEMIA era tão previsível que sua própria existência, ao custo de 100 milhões de dólares, torna-se questionável.

Estudos prévios que testaram a hipótese do ISCHEMIA foram todos negativos, mostrando curvas de incidência de morte cardiovascular e infarto perfeitamente superponíveis. COURAGE e BARI 2D apresentavam um amplo espectro de gravidade de isquemia miocárdica. Importante reforçar que estes foram estudos com baixo risco de viés e com poder estatístico suficiente para determinar baixo risco de erro tipo II. Também negativo para os desfechos morte e infarto foi o ensaio clínico FAME-II  que estudou apenas pacientes com FFR positivo para isquemia.

Para completar, meta-análise de dados individuais, envolvendo apenas pacientes com isquemia que entraram neste ensaios clínicos, foi negativa. 

Mesmo assim, foi criada uma hipótese: se estudássemos apenas pacientes com isquemia moderada a severa, a total ausência de benefício observada nestes estudos se reverteria para a detecção de benefício clinicamente relevante no ISCHEMIA. O quanto provável é essa hipótese?

A crença da hipótese do estudo ISCHEMIA viola um importante princípio científico: a raridade da interação qualitativa. Já apresentamos evidências deste conceito algumas vezes neste Blog (12).

Este princípio é demonstrado pelas análises de subgrupos dos ensaios clínicos, onde se observa um fenômeno consistente: a redução relativa do risco (conceito de eficácia) não varia com a mudança do estrato de gravidade da doença. O que varia é a redução absoluta e o NNT, mas a propriedade intrínseca do tratamento é constante. 

Portanto, interação quantitativa (mudança na magnitude relativa do benefício) é improvável, o que faz com que interação qualitativa (ausência de benefício reverter para presença de benefício) seja ainda menos provável. E se formos falar em benefício clinicamente relevante, isto parece se tornar impossível. 

Quando existem, interações ocorrem de forma quantitativa, não qualitativa. Isto porque primeiro o efeito deve existir, para depois uma variável modificadora aumentar ou diminuir a magnitude do efeito. Isto é muito diferente de um efeito inexistente se tornar existente pois modificamos o tipo de paciente. Este tipo de interação qualitativa é surpreendentemente rara na natureza biológica. Achar que fenômenos biológico mudam da água para o vinho com a mudança do paciente é irracionalidade científica. 

Mas minha discussão não fica apenas no campo da teoria científica. Interação entre magnitude da isquemia e benefício da angioplastia foi testada nos estudos COURAGE e BARI-2D. Estas amostras tinham boa representatividade dos diferentes graus de isquemia, um amplo espectro de gravidade, o que as torna ideias para o teste de interação: ao mudar o estrato de isquemia, o efeito da angioplastia muda (modificação de efeito = interação)? Em ambos os estudos, a interação foi negativa, ausência de benefício independente do grau de isquemia. Estas referências estão apresentadas em nossa antiga portagem sobre o reflexo óculo-isquêmico

Em resumo: (1) interação quantitativa é rara; (2) interação qualitativa é quase impossível; (3) foi testada interação e tudo deu negativo. Assim, é muito curioso a crença na hipótese do ISCHEMIA e o sentimento de surpresa quanto ao resultado. 

E foi baseado neste raciocínio que em 2014 publicamos nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia uma crítica ao que chamamos de reflexo óculo-isquêmico, onde previmos o resultado do ISCHEMIA: “Seguindo um raciocínio bayesiano, considerando a consistente ausência de interação entre carga isquêmica e benefício do tratamento de revascularização, a probabilidade a priori de que o ISCHEMIA venha demonstrar benefício em relação ao desfecho primário de morte ou infarto é pequena. Em outras palavras, se isquemia moderada-severa não é o determinante do benefício de acordo com a totalidade das evidências, não seria a seleção de pacientes com esse grau de isquemia que traria um resultado benéfico da intervenção.”


A (In) Utilidade do Estudo ISCHEMIA


Em um mundo que prevalece a teimosia clínica com o reflexo óculo-isquêmico (presença de isquemia justifica revascularizar pacientes assintomáticos), desconsiderando as evidências prévias, faz-se necessário criar uma nova evidência. O ISCHEMIA tem uma utilidade comportamental. 

Por outro lado, arrisco dizer que do ponto de vista científico, o ISCHEMIA é um estudo desnecessário. Digo que arrisco, pois há uma tônica vigente de que é válido testar hipóteses improváveis, evitando preconceitos, abrindo nossa mente para descobertas inesperadas. Isso é romântico, mas não científico. Ciência é a construção progressiva de conhecimento, onde evidências a priori embasam estudos futuros e a probabilidade de uma lei natural evolui prospectivamente, de forma condicionada ao conhecimento prévio (probabilidade condicional, bayesiana). 

Testar o improvável não promove descobertas inusitadas. Os cisnes negros científicos aparecem do nada, por acaso e não como hipóteses predeterminadas. A explicação para isso está na necessidade da multiplicidade de testes para que o inusitado apareça. Tentativas pré-definidas são em número limitado e carecem da multiplicidade necessária para que inusitado apareça. Por esses motivo, descobertas inesperadas são as não planejadas. 

Assim, não será predefinindo hipóteses de baixa probabilidade que faremos grandes descobertas. 
Descobertas surgem da (1) confirmação de hipóteses de moderada a alta probabilidade ou (2) geração de hipóteses que o acaso nos presenteia de forma imprevisível, a serem confirmadas no futuro por estudos que testam novamente essas hipóteses. 

Pré-definir hipóteses improváveis gera futilidade, pois o resultado negativo (ISCHEMIA) diz o que já sabemos (não agrega) e um eventual resultado positivo terá um baixo valor preditivo positivo (devido à baixa probabilidade pré-teste).

A futilidade de hipóteses não apenas promove gasto desnecessário de recursos pessoais e monetários ($100 milhões). O principal prejuízo da futilidade de hipóteses é o cognitivo. A mera existência de um grande estudo testando uma hipótese desvia para a direita a percepção de probabilidade a priori. A criação do estudo ISCHEMIA gerou expectativa tamanha que modificou a percepção de hipótese improvável para promissora. Alinhado ao viés de confiança por coerência, essa percepção influenciou escolhas médicas, reforçando por anos o reflexo óculo-isquêmico.


A Mudança do Desfecho


Foi no seu último ano que o ISCHEMIA evoluiu de quase desnecessário para potencialmente prejudicial. Ao perceber que a incidência do desfecho morte + infarto estava abaixo do projetado, os autores modificaram o desfecho primário, incluindo dois componentes vulneráveis ao viés de percepção de um estudo aberto (internamento por angina e insuficiência cardíaca). Assim o estudo perdeu confiabilidade, pois um eventual resultado positivo poderia ser mediado pelo risco de viés. Segundo, a hipótese original do estudo foi abandonada, deixando de testar impacto em desfechos maiores que justificariam indicação de angioplastia para além de controle dos sintomas. 

Esta decisão gerou grande controvérsia, nunca respondida a contento pelos autores. Estes argumentaram que a mudança havia sido predeterminada. Como se predeterminar uma péssima decisão a transformasse em uma boa decisão. 

Neste caso, um elefante na sala ficou de fora do campo de visão dos autores: a incidência de desfecho abaixo da planejada era o maior indicativo que, mesmo com isquemia importante, a doença coronária estável é benigna, não justificando ações invasivas com fins de prevenção de eventos que ocorrem de forma tão rara que um estudo bem dimensionado como o ISCHEMIA não conseguiria detectar efeito positivo. 

A história do ISCHEMIA é uma evidência do fenômeno de “aversão ao negativo”, que representa a maior preferência de autores pelo resultado positivo do que pela qualidade do estudo. Verdadeiros cientistas devem primar pela qualidade das evidências geradas por seus trabalhos, e não pela positividade em detrimento da qualidade.  

Assim, como se não bastasse o investimento de 100 milhões de dólares em uma ideia pouco provável, o ISCHEMIA seguiu seu último ano sob a sequela de uma mudança que o transformou em um estudo com alto risco de viés. 

O ISCHEMIA foi negativo. Mas devemos ter em mente que este estudo poderia ter falsamente se positivado pela modificação do desfecho. 


Reflexões Finais


Testes de hipóteses improváveis, sensacionalização de resultados óbvios, modificação do desfecho primário, aversão a resultados negativos não são fenômenos específicos do estudo ISCHEMIA. O ISCHEMIA é apenas mais um estudo dentro de um ecossistema de pesquisa clínica que parece mais valorizar o sensacionalismo de notícias do que o impacto clínico de evidências. 

A evolução deste ecossistema depende da ênfase no senso de valor de um trabalho, a ser definido pela integridade científica e impacto na criação de novos conceitos. O senso de impacto é totalmente ausente em testes de hipóteses como a do ISCHEMIA. Diante de uma hipótese que falhou em ser comprovada por bons estudos prévios, há duas possibilidades: a hipótese é falsa ou o tamanho de efeito é tão pequeno que não foi visto nos estudos prévios. Do ponto de vista prático, não há diferença entre pequeno benefício (condutas de baixo valor) e ausência de benefício. 

Por outro lado, vejo sinais positivos na reação de parte da comunidade cardiológica ao ISCHEMIA.  Primeiro, a estranha comemoração do resultado negativo pode indicar a percepção pela comunidade de que um eventual resultado positivo promoveria instabilidade cognitiva: seria a mistura de algo sensacional e falso (baixo valor preditivo positivo, decorrente de baixa probabilidade pré-teste e desfecho enviesado). Segundo, a resposta da comunidade cardiológica à mudança de desfecho do estudo foi um exemplo de que estamos nos tornando mais críticos. Não passou despercebido e imagino que os autores não anteviram tamanha reação à época. 

Sobre angioplastia coronária em pacientes estáveis, o ISCHEMIA não traz novidades. Por outro lado, a história que permeia essa “grande” estudo nos traz a percepção de que precisamos evoluir para o que Douglas Altman propôs quase três décadas atrás: "we need less research, better research and research done for the right reasons" (precisamos de menos pesquisa, melhores pesquisas e pesquisas feitas pelas razões certas).


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OBS 1: dado a estranha demora da publicação do artigo original, nos abstemos de interpretar metodologicamente os resultados do ISCHEMIA. Nossa interpretação nesta postagem foi apenas sociológica. 

OBS 2: a curva de eventos morte e infarto do ISCHEMIA mostram separações não vistas nos estudos prévios. Após publicados os resultados, interpretaremos esse fenômeno. 

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terça-feira, 10 de dezembro de 2019

O Valor da Incerteza

Salvador, 7 de dezembro, nossa palestra no TEDxRioVermelho



Para falar do valor da incerteza, antes preciso lhes convidar a sair da zona de conforto. Sim, pois nós humanos sofremos de “aversão a incerteza”, uma característica biológica que faz com que banalizemos a ideia de certeza. Por exemplo, há poucos instantes, o curador desse evento,  me pegou pelo braço ali atrás nos camarins e enfaticamente falou: “tenho absoluta certeza de que sua palestra será marcante”. Daí pensei comigo, que paradoxo ... eu venho aqui falar de incerteza e ele me deseja certeza. 

Assim somos, nos momento de mais dúvida, recorremos a uma certeza platônica, como se a percepção de certeza curasse o insuportável problema da incerteza. Mas esta percepção de segurança, promovida pela própria banalização da palavra certeza, usualmente não é verdadeira. 

Assim pergunto: substituir uma incerteza real por uma certeza fantasiosa é o melhor caminho?

Iniciarei essa reflexão por um exemplo médico, embora essa palestra não seja sobre medicina, mas sim sobre processos de decisão e interpretação da vida.

Ontem, ao final de tarde, veio ao meu consultório um paciente VIP, conhecido de todos. Este paciente, muito idoso, estava preocupado com a noite de natal. Ele me contava que naquela noite, anualmente, ele trabalha horas consecutivas, entregando bilhões de presentes, a bilhões de crianças, espalhadas por diferentes locais do mundo. É um esforço físico imenso e Papai Noel está preocupado quanto ao risco de um ataque cardíaco na noite de natal, o que seria traumático para as crianças. 




Diante de situações como esta, médicos tendem a fabricar certeza para oferecer a seus pacientes. Neste caso, usualmente se realiza um exame não invasivo para pesquisar doença coronária, a causa usual de ataques cardíacos. Por exemplo, uma tomografia de coronária poderia ser realizada a procura de um resultado normal que traria a certeza de que Papai Noel ficará bem durante a noite de natal.  i
Assim pergunto: essa usual conduta é o melhor caminho?

Depois de 27 anos trabalhando em medicina, recentemente procurei saber a origem da palavra que significa minha profissão: “medicina” deriva do latim “mederi”, que significa “escolher o melhor caminho”.  Medicina portanto não tem um significado que se restringe ao aspecto de saúde ou doença, a prática da medicina é a prática da tomada de decisão frente a incerteza, em qualquer profissão, em qualquer cirscunstância da vida. 

Normalmente, ao procurar o melhor caminho, tentamos encontrar o caminho “certo”, desejamos a certeza, que é platônica. 

Assim, pergunto: este é o melhor caminho?

Diante da percepção da incerteza, a humanidade encontrou formas de amenizar o desconforto. O primeiro advento, milenar, é o da religião. Aqui me refiro à existência de um ser supeior, onipresente, onipotente, que recebe nossos pedidos enviados por meio de rituais e responde nos garantindo um desfecho favorável. E mesmo quando as coisas não acontecem como queremos, “Deus escreve certo por linhas tortas”. Desta forma, a religião amezina nosso incômodo com a incerteza. 

O segundo advento, este mais recente, é a ciência. Ciência nada mais é do que “tomar ciência” das leis da natureza. De posse dessas leis, criamos tecnologias que melhoram nossas vidas, tecnologias que nos trazem percepção de controle. A ciência tem sido bem sucedida, por exemplo, no ano de meu nascimento o homem chegou à lua, no último século a expectativa de vida da população dobrou. Isso é espetacular. 

Por outro lado, surge o “paradoxo do conhecimento”: na medida em que o conhecimento científico cresce, aumenta a percepção da imprevisibilidade dos fenômenos. Os fenômenos são imprevisíveis pois decorrem em parte de (1) fenômenos aleatórios (acaso) e (2) sistemas complexos de causalidade, onde múltiplos fatores interagem entre si de forma imprevisível para gerar um resultado final. 

Desta forma, o paradigma científico evoluiu da procura da certeza para a valorização da incerteza. A física evoluiu do paradigma newtoniano, para o paradigma quântico, bem caracterizado por Fritjov Capra em O Ponto de Mutação: “no mundo científico moderno, não podemos predizer quando e como um fenômeno acontecerá, apenas podemos estimar sua probabilidade.” E a medicina começa a evoluir do paradigma das regras e algoritmos para o paradigma de conceitos demonstrados cientificamente como norte em um processo de decisão baseada em probabilidade e alinhadas aos valores dos pacientes. Um tratamento comprovadamente benéfico não é garantida de benefício individual. Não há pílula de benefício, há pílulas de probabilidade. A isso denominamos “medicina baseada em evidências” ou como prefiro chamar, “medicina baseada em incerteza”.

Desta forma, incerteza não é ignorância. Incerteza é a principal lei da natureza. 

Voltando a Papai Noel. Diante da preocupação com o infarto, a conduta médica tradicional é de investigar doença coronária. Hoje temos tecnologia para analisar as coronária de forma não invasiva. Podemos realizar uma tomografia de coronárias em Papai Noel. Confiamos nessa conduta pois ela parece coerente, remontando ao viés cognitivo descrito por Kahneman, confiança por coerência. 

A coerência desta conduta reside na lógica de que se a tomografia for normal, garantiremos a Papai Noel que ele não terá um infarto na noite de natal. Por outro lado, se houver entupimento coronário por placas de gordura, podemos desentupir pela técnica de angioplastia coronária com implante de stent. Depois do stent, garantiremos a Papai Noel que ele não terá infarto na noite de natal

Isso tudo é coerente, mas como coerência não é o mesmo que confiança, esta lógica precisa ser testada empiricamente. Isso foi feito por inúmeros estudos clínicos, que foram consistentes em duas conclusões: (1) pessoas sem entupimento de coronárias também infartam; (2) angioplastia coronária não reduz infarto em pessoas que nada sentem.

Portanto, não há como ter certeza de que Papai Noel não terá infarto. Podemos apenas estimar a probabilidade. E esta estimativa não precisa passar pelo diagnóstico ou tratamento de doença coronária. Em um mundo que valorizasse a incerteza, considerando que Papai Noel não sente nada, tem bom condicionamento físico para sua idade, está com parâmetros de pressão arterial, colesterol e glicemia controlados, podemos estimar que é pequena a probabilidade dele infartar junto na noite de natal. 

Mas não nos contentamos com pequena probabilidade, temos "aversão à perda" e vamos à procura da certeza platônica. O problema surge quando essa procura gera consequências não intencionais. Sendo Papai Noel muito idoso (segundo o google = 500 anos), é muito provável que exista doença coronariana. Fazendo exame, encontraremos, transformamos um indivíduo saudável em um Papai Noel agora doente. Ao encontrarmos doença obstrutiva, desentupiremos. Ao desentupir,  transformamos um indivíduo saudável em um Papai Noel agora convalescente do procedimento invasivo. E o pior, há  apenas duas semanas da noite de natal? 

Consequência: esse ano não haverá Papai Noel no Natal. 



Este exemplo caracteriza o fenômeno de overuse em medicina, o uso de condutas potencialmente benéficas, mas aplicadas em circunstâncias cuja probabilidade de malefício supera a probabilidade de benefício. A medicina está repleta deste fenômeno, mediado pelo viés da ação, quando mais é sempre melhor.  

Por exemplo, quando promovemos um internamento duvidoso para prevenir um desfecho improvável, pagamos um preço de fabricar outros desfechos não intencionais. Desde uma dor torácica duvidosa até um quadro mental pouco específico, internamentos por desencargo de consciência podem pode levar a procedimentos desnecessários no coração ou a eletrochoques dispensáveis no cérebro. 

Vale salientar que a proposta desta reflexão não é de niilismo clínico, pois há atos médicos benéficos, desde exames a tratamentos. Mas o que não podemos é fazer demais de forma indiscriminada, em prol da certeza platônica, desconsiderando o equilíbrio das diversas probabilidades. 

O entrelace das ideias aqui desenvolvidas com o tema do TEDx deste ano, “movimento”, toma forma com o movimento internacional Choosing Wisely, que podemos traduzir como escolhas sábias. A sabedoria é contra-intuitiva e neste sentido, sabedoria não é o mesmo que conhecimento certo, sabedoria é a valorização da incerteza. 

Conclusões

Por mais claras e lógicas que sejam, nossas argumentações não resolvem o problema da aversão a incerteza, pois este é biológico e evolutivo. Não é com a razão que amenizaremos essa dor.  

Aversão a incerteza é sentimento. E sentimento se cura com sentimento. Para resolvermos isso, precisamos nos apaixonar pela incerteza. 

Isto é possível, pois se observarmos atentamente, a vida é interessante em grande parte porque é imprevisível. Um filme é mais divertido quando não desconfiamos de seu final, um jogo de futebol é mais emocionante quando seu time vira o jogo aos 44 minutos do segundo tempo de forma inesperada, descobrir o sexo de seu filho no momento do nascimento é mais bonito do que saber por um ultrassom realizado oito meses antes. E encontrar o amor de sua vida por acaso é muito mais romântico do que se seu esposo (a) ser escolhido por seus pais no momento do seu nascimento. 

Eu estar neste momento falando no TEDx não foi um evento previsto por mim, nem mesmo sei qual será o impacto disto. Só saberei que impactou se algum dia, algum de vocês me encontrar passeando pelo Rio Vermelho, me segurar pelo braço e falar: “eu nunca me esqueci das ideias que você passou naquele dia”. Só então saberei do impacto. 

Mederi não é escolher o caminho “certo”. Mederi é saber o “melhor” caminho. O melhor é o mais provável. 

Assim, o valor da incerteza reside em três aspectos. Primeiro, incerteza induz pensamento probabilístico, ferramenta essencial ao bom processo de tomada de decisão; segundo, a percepção de incerteza aprimora nossa interpretação da vida: eventos indesejados se tornam mais leves, bons eventos se tornam mais interessantes quando usamos a perspectiva da imprevisibilidade; terceiro, incerteza é oportunidade. De forma responsável, precisamos escolher momentos para sair da gaiola da certeza, e realizar vôos ao imprevisível. Pois são estes vôos que dão chance ao acaso nos presentear com oportunidades novas e inusitadas. 

Chegando ao final dessa palestra, que coincide com o final deste ano, deixo aqui minha despedida, que não será de “feliz ano novo”. 

O que lhes desejo é um ano novo imprevisível. Uma vida imprevisível. 



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quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Judicialização Médica e o Valor da Incerteza



Ao longo de dois dias de interação entre juristas e profissionais de saúde no III Congresso Baiano de Judicialização em Saúde promovido no Hospital Aliança, me sensibilizei com o dilema de juizes diante de decisões baseadas em relatórios médicos que pregam condutas a serem liberadas pelo Sistema Único de Saúde ou pelo Sistema Suplementar. Traduzirei neste texto as principais mensagens de minha participação no evento, que gerou bastante discussão com os colegas do direito. Foi uma única oportunidade de discutir “medicina baseada em evidências” com juristas e perceber que estes entendem e se indentificam com o conceito. 

Parece utópico querer que juristas saibam “medicina baseada em evidências”. Mas se formos pensar profundamente, o pensamento do direito tem conceitos que se aproximam bastante do paradigma científico: o ônus da prova, a qualidade das evidências. 

Este texto não é endereçado apenas a juristas, pois a evolução da medicina para um paradigma verdadeiramente científico depende da sociedade como um todo direcionar suas expectativas e demandas para esta forma de pensamento. O carência do modelo mental científico envolve todas as áreas, a médica, jurídica, política, econômica, educacional, segurança, etc. Não costumamos ver decisões e debates baseados em evidências. Prevalece como argumento a lógica de cada um, gerando um mundo dogmático e polarizado, evidenciado por uma sociedade “analfabeta cientificamente” (scientific illiteracy). Na medida em que nos alfabetizamos, percebemos que plausibilidade (lógica) não é o mesmo que probabilidade.  

Os adventos dos plantões médicos ou núcleos de avaliação tecnológica (NAT) que hoje dão suporte técnico a decisões de juízes representam uma evolução, porém não solucionam a questão. A decisões continuam angustiantes e sob a percepção de que uma negação pode resultar em dramática perda, decisões se enviesam em prol da liberação da conduta. 

“Medicina baseada em evidências” não é o uso de um amontoado de evidências. É a forma científica de pensar se materializando em decisões (sejam médicas ou judiciais) baseadas nos componentes ceticismo, relevância, valorização das incertezas e probabilidades. 

A solução não está apenas em fornecer informações ao juízes, mas sim na perspectiva do juiz de qual informações se encaixam no quebra-cabeça clínico-científico. Juízes precisam formular a pergunta certa, o que lhes libertará de relatórios médicos dogmáticos e por vezes dirigidos por conflitos de interesse. Ajustando o modelo mental ao encontro do científico, a decisão se tornará menos enviesada, mais simples, e principalmente mais leve. 

Assim, proponho aos juristas 3 perguntas e um modelo mental baseado em incerteza.  

Pergunta 1. É Verdade?


Juizes precisam exercer o ceticismo, sem medo. Ceticismo não é desacreditar ou negar. Ceticismo é duvidar. Judicializações são baseadas em alegações de benefício. Portanto a primeira questão é: este benefício é verdadeiro? 

Qualquer proposição médica, mesmo as exdrúxulas, possuem “respaldo” de trabalhos “científicos”. A questão  principal é de confiabilidade destes trabalhos. Neste contexto, precisamos notar que há diferentes graus de evidências e a maioria dos trabalhos científicos possuem “ruídos” decorrentes de imprecisão amostral ou vieses metodológicos, não podendo ser considerados evidências confirmatórias.

Portanto, quando um proponente citar um estudo, o juiz deve devolver a pergunta: qual o nível de evidência deste estudo? 

Segundo, e os outros estudos? Na verdade, uma questão não pode ser respondida olhando apenas uma evidência, mas sim a totalidade da evidências. Por este motivo existem as revisões sistemáticas, que descrevem todas as evidências, classificando-as pela qualidade.

Desta análise, surge a percepção de que estudos científicos podem (1) sugerir benefício, (2) sugerir ausência de benefício ou (3) não sugerir nada, pois não há bons trabalhos. Nas situações 1 e 2 fica mais fácil se direcionar. Mas como fazer quando não sabemos (situação 3)?

Um princípio básico da medicina baseada em evidências é o ônus da prova. O ônus da prova está na alegação do benefício. Se não demonstrado por estudo (s) de qualidade, ficamos com a “hipótese nula” que remonta à ausência de benefício. Ou seja, na ausência de demonstração científica, nos comportamos como se o fenômeno não existisse. Esse é o mindset científico.

Isso pode dar a sensação de que deixamos de fazer algo com grande potencial de benefício, mas essa percepção é falsa. Na verdade, antes de demonstrada, uma hipótese tem maior probabilidade de ser falsa do que verdadeira. E isso decorre da ausência de associação entre plausibilidade e probabilidade. Plausibilidade vem de nossa lógica, probabilidade não. A baixa probabilidade das hipóteses serem verdadeiras não é notada, pois vivemos a falácia narrativa de conviver apenas com hipóteses que vingaram como verdadeiras. Nosso denominador mental não contém a maioria das hipóteses que morreram pelo caminho do empirismo. 

Em segundo lugar, devemos pensar que pode haver consequências não intencionais na adoção de uma conduta não suficientemente estudada. Por fim, “benefício” demonstrado não é benefício garantido, é apenas a entrega de uma probabilidade. Isso será melhor discutido adiante. 

Portanto, não se precipitar na adoção de condutas incertas não é uma omissão. Pelo contrário, a probabilidade de prejudicar pode ser maior do que beneficiar quando adotamos algo baseado em crença. 

Pergunta 2. É Relevante?


Veracidade não garante relevância. Algo verdadeiro pode ser insignificante, irrelevante. Na verdade, a maioria das condutas médicas benéficas são marginais e justamente por isso precisam da lente de aumento de um estudo grande para detecção de seu efeito. Desta forma, dentre os benefícios, precisamos separar aqueles que fazem muita diferença para o paciente daqueles cujo impacto clínico é tênue.

Primeiro, entender qual o tipo de benefício. Em boa parte das vezes o benefício não está em sobrevida (prevenir morte),  estando voltado para melhora de sintomas ou redução de desfechos não fatais. Em segundo lugar, todo efeito benéfico é a entrega de uma probabilidade, não de uma garantia. Do ponto de vista de redução de desfechos futuros indesejados, precisamos quase sempre tratar muitos pacientes para um deles se beneficiar. 

Portanto, a não adoção de uma conduta questionável não é a negação da vida, nem a negação de um benefício garantido. Isso dá mais leveza e racionalidade à decisão. Precisamos vencer nossa inata tendência ao pensamento determinístico, valorizar a incerteza e utilizar probabilidade no processo de decisão. Até porque tudo tem um preço. 

Pergunta 3. Qual o custo?


Custo não é apenas o monetário. Há o custo pessoal do paciente passar por um tratamento, há o custo clínico decorrente de efeitos adversos e há, finalmente, o custo monetário. 

Um equívoco comum é permitir que a questão monetária penetre no processo de decisão individual. O raciocínio de não oferecer uma conduta benéfica pois “esta é de alto custo e o recurso pode ser utilizado de outra forma para beneficiar um maior número de pessoas” não pode aplicar a um médico que diante de um paciente individual, nem a um juiz que diante de um caso individual. Na verdade, é impossível nos nortear por um coletivo abstrato em detrimento de um caso concreto a nossa frente. 

A questão monetária deve entrar no processo de decisão de políticas de saúde, o que o sistema de saúde cobre ou não cobre. Neste contexto não temos um “drama” individual, o pensamento é ecológico.

Portanto, no processo de decisão do juiz, o pensamento não precisa, nem deve, ser monetário. Afinal, se cortarmos apenas o que é fútil, desnecessário ou prejudicial para o paciente, faremos muita economia. 

Então, como decidir?

A decisão deve ser centrada no paciente, levando em conta seu custo pessoal e clínico. E muitas coisa possuem alto custo clínico. Vejam por exemplo o rastreamento do câncer de próstata (Novembro Azul). Esta conduta não oferece redução de mortalidade, porém causa inúmeras biópsias fúteis, algumas impotências sexuais e incontinências urinárias. Sem precisar falar em finanças, podemos concluir que é decisão anti-econômica do ponto de vista individual. 

A ciência da economia comportamental demostra que em decisões que envolvem perdas e ganhos, vieses de aversão a perda ou ao risco tornam nossas decisões previsivelmente irracionais. 

Temos uma tendência superestimar o benefício de condutas, como se estes fossem de grande magnitude e subestimar os danos. Precisamos pensar “economicamente”, valorizar a incerteza e abrir espaço para uma decisão probabilística. 

O Valor da Incerteza


Temos aversão à dúvida e isso vem de uma questão evolutiva. Na evolução de nossa espécie, indivíduos que procuravam a decisão “certa” pensavam mais, testavam mais, encontravam melhores escolhas. 

Na impossibilidade da certeza, a humanidade recorreu às religiões, que com seus deuses onipotentes garantiriam um futuro bom. Mesmo quando o desfecho não está de acordo com nossa expectativa, “Deus escreve certo por linhas tortas” - tudo sob controle. O segundo advento da procura da certeza foi a ciência, que promoveu grande evolução de nossa espécie: dobrou a expectativa de vida da população e levou o homem à lua. 

Mas em seu processo evolutivo, a ciência hoje considera que nunca podemos determinar com exatidão quando e como um fenômeno acontecerá, apenas sua probabilidade. A ciência hoje, a exemplo da física quântica e das bases da medicina baseada em evidências, é probabilística. 

Incerteza deixa de conotar ignorância e passa a ser considerada a principal lei da natureza. 

Muitas vezes sentenças são favoráveis a condutas de baixo valor, pela impressão de que não aprovar seria deixar de oferecer algo certamente benéfico. Primeiro, a conduta pode não ter suporte científico adequado; segundo, mesmo quando o benefício é demonstrado, este é probabilístico e deve ser contra balanceado com a probabilidade de consequências não intencionais. 

Mederi


Minha aparente intromissão no processo de decisão jurídica, do qual não entendo quase nada, vem da percepção de que medicina e direito se diferenciam na forma, mas se assemelham na essência. A palavra “medicina” deriva do latim mederi, que significa “escolher o melhor caminho”. Em medicina, no direito e na vida estamos sempre tomando decisões a procura do melhor caminho. Decisões incertas …

Medicina portanto é um termo amplo, que se refere a todas as áreas da vida. Neste sentido, direito e medicina convergem como especialidades de uma mesma profissão. A profissão da tomada de decisão baseada em evidências. 

Derivado do movimento “slow food” (contrário de fast food), surgiu o “slow medicine”, que chama atenção do médico de que processos de decisão se fazem melhor ao longo do tempo, sem pressa. Médicos comumente tomam decisões sérias como se estivessem dando uma liminar, na pressa. Na pressa, acabamos por fazer demais, esquecendo que às vezes “menos é mais”. 

Sem pressa não é o mesmo que devagar. Mesmo tendo que decidir rápido, o caminho não é de emitir a liminar e se livrar do medo da omissão. O caminho é saber fazer as perguntas certas:

É verdade? (evidências de alta qualidade)
É importante? (impacto da conduta)
Qual o custo? (consequências não intencionais)

As perguntas não garantem a decisão “certa”, mas abrem margem à dúvida que será equacionada por um pensamento probabilístico a fim de nos aproximar da “melhor” decisão. A “melhor” é a de maior probabilidade de levar a um desfecho favorável. 

Em medicina e no direito, incerteza não é um problema, mas sim a chave para um mundo probabilístico. Incerteza é a chave para decisões ponderadas. 

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