Canais de Luis Correia

sábado, 29 de agosto de 2020

A Interface (não entrelace) entre Ciência e Espiritualidade

 


Ciência é baseada do modelo mental do ceticismo, que propõe uma demonstração tangível dos fenômenos. Espiritualidade se alinha com o modelo mental da crença em um significado da vida que transcende o tangível. 


Ceticismo é a base da ciência. É o desejo de explorar antes de aceitar uma verdade. Ceticismo promove dúvida, que por sua vez promove a curiosidade necessária para o início da investigação. Ceticismo é a base do pensamento científico. 


Crença é a natureza humana, que serve de alicerce do pensamento "religioso" (não necessariamente religiões), cuja proposta se distancia da curiosidade. São os “mistérios da fé”, que não precisam ser explicados. 


Ao longo das últimas duas décadas, na medida em que eu amadurecia um modelo mental de sofisticação científica, dava-me conta de que esta sofisticação não poderia ser apenas metodológica. Um importante determinante seria a habilidade do pensamento científico em respeitar a natureza do pensador. 


Em natureza biológica, somos crentes. O que torna necessário um alinhamento da proposta científica com o paradigma da crença. No entanto, esse alinhamento não pode distorcer a forma científica de pensar. O segredo está em saber em que circunstância deve prevalecer o paradigma crente ou o paradigma cético. 



O Nascimento da Crença


homo sapiens é a única espécie capaz de acreditar no que não está percebendo de forma objetiva. Estudos de psicologia evolutiva sugerem que esse traço humano se concretizou por meio da seleção natural. Primeiro, a crença aumenta a probabilidade de sobrevivência individual. Foi devido a sua crença que Noé construiu uma arca que permitiu a sobrevivência de sua família ao dilúvio. Sem evidências, ele “acreditou” que a arca viria a ser necessária e teve fé em sua capacidade de construir a tal arca. Ao acreditar, ele “fez acontecer”. Portanto, crentes possuíram maior probabilidade de sobrevida em uma época que nossa espécie estava se desenhando. 


A crença no intangível também aumenta a probabilidade de sobrevida coletiva ou perpetuação de uma espécie. Primatas não possuem capacidade de se aglomerar em bandos maiores que 50 unidades. É difícil organizar grupos maiores baseado em um propósito concreto.  Mas a crença em uma mesma entidade que vai além da soma das partes individuais é capaz de reunir milhares de pessoas por um mesmo propósito. 


É o caso de 70.000 pessoas juntas em um mesmo estádio, torcendo por um time de futebol cujo escudo desperta veneração. Ali existe a crença em algo maior do que o conjunto de 11 jogadores que formam transitoriamente aquele time. Fenômeno semelhante é mediado pelo nacionalismo, cuja amor pela bandeira de um país coloca “milhões em ação” em prol de um propósito, muitas vezes arriscando vidas individuais. E o melhor exemplo de crença unindo povos com base em religião. Religião unifica valores, faz das pessoas semelhantes, previsíveis e consequentemente mais confiáveis, promovendo união em prol da sobrevivência individual e coletiva. Religiosidade, portanto, é uma característica biológica. 



O Recente Ceticismo


Diferentemente, o paradigma cético não é biológico. Bem verdade que São Tomé já falava que precisava "ver para crer" há uns 2.000 anos. Porém, em considerando nossa evolução de 200.000 anos, é um pensamento muito recente,  que ainda não teve tempo de se tornar uma característica biológica. E mesmo se desse tempo, não sei se o pensamento científico promoveria maior probabilidade de sobrevida individual, selecionando geneticamente céticos. 

Ceticismo passou a ser melhor desenvolvido há 500 anos, a partir do Iluminismo. O pensamento científico é portanto artificial, não intuitivo, diria até cansativo, fazendo-se necessário um certo treinamento para que se torne habitual. 


O Perigo do Entrelace


Coexistir, sem confundir. Os paradigmas da crença e da ciência não devem se entrelaçar. 


Estes paradigmas representam dois modelos mentais essenciais na vida humana, porém com funções diversas. Não faz sentido aplicar ceticismo a questões religiosas, assim como é inadequado aplicar crença a questões científicas. Saber transitar entre os paradigmas dogmático e cético é o que caracteriza o letramento científico.


Seria paradoxal exigir que a fé de uma pessoa seja comprovada por evidências científicas, pois a ausência de evidências está no cerne da fé. O impacto individual da fé está exatamente no acreditar com base em sentimento, não em evidências. Se um dia “provassem” que Deus existe, este deixaria de ser um Deus, para ser um fato científico. Deus perderia sua essência. Seria a ciência invadindo a religião. 


[Uso exemplos religiosos como proxis da forma crente de pensar. Costumam repetir que religiosidade é uma coisa, espiritualidade é outra, frase usada com o propósito meio boçal de espiritualidade. Embora não sejam exatamente o mesmo, são muito mais parecidas do que diferentes, visto que religião é a forma mais comum com a qual indivíduos atingem espiritualidade.]


Por outro lado, violar o paradigma científico em prol da crença pode ter consequências não intencionais imprevisíveis. Refiro-me ao fenômeno de dogmatização da ciência, quando crença enviesa interpretações científicas. É o caso dos argumentos médicos de que espiritualidade possui eficácia clínica. Este provém do culto a dados observacionais que mostram associação entre espiritualidade ou religiosidade e menor risco de doenças, relação com alto risco de ser mediada por efeitos de confusão. A espiritualidade perde sua essência quando transformada em um “comódite médico”. A isso Luiz Felipe Pondé deu o nome de "idiotices da espiritualidade". O valor da espiritualidade é individual e esta perda de perspectiva caracteriza um pensamento pseudocientífico que vai de encontro à nossa evolução cognitiva.


Equivalente à crença na eficácia espiritual, estão os rituais de cirurgia espiritual. Chamar um ritual espiritual de cirurgia, é transformar espiritualidade em ato médico. A invasão de um paradigma por outro. No Brasil, deu no que deu … que diga Abadiânia. 


Portanto, não devemos “entrelaçar” os modelos mentais da crença e do ceticismo. Estes têm funções diferentes. Por outro lado, os dois paradigmas devem coexistir e “interfacear” no universo de um indivíduo, de uma organização ou de uma sociedade. 



Quando Nasce a Interface


Como valorizar simultaneamente os dois paradigmas, sem promover distorções?


A resposta está na ideia de que o paradigma da crença deve ser aplicado a situações individuais, enquanto o paradigma científico cria conceitos generalizáveis. 


Do ponto de vista individual, devo adotar um ritual de vida que me faça feliz, algo que gere um sentido, um propósito à vida. Isto é espiritualização, de diversas formas, religiosas ou não religiosas. 


Do ponto de vista coletivo, ou seja, a criação de um conceito generalizável, uma recomendação profissional, precisamos de evidências científicas. 


Esta separação permite a interface de dois paradigmas em uma mesmo indivíduo ou sociedade. Mas o verdadeiro sinergismo dos paradigmas está em percebermos que ciência é uma forma de espiritualização. Francis Bacon dizia que “um pouco de ciência nos afasta de Deus. Muito, nos aproxima”. 


Um pouco de ciência representa o “pesquisador”, preocupado com o fator de impacto de suas publicações mais do que com o impacto de suas ideias. 


Muita ciência representa o “cientista”, aquele que venera a incerteza e o acaso. Está no cerne do pensamento científico a dúvida, e não as convicções. O reconhecimento do acaso é um processo essencial na interpretação das observações da natureza das coisas. Acaso equivale a uma causa não percebida, se aproxima de um conceito divino. Acaso é algo intangível e ao mesmo tempo é o cerne do pensamento científico probabilístico. Neste momento se dá a interface sinérgica entre os dois paradigmas. Quem sabe até o acaso não tenha sido uma criação de Deus como o principal mecanismo regente o universo.


Abraçar a volatilidade da vida é uma forma de espiritualidade. O ritual científico requer humildade, dúvida e contém a leveza da imprevisibilidade. É um ritual mais espiritual do que o de muitas religiões. 


Ciência portanto é a forma mais intelectual de espiritualidade. 


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5 comentários:

  1. Muito obrigado Luis Cláudio Correia por compartilhar este texto conosco! Fiquei emocionado de ler algo que compartilho com aqueles que convivo ser elucidado de maneira tão brilhante. Um grande abraço!

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  2. Excelente, professor!

    Recentemente li "a paisagem moral, de Sam Harris, e ecoou bastante nas ideias que o senhor descreve.

    O livro enfoca a relação entre ciência e moralidade, mas um capítulo particular discute a neurociência da crença. Nele vemos como, curiosamente, vias neurais semelhantes são ativadas tanto em crenças embasadas em fé, como embasadas em evidências científicas; entendo que isso reforça a importância do pensamento científico, como o senhor pontua, que é contraintuitivo para nossos cérebros, produtos da seleção natural e adaptados à crença (graças aos benefícios que fornece, como aponta) - habituar-se ao modo de pensar científico requer, portanto, prática e exercício, de modo que nos resulte mais "intuitivo" quando aplicado aos campos da vida a que se adequa; entendo que isso reforça a importância do letramento científico da sociedade.

    Também apreciei especialmente sua definição da importância da crença para os rituais individuais de cada um. Não tenho religião, mas sinto a espiritualidade que o senhor descreve na manutenção de hábitos/rituais diários e no contato com familiares e amigos; te agradeço por descrever algo que sinto, mas não havia ainda sido capaz de conceptualizar tão bem.

    Um abraço.

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  3. A origem do ceticismo remonta a 365 a.c com Pirro de Élis e o auge do pensamento cético se dá com Sexto Empirico 200 a.c.

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  4. Lamento não ter a formação acadêmica para usufruir com profundidade das informações... parabéns...

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