sábado, 13 de agosto de 2022

"Defesa de Ciência" não é o mesmo que "Defesa de Saúde Pública"



Já fui defensor da ciência, mas ao longo dos anos fui mudando para defensor da saúde pública e da educação médica. Acho que me tornei defensor da razão, um processo que não é óbvio, que foge das convicções e valoriza a incerteza. Um processo que entende que o embasamento em evidência é uma condição necessária, mas insuficiente para a tomada de decisão. 

Mas até ao defender ciência, percebi que essa defesa pode ganhar um formato anticientífico ao assumir uma postura convicta. Convicção não combina com um pensamento profundo.  Convicção quase garante superficialidade. Talvez essa deva ser a primeira mensagem da educação científica.

Também passei a evitar a palavra “defesa”, pois para mim esta palavra remete a conflito, confronto, luta, combate, briga. Considero que conflitos são necessários em certas dimensões, mas neste campo de cunho mais intelectual, penso não ser a melhor forma. Afinal, não impomos razão.

O combate pode ser excitante, nos empoderamos com linguagem técnica, e quando escolhemos tópicos caricaturais (a terra não é plana) ganhamos a batalha de forma eloquente. Mas estamos melhorando a saúde pública com esta abordagem? Nossos interlocutores estão sendo sensibilizados por nossa fala, ou estamos falando apenas para nossa tribo?

O comunicador precisa reconhecer lugar de fala, descolar temporariamente de sua essência, e ser capaz de emoldurar a mensagem na perspectiva do outro. Afinal, se queremos promover "mudança", conhecimento não é suficiente. O que promove mudança é motivação e esta depende de percepções (diferente de conhecimento), relações interpessoais, fenômenos comunitários e ecológicos. 


Cultura científica é uma proposta de pensamento sofisticado, não a de 'chover no molhado' ou 'chutar gato morto'. O valor da ciência contemporânea não é demonstrar o óbvio (a terra é redonda), é detectar nuances. Nuances médicas são feitas de coisas que parecem ser verdade, mas não são, outras que parecem ser falsas, mas são verdades. Outras que são verdades em uma realidade (espaço, tempo ou pessoa) e falsas em outras circunstâncias. As nuances da verdadeira acurácia de um teste que se propõe retratar a realidade, da eficácia marginal de um tratamento, do conhecimento sobre mediadores de efeitos. Nesta a ciência faz diferença.


E assuntos como estes podem ser colocados de formas fácil, simples, com exemplos interessantes, sem o olhar de cima para baixo. O primeiro passo é o reconhecimento da incerteza. Depois fica fácil se combinarmos criatividade e afetividade. 


Defesa da ciência sem contexto perde propósito social, restando o propósito individual do defensor. Mas ao assumir o contexto da saúde, devemos reconhecer sua complexidade. 

Enquanto a epidemiologia da inferência causal remete ao biológico, medicina amplia para o biopsicossocial, e saúde pública assume um caráter ainda mais complexo ao lidar com processos sistêmicos. Nesta sequência hierárquica, a evidência científica é essencialmente importada para um sistema complexo.


A “defesa” da saúde pública não deve ser limitada à defesa de condutas médicas com arrazoados biológicos, mas passa pelo entendimento de decisões cujo beneficio pode ser mediado por determinantes sociais, culturais e comportamentais de saúde. Defesa da saúde pública é entender que há diferentes tipos de desfechos de eficácia, simultâneos ou futuros, que efetividade não depende apenas do biológico, que pensamento econômico diz respeito a “valor”, não exatamente a custo (pensamento financeiro), que o sistêmico não é o mesmo que a soma das partes.


Parafraseando uma amiga poeta, cardiologista nas horas vagas, "medicina [e saúde pública] clama por mais poesia. E desse encontro brota o verdadeiro saber, destituído de certezas." Acrescento, poesia baseada em evidências. 


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domingo, 7 de agosto de 2022

Validade Externa: um conceito mal compreendido



Terminarei este texto com a seguinte frase: o conceito de validade externa diz mais respeito à nossa capacidade de pensar do que à procura de uma confirmação empírica. 

O conceito de validade externa pode ser considerado essencial “ferramenta” epidemiológica para o raciocínio clínico. No entanto, o uso inadequado desta ferramenta pode limitar o aproveitamento de boas evidências científicas na tomada de decisão.

No julgamento a respeito da aplicação de evidências internas a uma população externa, sugiro três ajustes conceituais: primeiro, não considerar eficácia e efetividade duas versões do mesmo conceito; segundo, entender que o conceito de validade externa não se aplica a medidas aditivas de associação; por fim, com base no "mediador" da eficácia, identificar situações de maior risco para "modificação de efeito" que pode promover perda de validade externa.



Eficácia e Efetividade


É essencial definir a inferência de interesse e mantê-la tanto para validade interna quanto externa. Epidemiologicamente, a validade interna refere-se à população-alvo de um estudo, enquanto a validade externa refere-se à aplicação do conceito a uma população diferente. Nesse processo de transição, a validade externa deve estar relacionada ao mesmo conceito avaliado internamente. Primariamente, este é o conceito biológico de eficácia. Diferentemente, efetividade é um conceito relacionado à implementação.


Um bom exemplo científico se trata do comum questionamento a psicólogo Daniel Kahneman sobre a validade externa de suas revolucionárias descobertas em laboratório sobre vieses cognitivos nos processos de julgamento frente a incerteza. Ele geralmente sorri e pacientemente dá a entender que suas inferências são conceituais, sobre características intrínsecas da mente humana. Para que conceitos sejam generalizáveis, estes precisam ser verdadeiros, portanto devem advir de observações não enviesadas, provenientes de estudos bem controlados. Como o conceito verdadeiro vai interagir com diferentes ambientes ou culturas trata-se de uma segunda questão (veja no minuto 54 desta entrevista).


Assim, ao pensar na validade externa do efeito biológico de um tratamento, devemos deixar de lado a efetividade. Voltarei a efetividade no final deste texto, sugerindo como usá-la corretamente.



Redução de Risco Absoluto


Nunca use a variação de redução de risco absoluto (RAR) para inferir um problema de validade externa. O conceito de validade externa não é aplicável a medidas aditivas de associação sobre um evento dicotômico, pois a redução do risco absoluto NUNCA será a mesma entre populações de risco basal diferente. Um simples cálculo matemático comprova minha afirmação: a redução do risco absoluto é o produto do risco absoluto pela redução relativa do risco (RRR). Se o risco na linha de base mudar, a redução absoluta mudará. Não são necessários dados empíricos para comprovar variação da redução do risco absoluto.


Portanto, redução de risco absoluto não é um conceito científico e não deve ser usado em inferência causal. Ao contrário, é um conceito clínico a ser utilizado pelo médico que aplica seu conhecimento científico em cada paciente, personalizando o efeito final com base no risco individual. 


Efeito Clínico (RAR) = Efeito Conceitual (RRR) + Individualidade Clínica (risco basal)


Da mesma forma, um profissional de saúde pública deve individualizar o impacto de uma medida com base no risco populacional.


Efeito Populacional = Efeito Conceitual + Carga de Doença na População



Validade externa


Até agora, estabelecemos que devemos avaliar a validade externa da eficácia (evitar efetividade neste momento) e devemos usar o conceito de redução de risco relativo (evitar redução absoluta para inferência causal). Agora, temos que pensar o que leva à falta de validade externa do conceito de redução de risco relativo. 


A variação da redução relativa do risco de acordo com a população ocorre quando há interação (modificação do efeito) com a característica que define a população: uma mudança na característica da população (de homens para mulheres, brancos para negros, região geográfica, etiologia da doença, gravidade da doença) promove mudança na eficácia do tratamento?


A boa notícia (ver análises de subgrupos de ensaios clínicos) é que a interação biológica não é um fenômeno frequente. Na verdade, a interação qualitativa (perda ou inversão de efeito) é rara.


Pense nisso: com exceção dos anticoncepcionais, todas as intervenções farmacológicas funcionam tanto em mulheres quanto em homens. O tratamento da insuficiência cardíaca como a inibição da ECA funciona independentemente da etiologia da disfunção sistólica. Surpreendentemente, a redução de 25% do risco relativo da terapia com estatina é a mesma para diferentes níveis de risco cardiovascular. 


Essa tendência afortunada da natureza nos permite utilizar adequadamente a evidência indireta. Por exemplo, eu prescrevo inibidor da ECA para um paciente chagásico com disfunção sistólica, apesar de não haver evidência direta de eficácia para essa infeliz etiologia.


Na realidade, um paciente que atenda aos critérios de inclusão de um ensaio clínico sempre diferirá de alguma forma da característica média da população do estudo. Não há representatividade perfeita. Assim, a validade externa não é tanto um processo empírico, é um processo de raciocínio, no qual avaliamos se há algum motivo para interação. 


Essencialmente, para generalização de um conceito biológico causal, representatividade não é uma condição necessária na maioria das vezesDescobertas sobre fatores de risco para doenças crônicas feitas pelo Nurses Health Study são aplicadas a mulheres em geral, não apenas a enfermeiras. A restrição deste estudo a enfermeiras tem objetivo de melhorar validade interna, pela qualidade das informações obtidas. 


A melhora da validade interna a partir de um protocolo melhor controlado necessariamente não reduz validade externa, pelo contrário, na maioria das vezes melhora validade externa. Pois quanto mais verdadeiro, mais generalizável é um conceito. Validade externa e interna não são conceitos descolados. Na verdade, a validade externa depende primariamente da validade interna. 



Quando a interação é esperada?


No entanto, há exceções em que a eficácia não se sustenta externamente e, entendendo o porquê, podemos identificar  quais populações externas precisarão de validação de eficácia.


Quando uma característica da linha de base tem uma probabilidade razoável de modificar o efeito relativo de uma intervenção (interação)? A resposta depende da análise do mediador.


Para que a interação ocorra, a população externa deve ser definido pelo mediador causal do tratamento.



Intervenção ✒✒ Mediador ✒✒✒ Desfecho


Estatina ✒✒ Redução de Colesterol ✒✒✒ Prevenção de Infarto


Diurético ✒✒ Redução de Pressão Arterial ✒✒✒ Prevenção de AVC



Por exemplo, a terapia com redutora de colesterol com estatina tem a mesma redução de risco relativo para diferentes níveis de risco cardiovascular, pois o risco de base não é o mediador do efeito da estatina. Este risco depende do conjunto dos outros fatores de risco, que independem do colesterol. 


Por outro lado, o efeito da terapia com estatina não é linear de acordo com o valor do colesterol, indicando que o risco relativo muda com o valor basal do colesterol. O mesmo ocorre com tratamento anti-hipertensivo. Um medicamento prescrito para pressão arterial grave terá maior eficácia relativa, em comparação com o mesmo medicamento prescrito para pressão arterial limítrofe.


Por quê? Para a mesma redução relativa do colesterol ou da pressão arterial, haverá uma maior redução absoluta destes mediadores de acordo com seus níveis basais. Esse efeito diferencial na mediação promoverá um efeito relativo diferente no resultado distal (evento clínico).


Um dos melhores exemplos de interação com base na mudança do mediator é terapia de ressincronização em insuficiência cardíaca. Esta causa benefício clínico em pacientes com bloqueio do ramo esquerdo, pois esses são os que têm dissincronia. Porém não funciona em uma população externa de pacientes sem bloqueio de ramo esquerdo: embora eles tenham insuficiência cardíaca, não sofrem o benefício do mediador sincronização, pois eles não tem dessincronia. Óbvio ...


Portanto, se a definição da população externa é baseada no mediador conhecido do tratamento, devemos valorizar a incerteza da validade externa. Por outro lado, se a população externa é definida por não mediadores (gravidade da doença, etiologia, estratos de risco clínico, características demográficas) deve prevalecer a redução do risco relativo deve ser constante.


Portanto, quando estamos raciocinando sobre a utilização ou recomendação de um dado tratamento a um certo tipo de população, não devemos restringir a pergunta PICO da pesquisa científica àquele tipo de população.  Na pesquisa das evidências, devemos estar à procura da inferência causal, enquanto o pensamento de validade externa é um exercício mais mental do que empírico. Este racional precisar ser mais bem compreendido para evitar a caricatura do rigor metodológico, muitas vezes presente em análises burocratizadas de evidências, que se distanciam do pensamento científico. 


Existem dados empíricos que apoiam essa afirmação, embora reconheça que mais esforços meta-científicos devam ser dedicados a uma questão tão importante para a decisão clínica.



Efetividade


Efetividade não é um conceito científico. É um conceito de implementação. Efetividade é o caso extremo de necessidade de representatividade, pois não basta que a população seja semelhante à do estudo. As condições ecológicas precisam ser semelhantes também. Na verdade, estudos de efetividade não servem para comprovar benefício no "mundo real", pois cada mundo tem sua realidade.  Estudos de efetividade são mais úteis para identificar barreiras de implementação. 


A evidência verdadeira de efetividade virá do feedback que obtemos da aplicação, em um processo de tentativa e erro, tando no paradigma clínico, como no paradigma de saúde pública. Portanto, efetividade é uma questão de avaliação situacional post-hoc.


Um bom exemplo são as análises de custo-efetividade, simulações probabilísticas de acordo com a carga clínica e custos locais. Não podemos generalizar um estudo de custo-efetividade, pois estas realidades variam. Quando um estudo de custo-efetividade é realizado como parte de um ensaio clínico, seu resultado representa mais um potencial de custo-efetividade do que uma prova generalizável de eficiência.


Assim, efetividade é um conceito clínico, não científico. Após prescrever um tratamento realmente eficaz, devemos observar o feedback clínico e avaliar se realmente está funcionando. Portanto, efetividade é uma mistura de avaliação a priori e observação post-hoc da consequência de nossa escolha. 



Conclusão


Validade externa não deve ser considerada um problema primordialmente de representatividade. Ao contrário, devemos pensar em generalização como parte essencial da inferência científica. Quando físicos concluíram que a velocidade da luz é constante, eles não a mediram em todas as situações ou ambientes. As medições foram realizadas em ambientes limitados e controlados, e a generalização veio do pensamento.


Cabe ao consumidor das evidências identificar as situações específicas de risco para generalização, o que ocorre quando a população externa é definida por um valor diferente do mediador. Se não for esse o caso, por favor, não confunda generalização com representatividade. 


Portanto, o conceito de validade externa diz mais respeito à nossa capacidade de pensar do que à procura de uma confirmação empírica. 


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quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

O Sequestro da CONITEC


 


** Este artigo reflete minha visão pessoal, sem qualquer pretensão em representar a visão de instituições das quais faço parte.


Erros são características inerentes de processos de decisão. Erros clínicos prejudicam um paciente por vez. Erros em saúde pública prejudicam milhões de uma só vez.

 

Minhas reflexões científicas advém, em sua maioria, da prática médica, quando exercito o desejo de não prejudicar e, se possível, beneficiar o indivíduo clínico. Mesmo embasadas em ciências, minhas ideias clínicas acabam por possuir um caráter pessoal, pois são também resultado de minhas vivências. 

 

Diferentemente, o presente texto não se refere a decisões clínicas. Este se refere a decisões sistêmicas, que afetam populações. Por outro lado, se assemelham às minhas usuais reflexões, pois possuem um aspecto pessoal advindo de uma vivência. Neste texto, minha vivência como membro da Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS), particularmente nos últimos dois meses. 

 

Este texto possui três dimensões: fatos, análise científica e interpretações.

 

 

Fato Inusitado: gerador da hipótese de viés

 

Confesso que esta é uma história que me surpreendeu desde os primeiros capítulos. Durante minha vivência na Conitec, testemunhei um processo de rigorosa organização, funcionando como o epicentro da evolução do país nas análises de tecnologia em saúde. Somos munidos por minuciosas sínteses e análises da qualidade de evidências, realizadas pela Secretaria Executiva da Comissão e Núcleos de Tecnologia em Saúde. Bem servidos de informação, o desafio o é exercício da decisão, um processo mais complexo, que passa pela interpretação das evidências e necessita de um pensamento sistêmico que respeite incertezas e ambiguidades. Neste universo, somos sujeitos a erros aleatórios de decisão, que nunca serão eliminados, mas podem ser reduzidos por uma hierarquia de pensamento adequada. 

 

Essa discussão vinha sendo meu foco nos últimos dois anos na Conitec, quando fui tomado por uma nova percepção ao final de 2021: a predominância de erros aleatórios parecia dar lugar a erros sistemáticos, ou seja, vieses. Mas não exatamente os vieses cognitivos típicos da mente humana, mas sim vieses que levaram a momentos de opção pela irracionalidade epidemiológica quando o país mais precisava de sabedoria. 

 

A história que conto foi noticiada em tempo real pela imprensa brasileira. Assim, meu objetivo em relatar os fatos não é puramente descritivo, mas principalmente analítico, interpretativo, baseado em ciência e em percepções. 

 

Na manhã de alguma quinta-feira em outubro, deu-se início a Sexta Reunião Extraordinária da Conitec. A despeito do nome, para mim nada havia de extraordinário. Na pauta, três Diretrizes: Tratamento Medicamentoso Ambulatorial do Paciente com Covid-19, Esclerose Múltipla e Retocolite Ulcerativa. 

 

Diferentemente de incorporações de novas tecnologias, que geram debates e opiniões contrárias, discussões de diretrizes carecem de controvérsia. Estas servem para aprimorar os documentos, mas eu nunca vi alguma ser rejeitada. Na verdade, eu nunca vi um voto contrário a uma diretriz, embora eu não seja a pessoa mais indicada para falar do histórico de 10 anos da Conitec.

 

Foi quando, para minha surpresa, acordei de meus distraídos pensamentos naquela manhã  com gritos de manifestação de alguns integrantes do Conitec, questionando a posição da Diretriz contrária a drogas do tipo hidroxicloroquina. Esta posição vinha misturada com sugestões de que aquela Diretriz nem mesmo deveria existir. A discussão se prolongou (vídeo), repleta de argumentos que tentavam parecer científicos, mas primavam por violações de princípios básicos. Questionou-se que não havia prova de que hidroxicloroquina ou ivermectina não funcionava, enquanto outros argumentavam que diretriz que recomenda contra tratamentos não é diretriz, pois estes documentos servem para ditar ações. 

 

Terminou em votação, que terminou em empate de 6 x 6. O incômodo com a falta de posição da Conitec quanto ao assunto me levou a escrever uma análise, publicada Folha de São Paulo

 

Dos seis votos contrários, cinco foram de secretarias ligadas ao Ministério da Saúde e o sexto do Conselho Federal de Medicina. Esses eram votos contrários à minha opinião, e naquela época não me senti confortável em afirmar que eles estavam errados e eu certo. Limitei-me a uma análise probabilística de que algum dos lados houvera cometido um grande equívoco. Tentando ser fiel ao paradigma científico, sendo viés algo difícil de ser provado, apelei para a estatística. Baseado na distribuição binomial, e na premissa de que qualquer das duas decisões teria maior chance (odds 1:4 ou 4:1) de estar correta do que a decisão oposta, calculei que a probabilidade de um empate em 12 votos seria de 2% (P = 0,02). Assim, o observado naquele dia rejeitaria predito pelo acaso, praticamente eliminando a possibilidade de erro aleatório e sugerindo que o empate foi mediado por viés. 

 

Era uma ideia construída a posteriori do fato, portanto apenas uma hipótese, que precisaria de confirmação empírica. 

 


Comprovação da Hipótese de Viés I: Reprodutibilidade

 

Cheguei a pensar, e até mesmo desejar que esta confirmação não viesse, e conclui no meu texto que “se a Conitec seguir o padrão de qualidade que a fez reconhecida por 10 anos de serviço científico prestado ao SUS, um novo empate não acontecerá [na segunda votação].” 

 

Mais uma vez, errei durante esta pandemia … a comprovação da hipótese aconteceu, por uma sequência de fatos que cumprem formalmente o critério científico da reprodutibilidade.

 

O primeiro fato foi exatamente a segunda votação, que como de praxe ocorre após a consulta pública. Numa clara evidência contra o acaso, a mesma discussão se repetiu, os votos se reproduziram, e graças à presença do décimo terceiro voto da ANVISA, a Diretriz foi aprovada pelo plenário da CONITEC por 7 votos a favor contra 6 votos contrários. 


Não foi um equívoco casual, havia convicção de ambas as partes. Reprodutibidade sugere causalidade. 

 

 

Comprovação da Hipótese de Viés II: Caricatura Pseudocientífica


Mas foi outro desenrolar da história que tornou o viés explícito. Os cinco representantes do Ministério da Saúde que foram contrários à Diretriz, não se contentando com seus votos, foram além e encaminharam requerimento ao Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde para a anulação da Diretriz. No documento, os signatários apontavam “vícios processuais, técnicos e metodológicos” e “ausência de transparência”. 


Esse documento foi discutido na sétima reunião extraordinária, cujo vídeo está disponível no site do Conitec. 

 

Pseudocientífico é aquilo que assume um estilo científico com um objetivo de propor ideias anticientíficas. Caricatura é a representação exagerada de características verdadeiras. Em minha visão, o requerimento é um primor didático do uso inapropriado de princípios científicos, ignorando o própria natureza e aplicabilidade destes conceitos. O linguajar traz uma aparência científica, diria até intelectual, que pode confundir um leitor comum. Talvez o objetivo seja mesmo confundir. 

 

O documento em questão traz inúmeros exemplos do que me refiro como caricatural. Limitarei meus comentários a três que encontrei mais interessantes: a inversão do ônus da prova, o mal uso dos Critérios de Hill e a comparação das evidência de hidroxicloroquina e vacinas. São usos de conceitos científicos típicos de quem ouviu a banda tocar, mas não sabe onde. Inclusive me pareceu algo encomendado, pois eu nunca ouvira estes tipos de argumentos vindos de membros da Conitec. 

 

 

Inversão do Ônus da Prova

 

Nas “críticas metodológicas”, os autores reclamam das conclusões das Diretriz com o argumento de que significância estatística e intervalos de confiança nunca foram mandatórios para se provar ou refutar causalidade”. Esta frase implica na necessidade de eu assumir uma desconfortável posição didática, frente a pessoas que imagino dominar princípios científicos tanto quanto eu. 

 

Os autores do texto parecem confundir os conceitos de “necessário” (mandatório) e “suficiente” quando usam os termos “causalidade” e “significância”. Primeiro, causalidade: se por um lado a relação entre X e Y não é condição suficiente para que cause Yesta condição é necessária. Segundo, associação: para julgar uma associação verdadeirasignificância estatística não é suficiente, mas é necessária. Necessária porque a aparente associação pode ser mero resultado do acaso (erro tipo I) presente em amostras que intrinsecamente sofrem de imprecisão. 

 

Portanto, para rejeitar a hipótese nula (ausência de associação), faz-se necessário que baixa probabilidade do resultado observado se fazer presente se esta hipótese for verdadeira. Tão baixa que torna improvável a hipótese nula, que acaba por ser rejeitada. Visto que os autores do documento se referiram a “significância estatística”, acabo de descrever o paradigma da refutabilidade, que inspirou Fisher na criação do teste de hipótese estatística. Existem outras abordagens estatísticas, que não comento aqui pois não fizeram parte dos caricaturais argumentos. 

 

A inversão do ônus da prova ganha forma mais nítida quando os autores se queixam da posição contrária da Diretriz a tratamentos não comprovados com base no mesmo argumento: “[ausência de] significância estatística nunca foi necessária para se refutar causalidade”. Precisamos diferenciar “objetivo” de “método”. Tentar refutar é um método com objetivo de provar causalidade. Portanto, “refutar causalidade” não é objetivo da ciência, como sugere a frase. Provar que uma terapia é ineficaz não é uma condição necessária para não usar a terapia. É o contrário: usar tem como premissa prova de eficácia. 

 

A recomendação contrária a uma conduta não decorre da prova de ausência de eficácia, mas sim da ausência de prova. Portanto, não cabe o combate à negação. Para fins didáticos, a ausência de significância é falta de rejeição da hipótese nula, e não prova da hipótese nula. O ônus da prova está na ação e não na inação. Sem mesmo saber que chegaríamos a este ponto, há dois anos expliquei estes conceitos em uma postagem do Blog, ainda na época em que eu falava do assunto hidroxicloroquina.

 


O Sofisma de Hill

 

O sofisma baseado em termos epidemiológicos fora de contexto chega ao clímax quando os autores sugerem que os Critérios de Causalidade de Hill devam ser utilizados, independente da associação estatística: “recomendações divergentes que ignoram os postulados da causalidade de Hill (1965), principalmente valorizando o intervalo de confiança e o valor de P”. Bradford Hill deve estar se revirando no túmulo, e se pudesse ele ressurgiria das cinzas para explicar o contexto em que estes critérios foram criados e sua aplicabilidade. 

 

Na ausência do autor, explico: os critérios foram criados por Hill para tentar resolver a intensa controvérsia (cientistas versus indústria) quanto à causalidade entre tabagismo e câncer de pulmão. Mesmo após estudos de caso-controle e coorte terem demonstrado consistente associação (estatisticamente significante) entre estas duas variáveis, a indústria insistia em argumentar que a associação não era causalAssim foi criado um construto teórico para interpretar a associação sob a ótica da causalidade. 

 

No requerimento ao “secretário de ciência”, os autores propõem a utilização dos Critérios de Hill na ausência de associação estatisticamente comprovada, o que não tem lógica alguma. 

 

Além disso, os Critérios de Hill são utilizados para análise de fatores causadores de doença, como tabagismo, pois nestes casos o desenho dos estudos são observacionais, modelos que não geram o contrafactual para análise de causalidade. 

 

Imaginem uma paciente que fumou e teve câncer. Se esta mesma paciente, em um mundo paralelo (contrafactual) não houvesse fumado, ela teria câncer? Esta explicação é a definição  de causalidade baseado no contrafactual. 


Quando falamos de tratamento, o contexto é o dos ensaios clínicos randomizados, que artificialmente geram a comparação de pacientes semelhantes, simulando o contrafactual. Portanto, sugerir que se utilize Critérios de Hill no contexto de ensaios clínicos randomizados é inadequado. Neste contexto, os critérios tem sua utilidade limitada à inferência da probabilidade pré-teste da hipótese, mas não na defesa da ideia de causalidade para fins práticos. 

 


 A Tabela dos Tratamentos

 

E para concluir a salada de argumentação, os autores nos brindam com uma tabela em que analisam diferentes tratamentos em relação à algumas perguntas, dentre elas: “há demonstração de efetividade?” e “há demonstração de segurança?”. Surpreendentemente, hidroxicloroquina é classificada como SIM para efetividade e segurança, enquanto vacinas são classificadas como NÃO. 



 

Toda essa argumentação pseudocientífica representa a segunda evidência de viés na análise da Diretriz. Fico curioso em saber da motivação para a criação de trabalhosa “linha” de argumentação, fabricada por retalhos de argumentos costurados de forma não linear?


 

Comprovação da Hipótese de Viés III: o Secretário

 

O “secretário de ciência”, apresentado a um documento que fere princípios epistemológicos, parece não ter lido com o devido rigor científico e encaminha a questão para o Comitê de Ética da Presidência. Na sequência, solicita ao Ministro da Saúde a exoneração da Diretora da Conitec, que votou a favor da Diretriz. 

 

Mais uma vez pergunto: qual a motivação?

 

Assim, o que era uma hipótese no momento da primeira votação, parece se confirmar por uma sequência de fatos inusitados: a fonte de erro não era casual, evidências apontam para viés.  

 

 

Interpretação: Quando a Política agride Políticas de Saúde

 

Em português, a palavra política é usada em dois sentidos que por vezes assumem papéis contraditórios. Em inglês é mais difícil confundir ou fazer trocadilho. “Policy” é política com sentido de “medida”, enquanto “politics” tem o sentido de atividade de governar. A Conitec, uma das mais importantes ferramentas de tradução de evidências científicas em políticas de saúde, está sendo sequestrada para fins do segundo sentido da palavra política. 

 

Em um país democrático, líderes precisam justificar suas decisões, enquanto um secretário de ciência precisa ser científico em suas ações. Mudanças quando bem aplicadas são bem-vindas, mas esta me parece oportunista. Isto se trata de minha opinião pessoal, uma análise que pode estar sujeita a críticas, desde que os envolvidos expliquem uma lógica que tenho dificuldade de assimilar. 

 

A ciência epidemiológica explora causalidade entre "exposição" e "desfecho". Sugiro que o atual “secretário de ciência” utilize do tradicional paradigma epidemiológico e nos esclareça qual o desfecho desejado ao expor o Brasil a este constrangimento durante momento crítico de nossa saúde pública. 

 

O secretário atual deve lembrar que todos nós passaremos. Fica para a história o nosso legado. A Conitec já havia escrito seu legado em prol da saúde pública do Brasil. Os demais devem refletir sobre como desejam ser lembrados pela história. 


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Atualização: Horas após a publicação desta postagem, sai a nota técnica do secretário de ciência desaprovando a Diretriz. 



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