Canais de Luis Correia

sábado, 8 de julho de 2023

Aprovação de Terapia Gênica para Hipercolesterolemia: Inclisiran

 


A ANVISA aprovou nessa semana a regulação da terapia gênica Inclisiran para pacientes com hipercolesterolemia familiar ou que continuam com colesterol insatisfatório a despeito de dose máxima de estatina. Nestes pacientes “refratários”, ensaios clínicos pivotais demonstraram redução média do colesterol de 50% (NEJM 2020).

Esta notícia veio acompanhada de crítica de colegas a respeito do assunto: entusiasmo exagerado e aprovação baseada em desfecho substituto. Abordarei esses dois tópicos. 

Pesquisei a notícia no Google e me surpreendi com grande número de jornais e sites de notícias que evidenciaram o ato da ANVISA: Folha de São Paulo, Veja, Correio Brasiliense, Valor Digital, Acessa, UOL, O Tempo. Aparentemente esses veículos de comunicação foram sensíveis ao press release da indústria. 

Quem já assistiu a TV americana em horário nobre deve ter achar estranho a quantidade de propaganda explícita de drogas sob prescrição médica, de anticoagulantes a quimioterápicos, de vasodilatadores a biológicos. Os Estados Unidos são praticamente o único país em que isso é permitido. Embora caricatural, a propaganda explícita é menos efetiva. Sabe-se que a melhor propaganda é a subliminar, aquela que desperta o interesse do consumidor, mas não tenta o convencer a adquirir o produto. Esta é mais efetiva, pois a sensação de quem está sendo influenciado é a de que a decisão foi própria, sem influências externas, e, portanto, legítima. O leitor de um grande jornal de circulação acredita estar se informando de algo relevante, e muda sua perspectiva.

Na verdade, isso nem se trata de notícia (novidade). É apenas a descrição de um ato regulatório da ANVISA, como tantos outros. 

Do ponto de vista de tecnologia, o advento impressiona, e poderia fazer parte de algum documentário para interessados em avanços da medicina: duas aplicações ao ano de um “pedaço de RNA” (small interfering RNA) promove redução substancial e sustentada do colesterol. Lembrem que há 4 décadas não havia tratamento efetivo para colesterol.

Small interfering RNA serve para inibir a transcrição do RNA. No caso dessa droga, o efeito é na inibição da síntese da proteína PSK9, a qual é envolvida na síntese do colesterol.  É uma tecnologia promissora em várias áreas, pela capacidade de silenciar processos indesejados. 

Por outro lado, há uma dissonância entre o hype da notícia e a relevância prática para a maioria dos pacientes.  Quando indicado, o controle do colesterol é alcançado com as tradicionais estatinas na maioria dos casos. Sendo assim, essa inovação ficaria reservada para situações específicas, baseadas em julgamento clínico criterioso. Mesmo assim, existem opções mais baratas. 

Além disso, salvo situações disruptivas, a introdução de novas tecnologias deve ser progressiva. Nenhum estudo prova total segurança (ausência de dano), cabendo aos pivotais indicarem que a droga é tolerável. Mas após disponibilização, novos fármacos precisam de um surveillance (ativo ou passivo) para detecção de potenciais danos não observados em ensaios clínicos de tamanho moderado. 


Desfecho “Substituto”

Não estou certo de que a crítica à ANVISA, FDA ou Agência Europeia é pertinente quanto ao fato de a regulação ter sido baseada em redução de colesterol, um desfecho caracterizado pelos críticos como “substituto” de desfechos clínicos. 

Colesterol não é uma variável que se presta a substituir um desfecho clínico. Colesterol é um fator de risco para aterosclerose, e o controle dos fatores de risco modificáveis é uma forma efetiva de prevenir de eventos. 

O conceito de desfechos substitutos melhor se aplica a variáveis não causais. Vejam estes exemplos, nenhum deles é fator de risco:

Redução de BNP com novos tratamentos para ICC indica controle da volemia, mas não significa eliminação da causa da ICC. 

Redução de substância amiloide em Alzheimer é de impacto incerto, pois não sabemos se essa substância é causa ou um mero marcador da doença. 

Aumento da fração de ejeção com drogas inotrópicas não reduz mortalidade, mas não é a fração de ejeção a causa da ICC, este é apenas uma consequência da cardiopatia.

Achávamos que HDL-colesterol baixo era fator de risco, mas foram diversos ensaios clínicos negativos que nos ensinaram que este é não passa de marcador de síndrome metabólica. 

No exemplo mais clássico de efeito inesperado, o aumento de mortalidade depois que extra-sístoles ventriculares foram reduzidas com drogas antiarrítmicas se deu porque reduziram a extra-sístole que não causava morte, e aumentaram a arritmia que causava morte. É um exemplo capcioso. Não estavam tratando um fator de risco para a doença, mas sim um gatilho para a morte. 

Não é simples, precisamos pensar profundo, ao invés de decidir com base em clichês (desfecho substituto). Clichês têm o papel de heurísticas, de atalhos mentais por vezes úteis, por vezes simplório. O melhor clichê é a típica resposta da epidemiologia: “depende”.

Se concordamos que colesterol é um fator de risco, a melhor analogia é com a hipertensão. Como primeira linha, preferimos as drogas mais estudadas clinicamente. Mas quando a hipertensão é refratária, associamos drogas como clonidina e minoxidil, fortes hipotensores sem “evidências em desfechos clínicos”. O que estamos fazendo é controlando um fator de risco. 

O cerne da questão está no entendimento do que se trata uma variável de desfecho. Mesmo as variáveis clínicas, estas são sempre substitutos de um construto maior: benefício ou malefício. Ciência não é a observação da realidade, mas sempre uma observação limitada, estendida para a realidade através da inferência. Inferência é pensar o significado do que estamos observando. 


Regulação não é Implementação

Precisamos entender o verdadeiro propósito da “regulação”, que se originou nos Estados Unidos, no início do século passado, em uma série de iniciativas que anos depois deram origem à Food and Drug Administration. Este foi um modelo seguido pelo mundo, culminando no Brasil com a criação da ANVISA em 1999. 

Há 100 anos era proibido nos Estados Unidos mentir a respeito da substância que existia em um produto. Mas a indústria poderia colocar no “label” do produto efeitos terapêuticos inventados, e comercializar produtos sem demonstrar tolerabilidade de forma rigorosa. O FDA se construiu de forma reativa, como resposta a efeitos adversos desastrosos. Começou então por exigir evidências de segurança. Isso evoluiu, décadas depois, para evidências de eficácia: a demonstração de que aquele produto faz de verdade o que se propõe. 

Um analgésico precisa ter efeito analgésico além do placebo. Um indutor de sono precisa induzir o sono. Um antihipertensivo precisa reduzir a pressão. E um hipolipemiante precisa reduzir o colesterol. Esses exemplos são produtos voltados para efeitos imediatos (dor, humor, sono) ou controles de fatores de risco. 

Mas quando um produto é voltado primariamente para consequências distais, estas precisam ser demonstradas para existir no “label” que o quimioterápico prolonga a vida de quem tem câncer ou o inibidor da ECA prolonga a vida de quem tem insuficiência cardíaca. São esses exemplos que trazem o contexto de quando a regulação precisa ser baseada em desfecho clínico. 

E sabem para que serve um “label”? Para regular a propaganda, ou seja, o que existe no “label” pode ser usado como argumento para consumo, o que não existe não pode ser propagandeado. Embora certos usos off-label sejam adequados, estes devem ocorrer fora do ambiente da propaganda do efeito do produto.  

É comum criticarmos certas decisões do FDA (vide Aducanumab no MBE Podcast), mas precisamos reconhecer que o processo regulatório dessas agências é rigoroso. Antes mesmo da indústria iniciar qualquer teste em serem humanos, faz-se necessário a aprovação pelo FDA, que julga se o planejamento científico das diversas fases investigativas (I, II e III) é adequado. O FDA não apenas lê um artigo, como nós fazemos, mas acompanha todo o processo ao longo dos anos, compartilhando decisões com a indústria. A regulação não é apenas do produto, é do processo investigativo. 

O que essas agências garantem é que produtos comercializados são verdadeiros e tolerados pelo organismo humano. Isso é regulação. Precisamos entender a diferença de regulação e decisão clínica ou em saúde pública. Se este produto comercial passará a ser utilizado como uma opção primária, caberá aos profissionais decidirem. E isso fica posto em guidelines, diretrizes, ou em decisões de sistemas de saúde como CONITEC, ANS e NICE para citar o exemplo internacional pivotal. E no final, um médico que assume a complexidade de sua arte com profissionalismo, toma uma decisão individualizada e compartilhada com o paciente. 

A regulação é o processo inicial que torna a comercialização legal. Depois disso, cabe a nós assumirmos a responsabilidade das próximas decisões, agora levando em conta magnitude de efeito clínico, eficácia comparativa com tratamentos tradicionais e custo-efetividade. 

É neste momento que não podemos ser marionetes comandadas pela propaganda da indústria. Mas ao mesmo tempo devemos reconhecer o valor de verdadeiras inovações.


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