Canais de Luis Correia

quinta-feira, 24 de março de 2011

O Paradigma Less is More


A comunidade médica costuma propor que terapias sejam aplicadas de forma mais agressiva do que o usual, sob a premissa de que o benefício é diretamente proporcional à intensidade do tratamento. Esse é o princípio do More is More, vulgo quanto mais, melhor. Esse fenômeno é provocado pela mentalidade do médico ativo, já comentada neste Blog.

O problema é que o benefício de uma terapia agressiva em relação à mesma terapia aplicada de forma moderada é uma premissa baseada em plausibilidade biológica, que é contraposta pela também plausibilidade de que tratar mais pode trazer mais efeitos adversos, mais incovenientes, maior custo. Portanto, nada é garantido.

Mesmo assim, com frequência surgem propostas de tratamentos agressivos sem evidências científicas definitivas, baseadas apenas em fisiopatologia ou em estudos de desfechos substitutos. Um dos grandes exemplos foi a recomendação do guideline americano de hipertensão (Joint National Committee) de que a pressão arterial deveria ser reduzida de forma agressiva em diabéticos, com uma meta de pressão menor do que indivíduos não diabéticos. Depois dessa recomendação, aceita quase universalmente pelos médicos (virou rotina), foi publicado o ensaios clínico ACCORD (NEJM 2010), que randomizou grande número de diabéticos para tratamento intenso ou tratamento usual da pressão arterial, resultando em ausência de diferença entre as duas estratégias. Essa falta de benefício da redução intensa da pressão esteve aliada à necessidade de maior número de drogas utilizadas, maior incidência de efeitos colaterais e maior custo.

A magnitude do benefício de uma terapia comparada a outra terapia é sempre muito menor do que o benefício da terapia comparada ao controle. Desta forma, se tratar agressivamente tiver benefício adicional, este tenderá a ser de pequena magnitude. Isso nos permite esperar com serenidade pelas evidências científicas que mostrem ser a estratégia agressiva segura e benéfica.

Neste tipo de discussão, devemos sempre chamar a atenção de que em situações especiais pode ser justificável adotar uma conduta médica sem evidências científicas. Para que isso ocorra, umas das três condições abaixo devem ser obedecidas:

1) Plausibilidade extrema (extrema mesmo): uso de para-quedas, marca-passo no BAVT, troca valvar em disfunção grave, diálise.

2) Potencial para benefício de grande magnitude (NNT < 10): trombólise no TEP com choque.

3) Plausibilidade moderada com estudo mostrando benefício população-alvo similar: qualquer terapia cardiovascular no muito idoso (pouco incluídos em ensaios clínicos), tratamento com inibidor da ECA e beta-bloqueador em crianças com insuficiência cardíaca (não tem ensaios clínicos em crianças) ou em pacientes com miocardiopatia chagásica (não fez parte dos grandes ensaios clínicos de ICC).

Por outro lado, situações de prevenção (primária ou secundária) raramente se adequam a estas condições. Portanto, devemos esperar evidências científicas do benefício de prevenções.

Se observarmos cuidadosamente, veremos que é muito pequena a probabilidade da terapia agressiva ser superior à terapia moderada. Quase todas as vezes em que a terapia agressiva foi testada, o resultado do estudo foi negativo. Vejam abaixo:
 
1) Tratar agressivamente a pressão arterial em diabéticos não traz benefício (ACCORD - NEJM 2010).
2) Tratar agressivamente a glicemia aumenta da mortalidade hospitalar de pacientes criticamente enfermos, comparado ao tratamento usual (NICE-SUGAR - NEJM 2009).

3) Tratar agressivamente a glicemia de diabéticos crônicos não reduz desfechos clínicos e aumenta incidência da desagradável hipoglicemia (ACCORD - NEJM 2011).

4) Transfusão sanguínea liberal aumenta da mortalidade hospitalar de pacientes criticamente enfermos, comparado à transfusão restritiva (NEJM 1999).

5) Em síndromes coronarianas agudas, clopoidogrel 150 mg não é superior à dose usual de 75 mg; nem AAS 300 mg é superior a AAS 100 mg (OASIS 7 - NEJM 2010)

6) Além de tratar dislipidemia com estatina, aumentar o HDL-colesterol em 70% com Torcetrapib aumenta a mortalidade, ao invés de reduzir (ILUMINATE - NEJM 2007).

7) Além de tratar a dislipidemia com estatina, usar fibrato em diabéticos não reduz desfechos cardiovasculares (ACCORD - NEJM 2010).

8) Em síndromes coronarianas agudas, anticoagulação com Clexane em duas doses diárias é farmacologicamente mais agressivo do que uma dose diária de Fondaparinux, porém o benefício das duas terapias é igual, enquanto o Fondaparinux causa menos sangramento (OASIS 5 - NEJM 2006).

9) Angioplastia coronária de todos os vasos com obstrução significativa apresenta maior incidência de desfechos cardiovasculares do que angioplastia apenas dos vasos com redução de reserva de fluxo (FAME - NEJM 2009).

E por aí vai .... Percebam que é sempre a mesma história.

O único exemplo de sucesso do More is More é a superioridade da redução intensa do colesterol com estatina em relação ao benefício obtido com moderada dose de estatina (PROVE-IT e TNT - NEJM).
Desta forma, devemos ser cautelosos e lembrar que tratar mais nem sempre é melhor opção. É justo que estas hipóteses sejam testadas em nossa procura incessante de melhores terapias. Mas uma hipótese é para ser testada, não implementada.

No princípio do Less is More, less não significa exatamente pouco, mas sim o usual, o que se faz habitualmente. Enquanto more significa o exagero.

Por tudo isso, o princípio do Less is More deve prevalecer em nosso raciocínio clínico. Até que se prove o contrário.

7 comentários:

  1. Nubia Welerson Vieira24 de março de 2011 às 21:41

    Luis, mais um publicação excelente!!!
    Parabéns!!! Acho que você devia pensar em escrever um livro.

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  2. Caro Luis, Parabéns pelo Blog. Estou adorando os artigos e polêmicas.
    Estarei no curso em Recife.

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  3. Luis, mais uma vez você foi brilhante. Na era que é "out" não falar em evidência estamos sendo cada vez mais bombardeados por evidências fracas ou "falsas". É preciso estarmos atentos realmente aos seus lembretes aqui do Blog. Reforço a importância de não cairmos nos estudos de não-inferioridade muito usado atualmente nos lançamentos de novos farmácos, geralmente mais caros. Estudos clínicos de não inferioridade são estudos delineados para avaliar se um novo tratamento não é menos eficaz do que um tratamento padrão, por mais de uma margem de tolerância. Esta margem deve ser fixada previamente e é denominada “margem de não inferioridade”. Tais estudos não devem ser confundidos com os estudos de equivalência, que visam avaliar a ausência de diferenças importantes entre tratamentos. Por outro lado, os estudos de superioridade são aqueles com delineamento mais tradicional e têm por objetivo avaliar se um novo tratamento é mais eficaz que um controle (placebo ou substância ativa). Contudo, são mais dispendiosos e caem no risco de resultado negativo, se comparado à droga padrão.

    Assim, fiquemos atentos!

    Marcia Cristina

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  4. Luis, maais uma excelente e contribuitória reflexão!

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  5. Luis

    Muito bom! Concordo com o comentário de Márcia.
    Já conversei com você sobre a " nova onda" de estudos de não inferioridade e estou aguardando uma postagem sobre o assunto.

    Ana Marice

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  6. Luis,
    Muito bom!!!!!
    Parabenizo-o pela sua escrita e pelo seu comprometimento com a medicina.
    É sempre um grande prazer compartilhar das suas idéias, observar a sua sensibilidade e capacidade de reflexão.
    A vida nos impõe isso a cada dia. Vou também esperar um livro. Parabéns.
    Carmen

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