Por diversas vezes comentamos neste Blog sobre situações em que precisamos tomar decisões clínicas na ausência de estudos que mostrem qual o melhor caminho. Nesta postagem comentaremos de um fenômeno um pouco diverso: na presença de evidências, muitas vezes os médicos tomam a decisão contrária.
Recentemente o Wall Street Journal publicou uma reportagem crítica a respeito da baixa influência que o estudo Courage tem tido sobre a decisão médica de cardiologistas americanos. O Courage é um conhecido ensaio clínico, publicado em 2007 no New England Journal of Medicine, o qual randomizou 2.200 pacientes com doença coronariana estável para tratamento clínico ou angioplastia coronária, demonstrando que angioplastia não reduz incidência de infarto ou morte cardiovascular quando comparado à estratégia conservadora. Vale salientar que o grupo angioplastia também recebeu tratamento medicamentoso e controle de fatores de risco.
A vantagem demonstrada com o tratamento intervencionista foi melhora dos sintomas de angina, ou seja, melhora em qualidade de vida. Desta forma, angioplastia tende a ser útil em pacientes com doença coronariana estável que tenham qualidade de vida afetada por angina limitante. Por outro lado, há muitos pacientes portadores de doença coronariana que são assintomáticos ou oligossintomáticos. Estes ficarão bem com o tratamento clínico, pois não desfrutariam do benefício da angioplastia. No entanto, na prática estamos cansados de ver indicação de angioplastia para pacientes estáveis, com isquemia silenciosa. Aquela velha receita de bolo: o médico solicita um teste ergométrico para um paciente assintomático, cujo resultado é positivo para isquemia. Daí o paciente é encaminhado para cateterismo cardíaco que mostra uma estenose coronária. Daí o paciente recebe sua angioplastia com um moderno stent coronário. Dias depois o paciente tem alta hospitalar, feliz por ter tido “sua vida salva pelo procedimento”. Mal sabe ele que este procedimento não contribuiu positivamente em nada.
Evidências como a do estudo Courage (e outras subseqüentes, BARI-2) deveriam reduzir o número de angioplastias desnecessárias como no exemplo acima, porém isso não tem sido observado de forma consistente. A lúcida reportagem do Wall Street Journal começa lembrando a simplicidade do paradigma da medicina baseada em evidências.
It sounds like such a simple concept: Study different medical treatments and figure out which delivers the best results at the cheapest cost, giving patients the most effective care.
Depois faz a constatação:
Most cardiologists haven't voluntarily incorporated the Courage criteria into their practice. U.S. stent implants declined 13% in the month after the study's release. But as the headlines about Courage faded, stentings soon began to rise again, and are now back at peak levels of about one million a year, according to hospital surveyor Millennium Research Group - Veja gráfico.
Most cardiologists haven't voluntarily incorporated the Courage criteria into their practice. U.S. stent implants declined 13% in the month after the study's release. But as the headlines about Courage faded, stentings soon began to rise again, and are now back at peak levels of about one million a year, according to hospital surveyor Millennium Research Group - Veja gráfico.
Evitar o procedimento desnecessário traz vantagens: previne o estresse psíquico relacionado ao internamento; evita complicações comuns destes procedimentos, tais como grandes hematomas, alguns com necessidade de transfusão, agressão renal relacionada ao contraste; sem falar na economiza de recursos do sistema de saúde.
Sanjay Kaul, a prominent cardiologist and researcher at Cedars-Sinai Heart Institute in Los Angeles, estimates that the U.S. could save $5 billion of the $15 billion it spends on stent procedures each year if all doctors followed Courage's guidance—that is, putting certain heart patients on generic drugs and turning to stents only if the pains persists.
Como já citamos em post anterior, até Obama já falou isso quando de sua visita ao American Medical Association: "doctors may be placing a stent when adjusting a patient’s drugs and medical management is equally effective – driving up costs without improving a patient’s health.”
Mas porque será que alguns médicos rejeitam evidências de ótima qualidade científica? Para mim, há três razões sociológicas.
A primeira é a Mentalidade do Médico Ativo. Esta forma de pensamento leva o médico a se sentir bem quando indica um tratamento – seja benéfico ou não. Prescrever um remédio ou indicar um procedimento conota que o médico está proporcionando um benefício ao paciente. Não importa as evidências, o que importa é o marketing. Ou seja, o médico aceita mais facilmente evidências positivas do que evidências negativas. O bom é prescrever, principalmente quando se trata de uma novidade.
Since the 1970s, the "evidence-based medicine" movement has urged doctors to use studies like Courage as the best way to decide how to treat patients. Many studies have had a substantial impact, especially those that boost a new therapy and its maker. Examples include studies that found benefits from cholesterol-lowering statins. But studies like Courage—that find an already-popular and a lucrative treatment can merely be unnecessary, but not harmful—have rarely altered medical practice to the same degree.
A segunda razão é o Apego ao Paradigma Mecanístico. Sabemos que os sistemas biológicos são complexos, o que faz raciocínios cartesianos serem reducionistas, ou seja, incapazes de prever com acurácia qual conduta será benéfica ou maléfica. Por isso, precisamos de evidências clínicas. Mas há aqueles que insistem em pensar como encanadores, ou seja, desentupindo uma artéria o paciente vai necessariamente melhorar.
Ajay Kirtane, a cardiologist at Columbia University, believes that American expectations about medical "fixes" makes it hard to follow recommendations such as Courage's.
Em terceiro lugar, questões de conflito de interesse muitas vezes dificultam a aceitação de evidências científicas, tal como descrito na reportagem:
Interventional cardiologists, on the other hand, have a financial incentive to use stents—they receive about $900 per stenting procedure, roughly nine times the amount they get for an office visit. Over the past 10 years, improvements in stents have coincided with an explosion in their use, as the hour-long procedure edged out bypass surgery as the preferred treatment for clogged arteries in all but the sickest patients. The average cardiologist who installs stents made about $500,000 in 2008, up 22% from 10 years prior, adjusted for inflation, according to the American Medical Group Association.
Conflitos de interesse têm gerado argumentos cientificamente limitados contra o estudo Courage, porém às vezes convincentes para uma platéia menos atenta. Um dos argumentos mais comuns é aquele que sugere serem os pacientes do estudo Courage pouco graves. Essa idéia é facilmente rebatida quando se percebe que 1/3 dos pacientes tinham comprometimento triarterial e que o resultado do estudo é consistente em subgrupos de diferente gravidade – vide Circulation CV Quality and Outcomes. Agora, pacientes demasiadamente grave realmente não foram avaliados pelo Courage, pois estes não se adéquam ao tratamento clínico. O estudo é voltado para pacientes estáveis, o que representa uma grande parcela dos coronarianos.
Angioplastia é um procedimento de excelência, cuja indicação deve se basear em raciocínio clínico de excelência. Não em receitas de bolo baseadas em Mentalidade do Médico Ativo, Apego ao Paradigma Mecanístico ou conflitos de interesse. A lucidez do repórter do Wall Street Journal deve servir de wake-up call para a comunidade médica.
Excelente postagem, Luis. Acho que vou me matricular no seu curso. Me avise quando planejar outro curso de MBE extra curricular rsrsrsr
ResponderExcluirAbraços
Excelente post mais uma vez, Luis.
ResponderExcluirAcho que me irei me matricular no seu próximo curso extra curricular de MBE rsrsrsrs
Abraços
Gostei muito das observações presentes no texto.
ResponderExcluirCurioso é que hoje mesmo, num almoço em família, conversei com um médico, já experiente, mas sem prática em pesquisa, sobre evidência científica. Estávammos discutinho sobre RCP e as novas recomendações do ACLS, como a mudança da relação entre compressão torácica e ventilação para 30:2. Ele afirmou que a relação antiga, 15:1, era a que ele continuava praticando e que funcionava muito bem para ele. Tentei argumentar sobre as evidências de estudos atuais e a necessidade de universalização do padrão de atendimento, mas mesmo assim não consegui convencê-lo de que o protocolo atual é o mais efiucaz e correto.
Assim, aponto mais um motivo para médicos rejeitarem evidências científicas: a dificuldade de aceitar e incorporar o novo. Reestruturar um conhecimento que já fazia parte da sua rotina médica e que foi verdade por muito tempo, para alguns, ouso dizer uma grande parcela, é difícil.
Abraço!
"There are more things in heaven and earth, Horatio,
ResponderExcluirThan are dreamt of in your philosophy."
Ao que a Heloína ressalta, acrescento a arrogância de muitos (e bote muito nisso, mas felizmente não são todos) médicos experientes. Estes acham que o fato de terem cuidado de pacientes com determinada conduta que levou a sucessos (e isso é relativo) é motivo irrefutável de que é a coisa certa, mesmo que as evidências indiquem que pode ser diferente.
ResponderExcluirMuito disso tudo é plantado ainda durante o curso médico. Na minha formação, por exemplo, tive alguns bons professores. Entretanto, outros muitos traziam uma arrogância que escondia uma mediocridade ímpar a respeito da prática da medicina baseada em evidência (MBE). Uma pena dizer isso, mas ao meu ver, considerando as várias escolas médicas no Brasil, acho que esse segundo tipo de professor deve certamente representar a maioria. Somente há poucos anos a MBE passou a ser considerada como parte da grade curricular de algumas escolas. Veja só que interessante. O estudante tem uma disciplina sobre MBE. Mas todas as disciplinas não teriam que transmitir o conhecimento (ou construí-lo) à luz da MBE? Neste cenário anacrônico do ensino médico na maioria das escolas, a introdução da MBE como disciplina é uma passo inicial que mostra atenção para esta questão. Mas ainda é muito pouco para que ocorra uma mudança estruturada na mentalidade dos diversos médicos.
Tem uma coisa ainda mais interessante. Em uma grande quantidade de escolas médicas, os profissionais novos que chegam com a mentalidade de prática médica entranhada na MBE são comumente vistos como chatos. Sim, chatos. E são vistos como arrogantes pelos colegas professores. É mais ou menos assim: os professores arrogantes experientes, cuja experiência é para tais mais importante do que as evidências, não gostam dos novos colegas (novo aqui não se refere à idade, mas sim à entrada na Universidade) que questionam algumas condutas à luz da MBE. Isso resulta em ambiente de hostilidade e brigas intra ou inter-departamentais. Já vi diretores de faculdade dizendo que se seguirmos a MBE sempre à risca teremos mais chance de errar e o que decide é a experiência. Acho que o que falta mesmo é uma compreensão do que seja a MBE. A MBE respeita a experiência individual do médico. Esta experiência é uma evidência sim. Só que mais frágil do que evidências oriundas de estudos clínicos sólidos. Há portanto uma hierarquia de evidências. Ao tentar colocar a experiência individual acima de evidências mais fortes e estruturadas, todos perdem com isso, incluindo o profissional experiente que fez isso. A experiência individual deve ajudar é na aplicação das fortes evidências nos quadros específicos dos diferentes pacientes vistos na prática clínica.
Some tudo isso ao fato do médico no Brasil ainda ser desproporcionadamente poderoso. Sim é isso mesmo. Apesar de recente aumento, ainda são raros os processos contra condutas médicas. Raros são os processos e mais raras as condenações. Isso se comparado a outros países, como EUA e vários da Europa. Então, relativamente, os nossos médicos não praticantes da MBE ainda tem relativa tranqüilidade. Mas anotem, isso provavelmente durará pouco.
Portanto, a MBE ainda é embrionária no Brasil. E lentamente vai se estabelecendo. Nisso, estamos atrás de outros países. Muitos outros. Para uma nação que tem orgulho de ser brasileira, a nossa realidade médica baseada em evidências é ainda motivo de vergonha.
Abraços
Post e comentários muito bons! Parabens!
ResponderExcluirÓtimo texto
ResponderExcluirConcordo com o texto e comentários acima!
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