sábado, 29 de agosto de 2020

A Interface (não entrelace) entre Ciência e Espiritualidade

 


Ciência é baseada do modelo mental do ceticismo, que propõe uma demonstração tangível dos fenômenos. Espiritualidade se alinha com o modelo mental da crença em um significado da vida que transcende o tangível. 


Ceticismo é a base da ciência. É o desejo de explorar antes de aceitar uma verdade. Ceticismo promove dúvida, que por sua vez promove a curiosidade necessária para o início da investigação. Ceticismo é a base do pensamento científico. 


Crença é a natureza humana, que serve de alicerce do pensamento "religioso" (não necessariamente religiões), cuja proposta se distancia da curiosidade. São os “mistérios da fé”, que não precisam ser explicados. 


Ao longo das últimas duas décadas, na medida em que eu amadurecia um modelo mental de sofisticação científica, dava-me conta de que esta sofisticação não poderia ser apenas metodológica. Um importante determinante seria a habilidade do pensamento científico em respeitar a natureza do pensador. 


Em natureza biológica, somos crentes. O que torna necessário um alinhamento da proposta científica com o paradigma da crença. No entanto, esse alinhamento não pode distorcer a forma científica de pensar. O segredo está em saber em que circunstância deve prevalecer o paradigma crente ou o paradigma cético. 



O Nascimento da Crença


homo sapiens é a única espécie capaz de acreditar no que não está percebendo de forma objetiva. Estudos de psicologia evolutiva sugerem que esse traço humano se concretizou por meio da seleção natural. Primeiro, a crença aumenta a probabilidade de sobrevivência individual. Foi devido a sua crença que Noé construiu uma arca que permitiu a sobrevivência de sua família ao dilúvio. Sem evidências, ele “acreditou” que a arca viria a ser necessária e teve fé em sua capacidade de construir a tal arca. Ao acreditar, ele “fez acontecer”. Portanto, crentes possuíram maior probabilidade de sobrevida em uma época que nossa espécie estava se desenhando. 


A crença no intangível também aumenta a probabilidade de sobrevida coletiva ou perpetuação de uma espécie. Primatas não possuem capacidade de se aglomerar em bandos maiores que 50 unidades. É difícil organizar grupos maiores baseado em um propósito concreto.  Mas a crença em uma mesma entidade que vai além da soma das partes individuais é capaz de reunir milhares de pessoas por um mesmo propósito. 


É o caso de 70.000 pessoas juntas em um mesmo estádio, torcendo por um time de futebol cujo escudo desperta veneração. Ali existe a crença em algo maior do que o conjunto de 11 jogadores que formam transitoriamente aquele time. Fenômeno semelhante é mediado pelo nacionalismo, cuja amor pela bandeira de um país coloca “milhões em ação” em prol de um propósito, muitas vezes arriscando vidas individuais. E o melhor exemplo de crença unindo povos com base em religião. Religião unifica valores, faz das pessoas semelhantes, previsíveis e consequentemente mais confiáveis, promovendo união em prol da sobrevivência individual e coletiva. Religiosidade, portanto, é uma característica biológica. 



O Recente Ceticismo


Diferentemente, o paradigma cético não é biológico. Bem verdade que São Tomé já falava que precisava "ver para crer" há uns 2.000 anos. Porém, em considerando nossa evolução de 200.000 anos, é um pensamento muito recente,  que ainda não teve tempo de se tornar uma característica biológica. E mesmo se desse tempo, não sei se o pensamento científico promoveria maior probabilidade de sobrevida individual, selecionando geneticamente céticos. 

Ceticismo passou a ser melhor desenvolvido há 500 anos, a partir do Iluminismo. O pensamento científico é portanto artificial, não intuitivo, diria até cansativo, fazendo-se necessário um certo treinamento para que se torne habitual. 


O Perigo do Entrelace


Coexistir, sem confundir. Os paradigmas da crença e da ciência não devem se entrelaçar. 


Estes paradigmas representam dois modelos mentais essenciais na vida humana, porém com funções diversas. Não faz sentido aplicar ceticismo a questões religiosas, assim como é inadequado aplicar crença a questões científicas. Saber transitar entre os paradigmas dogmático e cético é o que caracteriza o letramento científico.


Seria paradoxal exigir que a fé de uma pessoa seja comprovada por evidências científicas, pois a ausência de evidências está no cerne da fé. O impacto individual da fé está exatamente no acreditar com base em sentimento, não em evidências. Se um dia “provassem” que Deus existe, este deixaria de ser um Deus, para ser um fato científico. Deus perderia sua essência. Seria a ciência invadindo a religião. 


[Uso exemplos religiosos como proxis da forma crente de pensar. Costumam repetir que religiosidade é uma coisa, espiritualidade é outra, frase usada com o propósito meio boçal de espiritualidade. Embora não sejam exatamente o mesmo, são muito mais parecidas do que diferentes, visto que religião é a forma mais comum com a qual indivíduos atingem espiritualidade.]


Por outro lado, violar o paradigma científico em prol da crença pode ter consequências não intencionais imprevisíveis. Refiro-me ao fenômeno de dogmatização da ciência, quando crença enviesa interpretações científicas. É o caso dos argumentos médicos de que espiritualidade possui eficácia clínica. Este provém do culto a dados observacionais que mostram associação entre espiritualidade ou religiosidade e menor risco de doenças, relação com alto risco de ser mediada por efeitos de confusão. A espiritualidade perde sua essência quando transformada em um “comódite médico”. A isso Luiz Felipe Pondé deu o nome de "idiotices da espiritualidade". O valor da espiritualidade é individual e esta perda de perspectiva caracteriza um pensamento pseudocientífico que vai de encontro à nossa evolução cognitiva.


Equivalente à crença na eficácia espiritual, estão os rituais de cirurgia espiritual. Chamar um ritual espiritual de cirurgia, é transformar espiritualidade em ato médico. A invasão de um paradigma por outro. No Brasil, deu no que deu … que diga Abadiânia. 


Portanto, não devemos “entrelaçar” os modelos mentais da crença e do ceticismo. Estes têm funções diferentes. Por outro lado, os dois paradigmas devem coexistir e “interfacear” no universo de um indivíduo, de uma organização ou de uma sociedade. 



Quando Nasce a Interface


Como valorizar simultaneamente os dois paradigmas, sem promover distorções?


A resposta está na ideia de que o paradigma da crença deve ser aplicado a situações individuais, enquanto o paradigma científico cria conceitos generalizáveis. 


Do ponto de vista individual, devo adotar um ritual de vida que me faça feliz, algo que gere um sentido, um propósito à vida. Isto é espiritualização, de diversas formas, religiosas ou não religiosas. 


Do ponto de vista coletivo, ou seja, a criação de um conceito generalizável, uma recomendação profissional, precisamos de evidências científicas. 


Esta separação permite a interface de dois paradigmas em uma mesmo indivíduo ou sociedade. Mas o verdadeiro sinergismo dos paradigmas está em percebermos que ciência é uma forma de espiritualização. Francis Bacon dizia que “um pouco de ciência nos afasta de Deus. Muito, nos aproxima”. 


Um pouco de ciência representa o “pesquisador”, preocupado com o fator de impacto de suas publicações mais do que com o impacto de suas ideias. 


Muita ciência representa o “cientista”, aquele que venera a incerteza e o acaso. Está no cerne do pensamento científico a dúvida, e não as convicções. O reconhecimento do acaso é um processo essencial na interpretação das observações da natureza das coisas. Acaso equivale a uma causa não percebida, se aproxima de um conceito divino. Acaso é algo intangível e ao mesmo tempo é o cerne do pensamento científico probabilístico. Neste momento se dá a interface sinérgica entre os dois paradigmas. Quem sabe até o acaso não tenha sido uma criação de Deus como o principal mecanismo regente o universo.


Abraçar a volatilidade da vida é uma forma de espiritualidade. O ritual científico requer humildade, dúvida e contém a leveza da imprevisibilidade. É um ritual mais espiritual do que o de muitas religiões. 


Ciência portanto é a forma mais intelectual de espiritualidade. 


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sexta-feira, 21 de agosto de 2020

O Dilema da Medicina Moderna: Zolgensma, a droga mais cara do mundo

 


Parte significativa das medicações de alto custo utilizadas para doenças raras promovem benefícios clinicamente modestos, tendo seu “valor” superestimado pela gravidade do problema e ausência de alternativas. Nestes casos, o problema da custo/efetividade está no denominador, pequeno para justificar o custo do tratamento, o que faz com que não seja um grande dilema a adoção de decisões baseadas no racional de saúde pública. 


Esta semana foi aprovado pela ANVISA o registro da medicação apelidada para fins comerciais de Zolgensma, indicada para o tratamento de crianças que nascem com atrofia muscular espinhal tipo I, decorrente de defeito no gene responsável pelo desenvolvimento motor neuronal. É uma doença de curso clínico inexorável, rapidamente progressiva, devastadora, na qual praticamente todos morrem antes de completar 2 anos. 


Diferentemente de muitos tratamentos para doenças raras, este possui grande magnitude de benefício. No único ensaio clínico realizado (NEJM 2017), todas as 15 crianças que receberam a droga em dose única permaneciam vivas após 20 meses, sem necessidade de ventilação mecânica, a maioria com relevante melhora no desenvolvimento motor. É o que chamamos de grande “tamanho de efeito”, algo como redução relativa do risco = 100%, NNT = 1. Tão grande que dispensa um grupo controle, pois estamos diante da “reversão do inexorável”.


A necessidade de um grupo controle vem da tendência a melhora quando se compara um grupo de indivíduos antes e depois, independente do tratamento. Esta melhora pode ser decorrente de efeito placebo, fenômeno de regressão à média (a média de algo extremamente ruim tende a se tornam menos ruim em uma segunda medida), viés de desempenho (outras melhorias de tratamento que acompanham uma intervenção). Porém, no caso do inexorável, efeito placebo não funciona, a média não regride, nem cuidados adicionais resolvem o problema. Desta forma, quando em um estudo de fase I (sem grupo controle) ocorre uma reversão do inexorável em quase todos os pacientes, sabemos que o efeito é verdadeiro. Não há necessidade de progredir até um estudo de fase III, controlado por placebo, randomizado. 


Esta terapia genética é uma das maravilhas da biotecnologia. Paradoxalmente, nos deparamos com uma consequência não intencional da evolução tecnológica: o dilema do principialismo versus utilitarismo. Neste caso, o problema da custo/efetividade é o numerador. Enquanto a efetividade é muito grande, o custo é impagável. Esta é a droga mais cara do mundo. 


Nos Estados Unidos, o custo do tratamento é de US$ 2 milhões (R$ 12 milhões). A definição americana de custo-efetividade é $50.000/ano de vida salva com qualidade. Sendo assim, as crianças salvas precisariam viver 40 anos em média para que o tratamento fosse custo-efetivo. O que temos de evidência por enquanto é 20 meses. 


Mais importante do que a definição de custo-efetividade é o impacto orçamentário: o quando se gastaria com a droga. Fiz um cálculo grosseiro. Considerando que a incidência da doença é 1/16.000 nascidos-vivos e que nascem 3 milhões de bebês por ano, o Brazil produziria 190 pacientes com esta doença anualmente. O custo anual seria de 190 x 12 milhões = 2.3 bilhões de reais. Isto é 1/3 do orçamento inteiro do país para tratamentos de alto custo (Componente Especializado da Assistência Farmacêutica - CEAF), que atende em média 2 milhões de pessoas ao ano para aproximadamente 100 condições clínicas diferentes (incluindo as raras). O utilitarismo se aplica bem no processo de gestão da saúde pública, pois em qualquer sistema, mesmo os de países ricos, recursos são finitos. Friamente, “sacrificar” alguns casos de atrofia muscular espinhal pode liberar recursos que salvarão mais vidas se bem aplicados em outras situações. 


Por outro lado, em princípio, uma vida não preço. Medicina não é apenas gestão de recursos. Na outra ponta, existe um médico que tenta mediar a decisão compartilhada com os pais de uma criança, cujo curso natural da doença será morte precoce, em uma situação dramática. Antes do Zolgensma, embora muito sofrido, estes pais procurariam se contentar com a natureza. Hoje, a mera existência de uma alternativa terapêutica não permite que os pais desenvolvam aceitação e resiliência. Este é o drama promovido pelo custo desta espetacular tecnologia. O filho morrerá precocemente, não mais devido a uma rara doença genética, mas devido à inabilidade dos pais ou do sistema de proporcionar o melhor tratamento à criança. 


Uma questão precisa ser aprofundada: por que esta droga é tão cara? O custo final de uma droga não decorre apenas do desenvolvimento da tecnologia. Determinantes como “valor” clínico (prevenção de morte, NNT = 1, dramaticidade da doença), raridade da doença (poucos tratamentos serão vendidos), falta de competição (único tratamento com essa eficácia) também justificam o custo final do tratamento. Todas as partes precisam estar envolvidas na discussão, quem cobra, quem paga, quem indica, quem se beneficia.


Enquanto sociedade, precisamos reconhecer o dilema e iniciar uma discussão madura a respeito de tecnologias médicas. Evitar o viés da superestimativa do benefício clínico em muitas terapias de alto custo é um caminho importante. E para as terapias de benefício relevante, aprofundar análises econômicas dentro do contexto social, sem populismo. Mas também considerando que a sociedade é feita de pessoas individuais, com seus próprios dramas pessoais. 


Essa discussão não se limita ao Zolgensma. Diz respeito às contradições da tecnologia inventada pelo homem e aos dilemas da modernidade. Precisamos evoluir não apenas em terapias genéticas, mas também na resolução de dilemas.


* Agradeço a Heber Bernard (CONASS) e Daniel Wang (FGV) pelo produtivo debate sobre o tema. 


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