sábado, 18 de setembro de 2021

Confusão entre Equações Clínicas e Populacionais: vacinas em jovens


Um bom processo de decisão se apoia em  “modelos” adequados. Modelos representam simplificações do universo, que servem para testar hipóteses científicas ou estimar consequências de nossas decisões. Para avaliar causalidade, modelos são testados estatisticamente, enquanto nos processos de decisão servem como projeções de como o mundo reagirá diante de premissas pré-definidas. 


Diferentes modelos devem estar presentes em uma caixa de ferramentas mentais, que permitirá uma escolha estratégica de pensamento para cada situação. Um martelo deve ser escolhido para enfiar um prego na parede, enquanto uma chave de fenda para girar um parafuso. Se poucas vezes erramos na escolha entre chave de fenda ou martelo, erramos mais em escolhas baseadas em nuances. Erros sutis, de consequências escaláveis. 


Esse é o caso da escolha entre a ferramenta de pensamento clínico (individual) versus a ferramenta de saúde pública (sistêmica). Com o início das aprovações das vacinas de RNA para utilização em adolescentes, e brevemente em crianças, surgem opiniões que utilizam o modelo clínico de risco-benefício, argumentando contra a vacinação destes jovens na pandemia de COVID-19. Embora estas vacinas tenham eficácia > 90%, esta propriedade aplicada a pacientes de baixo risco (jovens) resulta em um benefício individual (redução absoluta ou número necessário a tratar) pouco impactante. Aliás, toda vacina tem usualmente um grande NNT, principalmente as que são aplicadas fora de uma pandemia. 


Embora sujeito a críticas por sua metodologia, usarei um recente artigo (pre-printpara fazer um exercício de numerologia. Os autores estimaram 62 hospitalizações por COVID-19 por milhão de adolescentes não vacinados e 162 miocardites por milhão de adolescentes vacinados. Assim, calculo um NNT de benefício da vacina em torno de 16.000, porém um NNH para causar uma miocardite em torno de 6.000. Ou seja, risco > beneficio. 


Embora pareça racional, este pensamento desconsidera o caráter sistêmico da pandemia, reduzindo a decisão ao nível do indivíduo. Para entender melhor o pensamento sistêmico, podemos usar a analogia de que, em problemas sistêmicos, nosso doente é a população com uma única entidade. A este doente, desejamos administrar um remédio que trate todas as suas células, fazendo com que o todo fico curado. As células desta entidade populacional são as pessoas. Na pandemia, o que precisamos curar é a população. 


OBS 1: não estou querendo reduzir pessoas a células, foi apenas uma analogia. Pessoas tem direitos humanos, células não ...


Este pensamento torna escalável o benefício da vacinação de um grupo populacional, para além do indivíduo vacinado. Em se considerando que o paciente é esta entidade populacional, o número necessário a tratar de populações (NNTp) para que haja um benefício é 1. Ou seja, a existência de algum impacto favorável de jovens vacinados na pandemia, em relação ao contrafactual de jovens não serem vacinados, é quase uma garantia (NNT = 1). 


NNTp = 1 ocorre porque benefícios de ações sistêmicas são menos incertos do que ações individuais. É uma questão de probabilidade: o paciente é um sujeito, candidato a um evento em um experimento de milhões de indivíduos. Já o efeito na população resulta da média do que acontece com os indivíduos, e uma média é muito mais previsível do que um evento isolado: as variabilidades naturais se anulam na média (Lei dos Grandes Números). 


OBS 2: é importante salientar que eu não estou propondo abolir o raciocínio clínico para vacinas, nem a escolha individual. A escolha individual é cabível, porém dentro de quatro paredes de um consultório, caso o paciente demonstre preocupações com condições clínicas específicas, aspectos religiosos, valores e preferências. Em políticas de saúde deve prevalecer a preferência da sociedade, e esta precisa primar pela racionalidade coletiva. 


Outro aspecto digno de nota é que mesmo que fosse uma questão de se aplicar o pensamento clínico individual, as probabilidades do benefício e risco são de escalas tão pequenas que não faz sentido comparar probabilidades. Se fizéssemos, estaríamos pesando nos processos de decisão duas variáveis sem peso algum, pois na imensa maioria das vezes, nada aconteceria (nem benefício, nem malefício). Sendo assim, no caso de uma decisão clínica, esta não deve se basear em probabilidade, mas na decisão compartilhada e influenciada pela preferência do paciente.


Temos visto se repetir esse equívoco durante a pandemia, até por partes de gestores de saúde pública. Um exemplo foi a demanda para que o CONITEC analisasse a implementação de ECMO como tratamento de COVID-19, em meio a uma pandemia. Uma proposta de tratamento individual, porém de impacto potencialmente deletério ao frágil sistema complexo que rege a saúde pública em um momento de caos. 


Conclusão


Em processos de decisão, o primeiro passo é identificar qual a dimensão do problema e depois escolher o modelo mental adequado. Profissionais de saúde usam do paradigma clínico em seu cotidiano, mas precisam trocar de ferramenta de pensamento quando necessário. A mais importante tecnologia em saúde pública é o pensamento, ou seja, a gestão mental do conhecimento


OBS: Esse texto foi escrito antes da sugestão do Ministro da Saúde de que adolescentes não deveriam ser vacinados devido ao risco de complicações. Julguei que o texto fala por si só, sendo desnecessário e redundante inserir um comentário sobre o fato desta semana.


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quarta-feira, 11 de agosto de 2021

O que é Odds Ratio Proporcional?

O recente estudo publicado no New England Journal of Medicine “demonstrando” suposta eficácia da anticoagulação plena em paciente com COVID-19 moderado foi tema do nosso podcast da semana passada. Naquele podcast, apresentamos argumentos múltiplos para a conclusão de que a publicação se trata de um “anti-estudo”: o tipo que nos afasta da verdade, desrespeitando a “constituição do conhecimento”. O que discutirei nesse texto não é um dos múltiplos fatores que reduzem a veracidade deste estudo. O objetivo é discutir a interpretação do odds ratio proporcional, uma medida de associação menos intuitiva do que as tradicionais odds ratio, risco relativo ou hazard ratio, e que deixou dúvida em muitos colegas.

A escolha desta medida de associação pelo estudo em questão foi estatisticamente adequada, portanto não estamos diante de um viés de análise de dados. O uso desta medida de associação incrementa o poder estatístico, traz precisão ao estudo, encurtando seus intervalos de confiança, reduzindo erros aleatórios do tipo I e II. Portanto, a discussão do odds ratio proporcional não se trata de avaliação de veracidade. Mas cabe ao consumidor da ciência avaliar também a relevância da conduta, o impacto, o tamanho de efeito. E o aspecto pouco compreensível desta medida dificulta esta tarefa. 


Portanto, neste texto mostrarei como interpretar esta medida, mostrando que uma análise pode evidenciar um fenômeno verdadeiro, porém pouco relevante. 


Ensaios clínicos são modelos de estudos que acompanham longitudinalmente pacientes inicialmente virgens do desfecho, permitindo o cálculo de risco ou hazard. Portanto, usualmente se utiliza risco relativo ou hazard ratio. No entanto, quando se faz uso de regressão logística tradicional (desfecho dicotômico), a equação matemática nos fornece o odds ratio. No entanto, neste estudo o desfecho primário não é dicotômico, é numérico, representado pelos dias livres de suporte ventilatório ou circulatório. Assim, um paciente poderia ter a pontuação de 0 dias ou um máximo de 21 dias. Caso o paciente morresse, seria a ele atribuído uma pontuação de -1, para caracterizar este como um paciente pior do que aquele que ficou em suporte circulatório todos os primeiros 21 dias, mas sobreviveu. 


Originalmente esta é uma variável numérica discreta (pois não tem decimais entre os dias), que passa a ser considerada ordinal no modelo de regressão logística. Portanto, o desfecho é ordinal com 22 posições possíveis (-1 a 21) e não dicotômico (sim ou não). E para este tipo de desfecho ordinal se usa regressão logística ordinal cujo resultado é apresentado em odds ratio proporcional. 


Até agora expliquei o porquê do uso deste tipo de odds ratio. Agora vamos discutir como interpretar, o que o odds ratio proporcional de "1.27 (95% IC, 1.03 to 1.58)" apresentado pelo artigo e que indica proteção da terapia de anticoagulação. Lembrando, o odds ratio tradicional é simplesmente a chance (P/1-P) de um evento acontecer no grupo tratamento / chance do evento acontecer no grupo controle. Portanto um valor < 1 significa proteção. Mas nesse caso os autores inverteram, colocaram o tratamento no denominador e o controle no numerador. Portanto, OR = 1,27 significa 27% de aumento de chance de um prognóstico melhor. Se fosse um odds ratio tradicional, indicaria 27% maior chance do de benefício do grupo tratamento. Mas no caso do OR proporcional não é bem assim, pois não há evento dicotômico. 


O que a regressão logística faz, em seus “bastidores”, é criar diferentes definições de desfechos dicotômicos baseados em todos os possíveis pontos de corte da variável ordinal que definiria um evento. Por exemplo, se eu usar o ponto de corte de 10 dias livre de oxigênio, pacientes com < 10 dias serão evento e pacientes com 10 dias ou mais serão não evento. Isso é feito com todos os pontos de corte, gerando vários odds ratios para cada definição. O odds ratio proporcional é uma média destes odds ratios tradicionais. 


Este procedimento aumenta o poder estatístico em encontrar alguma diferença verdadeira, pois estamos testando de várias formas, do ponto de corte mais baixo ao ponto de corte mais alto. Observe que aqui não existe uma tendência de usar algum ponto de corte que mais favoreça o resultado, se utiliza todos. Por outro lado, o odds ratio pode ser resultado de dicotomizações que criaram diferenças, mas os pacientes ainda podem ser muito parecidos se considerássemos a variável como numérica (comparação do número de dias entre os grupos). Por exemplo, pacientes < 10 podem ser todos 9 dias, e pacientes > 10 podem ser todos 11 dias. 


E observe que é exatamente isso que acontece neste estudo. Na figura acima, as cores representam a proporção de pacientes em cada número de dias, veja como as duas barras coloridas são quase idênticas. Do mesmo jeito, o gráfico abaixo mostra a proporção de pessoas em cada posição da variáveis ordinal. Observem como as barras são muito parecidas. Portanto, estamos diante de um número de dias muito parecido entre os dois grupos, embora estatisticamente significante. Na verdade, a tradução para relevância clínica desta achado é um tamanho de efeito muito pequeno, não bem representado pelo odds ratio proporcional. 




Se já existe alguma dificuldade em interpretar a relevância clínica do desfecho “dias sem oxigênio”, fica mais difícil intuir a partir do odds ratio proporcional. Portanto, este tipo de desfecho, aliado a este tipo de medida de associação podem ter um valor em prova de conceito, mas dificilmente em demonstrar a relevância de um efeito que justifique uma recomendação médica. Principalmente em se tratando de anticoagulação. 


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quinta-feira, 15 de julho de 2021

Efetividade da CoronaVac no Chile: mensagens das entrelinhas

 



O estudo de efetividade da vacina CoronaVac, publicado no New England Journal of Medicine na semana passada, merece ser discutido não apenas por sua conclusão geral, mas também por suas nuances. Trata-se de uma coorte de 10 milhões de pessoas, em que foram comparados 4 milhões de plenamente vacinados versus 5 milhões não vacinados no período de 84 dias do início da campanha do Chile. Na amostra de vacinados a taxa de incidência de COVID sintomático foi 68% menor em relação aos não vacinados  (0,1340 versus 0,3019 por 100 pessoas-dia) e a taxa de mortalidade por COVID 86% menor neste grupo (0,0044 versus 0,0045 por 100 pessoas-dia). Vale salientar que não houve diferença destes resultados entre idosos e jovens. 

Este é um estudo de alta qualidade, sem vieses e com imensa precisão. Mas como um estudo não randomizado, aberto, com pequeno tempo de seguimento pode ser considerado alto nível de evidência? A resposta está no objetivo do estudo, que não é testar se a vacina funciona, mas sim avaliar se quem é vacinado apresenta tem menos doença e morte. Embora estes objetivos se pareçam, não são a mesma coisa. 


Observem atentamente como eu descrevi o resultado do estudo no parágrafo anterior: não falei em “redução de mortalidade” (efeito), preferi apenas descrever que as incidências foram menores nos vacinados. Mas como podemos falar de efetividade se não podemos inferir causalidade? Podemos, mas não devido a este estudo. Podemos falar em efetividade pois a eficácia foi demonstrada previamente por um estudo randomizado e aparentemente de boa qualidade. A conclusão por efetividade em um dado estudo depende do conhecimento prévio da eficácia. 


Reforço esse conceito pois é comum a conotação de que o estudo de "efetividade" (mundo real) é a confirmação da eficácia. Como se um ensaio clínico positivo mostrasse algo promissor, mas que a dúvida só seria resolvida quando o tratamento fosse testado no mundo real. Infelizmente, o mundo real é uma fábrica de enganos, portanto o estudo de efetividade não serve para confirmar a propriedade de eficácia do tratamento. 


Precisamos entender porque efetividade é diferente de eficácia. A eficácia depende apenas do efeito direto do tratamento, por isso precisamos controlar todas as outras variáveis, isolamos esse efeito. Por outro lado, a efetividade é um conceito ecológico, depende do tratamento, do ambiente, do comportamento das pessoas e de aspectos sociais. A pergunta de efetividade não é se o tratamento funciona no mundo real, é se o paciente que recebe o tratamento tem melhor desfecho no mundo real. Fazendo um exercício de pensamento, imaginemos que vacinados passassem a ignorar a necessidade de distanciamento social ou uso de máscaras por se sentirem mais seguros, e por isso experimentassem um aumento na incidência de COVID. Não é que a vacina não tenha funcionado (eficácia) e que outros fatores gerados pela vacinação (percepção de segurança) causaram mais COVID. 


Observem que quando mencionei aspectos ambientais, comportamentais e sociais, não falei em aspectos biológicos. Poderia ter mencionado, mas isso não é uma razão frequente de efetividade ser diferente de eficácia. Muitos acham que o fato da população ser restrita no ensaio clínico, o resultado tem menor validade no mundo real. Esse pensamento biológico é contradito pela raridade do fenômeno de interação, por isso a preocupação com efetividade não é o tipo de paciente. Ou pelo menos, é pouco provável que o tipo de paciente interfira na efetividade. O pensamento relativo ao tipo de paciente se refere mais ao raciocínio clínico de individualização, não ao conceito de eficácia. 


Portanto, é importante que entendamos o significado verdadeiro deste trabalho, o que nos permite interpretar melhor os resultados. 


O Resultado


Interessante notar que a efetividade de 68% é maior do que a eficácia de 50% demonstrada no ensaio clínico brasileiro da CoronaVac (ainda não foi publicado na íntegra). Por quê? Difícil precisar, mas podemos especular. Efetividade depende do ambiente. Um ambiente em que parte significativa da população geral está vacinada, há menos vírus circulante. 


Imaginem uma pessoa que entra em um ônibus e tem contato com muitas pessoas, alguns infectados assintomáticos. Nos dias de hoje (vacinação) estes alguns são em menor número, a carga viral recebida pode ser menor, e taxa de ataque (probabilidade de uma pessoa ficar doente quando entra em contato com ambiente doente) de vacinados pode ser menor nos dias atuais do que em uma época em que não havia campanha vacinal, época dos ensaios clínicos. Assim, a vacina consegue prevenir mais o ataque quando a carga de contato com pessoas infectadas é menor. Mais um exemplo interessante da diferença de efetividade e eficácia. 


Devemos reconhecer também que esta diferença pode se dever à imprecisão do ensaio clínico, de menor tamanho amostral.


E as variantes? Os autores relatam um estudo chileno, desta mesma época, que estimou em torno de 44% dos casos de COVID decorrente das variantes P1 ou B117. Aparentemente esta variação ambiental não fez grande diferença. Boa notícia. 


Nuances


Observem o impacto de grande tamanho amostral na precisão do estudo. Vejam o que um estudo de 10 milhões de pacientes faz com o intervalo de confiança. Ao dizer que a efetividade foi 65.9%, o intervalo de confiança 95% foi de 65.2% a 66.6%. Quase exato. Só para comparar, deixando as controvérsias de lado, a eficácia desta vacina no ensaio clínico brasileiro foi de 51%, mas o intervalo de confiança foi enorme = 36% a 62%). Não que tenha sido um estudo de pequeno tamanho amostral, porém a incidência do desfecho não é tão alta. 


Como conseguiram uma coorte de milhões de pacientes. Os chilenos usaram o registro dos pacientes do sistema público de saúde (Fondo Nacional de Salud), que cobre 80% da população. Neste organizado sistema, há o registro de quem é vacinado e o registro de quem ficou doente. Bom de ver. 


Mas cuidado, se um estudo enviesado (inacurado) tiver milhões de pacientes, o erro sistemático do estudo terá muita precisão, ou seja, o falso vai parecer muito verdadeiro. Por isso, cuidado com estudos observacionais de grande base de dados, que desejam afirmar eficácia. Não importa que o tamanho amostral seja grande, pois precisão não anula viés. São tipos de erros diferentes. 



Comunicação de Ciência


Parte dos chilenos tem sido vacinados com as vacinas da Pfizer, baseadas em RNA. Sabe-se que tipo de vacina é o que tem apresentado os melhores resultados de eficácia nos ensaios clínicos, em torno de 95%. O resultado da efetividade da vacina da Pfizer não está descrito no texto principal do artigo aqui discutido. Porém os autores documentaram nos anexos do artigo: foram 490.000 pessoas plenamente vacinadas pela Pfizer neste período e a comparação com o grupo de pessoas não vacinadas demonstrou 93% de efetividade (95% IC = 91.5%-93.5%) para COVID-19 e 91.0% (64.0%-97.8%) para morte. 


A escolha em deixar transparente estes achados, porém não fazer uma análise comparativa com a CoronaVac mostra a verdadeira postura científica dos autores. Digo isto pois cientista não é apenas quem faz pesquisa, mas é o que sabe o que, quando e como comunicar. Ciência é a uma aventura exploratória que visa beneficiar a sociedade. Portanto, o cientista deve saber o que é relevante comunicar e as consequências da sua comunicação. 


Enfocar na comparação das vacinas daria um trabalho mais completo e provocativo, com maior probabilidade de publicação em uma grande revista e mais citações. Mas esta não seria uma informação útil socialmente, pois a questão não está em saber que vacina é a de preferência. Não é uma questão de prescrição. Portanto, os autores preferiram fazer algo mais simples e útil, analisando apenas a vacina que despertava mais dúvida, e evitando que a comparação ancorasse negativamente a percepção da efetividade da CoronaVac. 


Ter colocado o resultado da Pfizer no anexo e não ter feito a comparação direta é um exemplo de que ciência não se trata apenas de produção e publicação. Trata-se também de saber o tom da música. O melhor tom para beneficiar a sociedade. 


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quinta-feira, 22 de abril de 2021

Desfechos Substitutos: conceitos originais


Embora eu tenha mencionado na introdução deste conjunto de textos que o conceito de “desfecho” remete à substituição da ideia genérica de eficácia, a terminologia “desfecho substituto” (surrogate) tradicionalmente utilizada em medicina é mais específica: diz respeito a medidas fisiológicas (pressão arterial), laboratoriais (colesterol) ou de exames de imagem (densitometria óssea) que não são eventos factuais na vida de um paciente. O paciente não sente, nem sofre um desfecho substituto. 

 

Neste caso, o desfecho substituto não necessariamente marca o curso da doença, portanto princípio da interconexão não se aplica na relação entre desfechos substitutos e clínicos. São inúmeros os exemplos históricos, muitos comentados nesse Blog, de melhora de marcadores não clínicos que não corresponde a qualquer impacto clínico positivo ou até mesmo possuem impacto clínico negativo. 

 

Portanto, estudos que avaliam desfechos substitutos servem como prova conceitual de um efeito intermediário, que pode ser necessário para a eficácia clínica, porém não suficiente. A importância do teste conceitual em desfechos intermediários está em fazer um pesquisador desistir de avançar para testes clínicos quando o estudo é negativo (redução da probabilidade pré-teste) ou em estimular o pesquisador a avançar para testes clínicos quanto o estudo é positivo (aumento da probabilidade pré-teste). 

 

Portanto, não devemos criticar cientificamente estudos de desfechos substitutos, o que precisamos criticar é o uso destes estudos para recomendação clínica. 

 


Definição Substituta de Doença 


Às vezes, a própria definição da doença é substituta e não clínica. Nestes casos, alguns tendem a interpretar desfechos substitutos como clínicos, o que é um erro. Por exemplo, osteoporose ou diabetes. 


A definição de osteoporose é baseada em densitometria óssea (exame) e a de diabetes é baseada na glicemia > 125 mg/dl. Isto promove argumentos de que a melhora da densidade óssea para níveis que definem acima da definição da doença representa um beneficio clínico. Assim como reduzir a glicemia para valores normais seria a prevenção de diabetes. Há muitos anos comentamos nesse Blog sobre um estudo com hipoglicemiante que sugeria "redução da incidência de diabetes". São pensamentos  inadequadamente utilizados a fim de superestimar o impacto de ensaios clínicos. 

 

Por fim, devo salientar exceções nas quais resultados de desfechos substitutos devem nos influenciar clinicamente. Trata-se de quando (1) o desfecho substituto é validado por estudos prévios e (2) a proposta seja em usar o tratamento avaliado como adjuvante, ao invés de primeira escolha. 

 

Por exemplo, o valor da pressão arterial é um desfecho substituto validado em relação a prevenção de acidente vascular cerebral. É reprodutível o resultado de ensaios clínicos cuja intervenção reduziu a pressão e preveniu AVC. Sendo assim, se o paciente já estiver usando 2-3 drogas de eficácia clinicamente comprovada, é aceitável que a terceira ou quarta droga possa ser uma que tenha apenas efeito comprovado na redução do valor da pressão arterial. É o que acontece com anti-hipertensivos como clonidina ou minoxidil. 

 


Nem todo Desfecho Laboratorial é Substituto

 

Há situações específicas em que o desfecho laboratorial não é substituto do clínico, podendo ser considerado o desfecho de interesse final. Imaginem uma nova solução que repõe potássio de forma mais prática. Neste caso, ao comparar com a estratégia tradicional, não precisamos demonstrar o impacto clínico da nova reposição de potássio. O resultado do potássio é suficiente para preferirmos essa estratégia. Isso poderia ser também aplicado para duas estratégias de reposição de ferro no controle da anemia crônica. O resultado da hemoglobina pode ter o papel de desfecho final. 

 

Observem que este conceito se aplica quando o dado laboratorial é o problema per si. Por outro lado, quando o dado laboratorial é um marcador do problema, este deve ser sempre considerado um desfecho substituto. Creatinina nunca será um desfecho final, pois o problema não é a creatinina, este é apenas um marcador de insuficiência renal. Nós não corrigimos a creatinina. Nós corrigimos a disfunção renal.

 

Importante salientar que não proponho que quando o desfecho laboratorial for o problema per si este deva ser sempre considerado desfecho final. Isto deve ser aplicado em casos de exceção, quando a correção do dado é necessariamente benéfica. Corrigir densidade óssea medida por exame de imagem não é necessariamente benéfica, se faz necessário o desfecho clínico. 


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Próximas Postagens da Séria Desfechos:


Profecias Autorrealizáveis
Desfechos Composto
Desfechos Compostos Antagônicos
Desfechos Cumulativos
Desfechos Secundários - pra que servem?


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terça-feira, 13 de abril de 2021

COVID-19: ECMO Baseado em Evidências

 


Ao conversar com um paciente sobre sua doença, precisamos de sensibilidade. Ao conversar com a sociedade sobre questões de saúde, faz-se necessário extrema responsabilidade para reconhecer o impacto exponencial de ideias mal calibradas.

Nos últimos dias, no contexto do tratamento de COVID-19, surgiu no Brasil uma epidemia de artigos jornalísticos a respeito da tecnologia apelidada de ECMO (extracorporeal membrane oxygenation), que substitui temporariamente pulmões comprometidos agudamente. 

 

Fenômeno surgido na era COVID-19, a discussão de tratamentos específicos com a população geral varia de condutas fantasiosas a tecnologias benéficas. ECMO se aproxima mais desta última categoria, embora com nuances. Precisamos considerar que discussões técnicas, de difícil racionalização até  por médicos, correm o risco de serem mal compreendidas pela sociedade. 

 

A ciência da economia comportamental indica que a espécie humana tende a superestimar o benefício de soluções, o que se reproduz em médicos, que inconscientemente superestimam a “eficácia” de tratamentos. Este fenômeno se torna escalável quando traduzido para a população geral. Desta forma, faz-se necessário recalibrar realisticamente o benefício do ECMO no contexto da pandemia de COVID-19. 


Eficácia do ECMO


ECMO é um tratamento compatível com o conceito de plausibilidade extrema, respeitando o “paradigma do paraquedas”? Se fosse, não haveria ensaios clínicos randomizados avaliando a eficácia do ECMO em pacientes com insuficiência respiratória severa aguda. 

 

Nesta avaliação, não podemos confundir desfechos intermediários e desfecho final. ECMO é uma terapia de probabilidade extrema para o desfecho intermediário de melhora da oxigenação do sangue. No entanto, para o desfecho sobrevida, duas razões dão suporte à equipoise (incerteza) que torna ética a randomização para grupo controle. Primeiro, o sucesso final depende da melhora global do paciente que permita o desmame da tecnologia em algum momento. Segundo, o desfecho óbito é de caráter composto, resultante do combinado de óbito direto da doença e óbito indireto, aquele decorrente da cascata de consequências da intervenção. ECMO não é uma intervenção isenta de riscos. 

 

ECMO poderia se adequar à variação do paradigma da probabilidade extrema que denomino de “assimetria do curso clínico inexorável”: quando há certeza do desfecho fatal na ausência de intervenções, um incerto benefício de alguma conduta supera o malefício de quem “não tem mais nada a perder”. No entanto, o uso de ECMO para insuficiência respiratória grave não se adequa a esse paradigma, pois a indicação procura alinhar gravidade e potencial de reversão. Não se aguarda o curso clínico inexorável. Por este motivo, a sobrevida do grupo controle em ensaios clínicos gira em torno de 50%, reforçando que não estamos diante de uma condição inexorável.

 

Entendo que experiências clínicas "sintam" exemplos de vidas salvas em uma visão retrospectiva. Mas não podemos perder de vista a necessidade do contrafactual e o caráter probabilístico (futuro após intervenção) do conceito de letalidade de uma doença.

 

Foram dois ensaios clínicos randomizados que avaliaram ECMO no tratamento de acometimento pulmonar agudo. 

 

O primeiro estudo (CESAR trial, Lancet 2009) randomizou 180 pacientes com “insuficiência respiratória severa potencialmente reversível” para ECMO ou controle. Neste estudo aberto, o desfecho primário foi o composto de morte (objetivo) ou incapacidade severa (subjetividade sujeita a viés de aferição em estudo aberto) no seguimento de 6 meses. Pacientes randomizados para ECMO foram transferidos para um mesmo hospital de excelência, enquanto os demais continuavam em suas unidades de origem, caracterizando um forte exemplo de viés de desempenho. Apesar de originalmente dimensionado para 240 pacientes, no decorrer do estudo o tamanho amostral foi recalculado para 180 pacientes, baseado em aumento da redução de risco pretendida. O CESAR trial foi um estudo positivo a favor do ECMO (37% vs. 53% de incidência do desfecho combinado, P = 0.03). Um estudo positivo, com alto risco de viés e moderado risco de erro aleatório.

 

O segundo estudo (EOLIA Trial, NEJM 2018) randomizou 250 pacientes, definiu morte como desfecho primário e não transferiu pacientes, caracterizando baixo risco de viés. No entanto, este estudo planejara a inclusão de 330 pacientes, sendo interrompido precocemente com 250 pacientes e uma incidência de morte menor do que a premissa do cálculo amostral, aumentando o risco de erro aleatório. O EOLIA trial não mostrou diferença estatisticamente válida (P = 0.09; 35% vs. 46%), sendo um estudo de conclusão “negativa”. Vale salientar que, na análise primária por intenção de tratar, houve 28% de crossover do grupo controle para ECMO. 

 

Desta forma, temos dois estudos de tamanho amostral moderado, ambos do tipo exploratório: um positivo, porém com alto risco de viés e outro de baixo risco de viés, porém negativo. 

 

É válido suspeitar que o segundo estudo sofreu do erro tipo II. De fato, essa probabilidade é maior do que o limite aceitável de 20% (erro Beta). Por outro lado, a razoável probabilidade do erro tipo II não se reverte em pequena probabilidade do erro tipo I, caso fôssemos afirmar eficácia baseada em dados não estatisticamente significantes, em estudo de pequeno tamanho amostral. 


Efetividade do ECMO


Terapias de alta tecnologia e complexo expertise tendem a apresentar efetividade (mundo real) menor do que a eficácia conceitual demonstrada cientificamente. Desta forma, a incerteza da eficácia se multiplica na incerteza de efetividade, especialmente no contexto de uma pandemia, onde pacientes como estes estão espalhados por todos os cantos do país. 

 

Podemos evitar a dicotomia da discussão terapia ineficaz versus eficaz. Porém precisamos reconhecer a incerteza dos conceitos de eficácia e efetividade neste caso. Esta percepção de incerteza não tem sido veiculada à sociedade brasileira quando ECMO é colocado como objeto de desejo para o tratamento do COVID. 

 

O Caráter Probabilístico dos Tratamento Individuais


A partir deste ponto, continuarei a análise na condição hipotética de que ECMO tem eficácia comprovada, e que todas as condições práticas existirão em prol da sua efetividade. 


Há grande diferença entre em tecnologias de efeito sistêmico (tratam a pandemia, impacto escalável) versus tecnologias de efeito individual. Em condutas de efeito sistêmico, o paradigma é multiplicativo: uma intervenção aplicada a uma pessoa (um indivíduo vacinado) beneficia uma coletividade de pessoas. Por outro lado, em tratamentos individuais (ECMO), o efeito é limitado ao paciente que o recebe. E este efeito se reduz a uma probabilidade: precisamos utilizar o tratamento em muitos pacientes para salvar um deles. 

 

Dois fenômenos justificam o caráter probabilístico dos tratamentos salvadores. Primeiro, nenhum é 100% eficaz. Segundo, nem todas as pessoas elegíveis para o tratamento iriam morrer sem o tratamento. 

 

Recente revisão sistemática publicada no Intensive Care Medicine (2020) confirma que são apenas dois ensaios clínicos, e compila os resultados em meta-análise: a utilização de ECMO em doença respiratória severa promove 25% de redução relativa do risco de óbito. 

 

Observem a importância de elucidar para a sociedade que aqui não se trata de uma conduta determinística: (1) em pacientes elegíveis que não utilizaram ECMO, a letalidade foi 48% (nem todos morrem), reduzida a 36% nos que receberam ECMO (nem todos são salvos). Na realidade, tratamentos são “pílulas de probabilidade”, não garantias de salvamento em pacientes de curso clínico inexorável. Essa é a evolução no inocente paradigma determinístico para o realista paradigma probabilístico. 

 

Além disso, o intervalo de confiança da medida sumária da meta-análise, embora válido estatisticamente, indica muita imprecisão, podendo a redução relativa do risco variar de 40% a 6%. Há incerteza quanto ao tamanho do efeito. 

 



Análise Econômica

 

Ao pensar na vítima identificável, desejaremos com razão usar de todos os esforços. Por outro lado, em saúde coletiva visamos o benefício sistêmico e neste precisamos considerar um dos pilares do pensamento econômico, o “princípio de custo-oportunidade”: uma escolha implica em perda de oportunidade de outras escolhas. 

 

A publicação do estudo CESAR (realizado no Reino Unido) foi acompanhada da análise de custo-efetividade, que indicou uma razão incremental de custo-utilidade de 19.000 libras por ano de vida com qualidade. Considerando a incerteza desta estimativa, e o limite de custo-efetividade utilizado no Reino Unido (20.000 libras) estimou-se que a terapia teria 50% de probabilidade de ser custo-efetiva naquele sistema de saúde (incerteza). O Brasil não possui limite pré-definido de custo-efetividade, mas utilizando a sugestão da Organização Mundial de Saúde de ajustar para o PIC per capita, o custo-efetividade em nosso país se torna ainda mais incerta.

 

Além da custo-efetividade, há o impacto orçamentário (custo individual x número de pacientes). Vamos imaginar a situação hipotética de que ECMO estivesse implementando no SUS e que fosse factível em qualquer hospital. Segundo, vamos imaginar que dentre os 350.000 mortos até então, 20% tivessem indicação de ECMO. Terceiro, vamos estimar o custo do ECMO em 30.000 reais. Assim, o impacto orçamentário seria de 2,1 bilhões, o que sozinho representa 1/3 do orçamento da união para tratamentos de alto custo (Componente Especializado da Assistência Farmacêutica - CEAF).

 

 Conclusão

A discussão quanto à oferta de ECMO pelo maior sistema público de saúde do mundo (SUS) é complexa e qualquer decisão tem consequências não intencionais de diferentes naturezas. Essa não é uma conversa a ser reduzida a minutos de cobertura jornalística. 


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