sábado, 10 de agosto de 2019

Maconha Baseada em Evidências


Recentemente a ANVISA colocou em consulta pública a liberação do registro de medicamentos a base de cannabis. Em reação, um ministro do atual governo criticou a iniciativa como um “primeiro passo para legalizar a maconha no Brasil”. Respondeu o diretor da ANVISA que isso nada tem a ver com uso recreativo, que o intuito é “aumentar acesso a medicamentos a base de cannabis” e que “não há nenhum tipo de risco do uso de Cannabis medicinal". 

Merece discussão, pois ao denominar cannabis de “medicamento” o diretor gera a conotação de eficácia e ao falar em “nenhum risco” surge uma conotação de segurança.

Portanto, cabe-nos questionar, há comprovação científica para eficácia e segurança da maconha nas inúmeras indicações propostas?

Prescrever uma substância é um ato profissional, que deve ser respaldado na comprovação de qualidade do produto. A qualidade de uma droga é sua eficácia. Já o uso recreativo é opção de cada um, não é um ato médico, requerendo menor grau de respaldo da eficácia. 

Eu posso optar por fazer uma caminhada diária pela orla, ao lado de amigos, e esse agradável hábito não precisa ser precedido pela comprovação de benefício clínico. Já a prescrição de uma programa de exercício com fins de reabilitação clínica necessita de comprovação.

Portanto, embora o uso medicinal pareça ser algo mais restritivo (menos preocupante socialmente) do que a liberação do uso recreativo, o primeiro requer maior nível de evidência. O uso medicinal tem maior ônus da prova do que o uso recreativo. 

Precisamos analisar a probabilidade científica do cannabis ser eficaz. Sabemos que isso depende das plausibilidade biológica que determina a probabilidade pré-teste da hipótese e das evidências científica que comprovam a ideia (ensaios clínicos randomizados). 

Primeiro vamos à plausibilidade. Em minha última postagem comentei da pequena plausibilidade  biológica da acupuntura em melhorar angina do peito através da inserção de agulhas em local remoto ao coração. Cannabis é diferente disso, há uma evidente plausibilidade biológica para sua eficácia.

A plausibilidade está na existência de receptores canabinoides que servem para serem estimulados por endocanabinoides que nosso organismo produz. Portanto, ao administrar cannabis estamos estimulando um sistema fisiológico existente. É a administração de uma substância cuja natureza é feita para reagir a ela. 

No entanto, plausibilidade não garante eficácia. Plausibilidade apenas gera hipótese de eficácia. Sendo assim, o diretor não pode confiar nos receptores canabinoides, precisa de evidências para respaldar seu argumento de eficácia. 

Sendo assim, fui à pesquisa. Teria que ser uma extensa pesquisa, pois as indicações do cannabis são inúmeras, a exemplo de esquizofrenia, dor neuropática, doença de chron, colite ulcerativa, epilepsia, demência, náusea durante quimioterapia, fibromilagia, artrite reumatóide, esclerose múltipla, Síndrome de Tourette. Achei que seria um esforço hercúleo analisar cada uma dessas indicações. No entanto, começou a ficar fácil quando pesquisando revisões sistemáticas na Cochrane percebi que as conclusões eram sempre as mesmas. 

Esquizofrenia: Results are limited and inconclusive due to the small number and size of randomised controlled trials available and quality of data reporting within these trials.

Doença de Chron: The effects of cannabis and cannabis oil on Crohn's disease are uncertain. Thus no firm conclusions regarding the efficacy and safety of cannabis and cannabis oil in adults with active Crohn's disease can be drawn. 

Colite Ulcerativa: The effects of cannabis and cannabidiol on UC are uncertain, thus no firm conclusions regarding the efficacy and safety of cannabis or cannabidiol in adults with active UC can be drawn.

Dor Neuropática: The potential benefits of cannabis-based medicine (herbal cannabis, plant-derived or synthetic THC, THC/CBD oromucosal spray) in chronic neuropathic pain might be outweighed by their potential harms. The quality of evidence for pain relief outcomes reflects the exclusion of participants with a history of substance abuse and other significant comorbidities from the studies, together with their small sample sizes.

Demência: This review finds no evidence that cannabinoids are effective in the improvement of disturbed behaviour in dementia or in the treatment of other symptoms of dementia.

Náusea por Quimioterapia: Methodological limitations of the trials limit our conclusions and further research reflecting current chemotherapy regimens.

Fibromialgia: We found no convincing, unbiased, high quality evidence suggesting that nabilone is of value in treating people with fibromyalgia.

Artrite Reumatóide: There is currently weak evidence that cannabis are all superior to placebo in reducing pain in patients with RA.

Esclerose Múltipla: The absolute and comparative efficacy and tolerability of pharmacotherapies to treat ataxia in MS are poorly documented and no recommendations can be made to guide prescribing. 

Síndrome de Tourette: Not enough evidence to support the use of cannabinoids in treating tics and obsessive compulsive behaviour in people with Tourette's syndrome.

Epilepsia: No reliable conclusions can be drawn at present regarding the efficacy of cannabinoids as a treatment for epilepsy. 

Na realidade, esta é a única condição que podemos classificar como promissora. Há 2 ensaios clínicos randomizados, de resultado positivos para epilesias refratárias, publicados no NEJM (1, 2). Estes são estudos de razoável qualidade, porém ainda preliminares em se considerando o tamanho amostral e imprecisos em relação ao tamanho do efeito. Analisamos estes estudos no nosso canal do YouTube, vide video abaixo

E quanto à segurança mencionada pelo diretor? Esse link mostra uma revisão canadense, que menciona 11 revisões sistemática sobre o assunto, sendo consistente a comprovação de que existem  eventos adversos. Afinal, a existência do preço (consequências não intencionais) é sempre uma garantia de qualquer conduta, enquanto o retorno (benefício) é uma possibilidade. Todo investimento é garantia de custo e possibilidade de ganho. Este pensamento está no cerne da filosófica por traz da economia clínica.

Em resumo, "Compared to placebo, medical cannabinoids cause multiple different adverse events in patients, from visual disturbance or hypotension (1 in 3-10) to hallucination or paranoia (1 in 20). Stopping due to adverse effects occurs in 1 in every 8-20 patients. Regardless of the type of medical cannabinoid used, adverse events are common and likely underestimated."

Eventos adversos não tornam o uso medicinal, nem mesmo recreativo, uma contra-indicação, pois tudo na vida tem seu preço. No entanto, não está de acordo com evidências científicas dizer que “não há nenhum tipo de risco do uso de Cannabis medicinal".

Mas voltando ao tema, como podemos falar em liberação de algo para fins medicinais, sem que o efeito medicinal seja comprovado? 

Na verdade, o registro do produto da ANVISA teve o (bom) intuito de regular quanto à qualidade do produto, visto que há inúmeras variações de produtos que podem por formas alternativas estarem disponíveis aos pacientes. Esta regulação se encaixa apenas no intuito de garantir um mínimo controle de qualidade do produto. Mas não o valida como algo eficaz ou seguro. Não valida uma prescrição médica. 


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Videocast sobre o Tema:















segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Acupuntura é melhor do que stent no tratamento da angina estável?


Como cardiologista, não foi fácil aceitar o resultado negativo do ensaio clínico ORBITA há dois anos. Angioplastia coronária com stent não controla a angina? O que me salvou foi minha tendência ao ceticismo científico e amor pela hipótese nula. Sendo assim, consegui na época escrever um filosófico post analisando o valor do ORBITA. Para o tamanho do efeito assumido naquele ensaio, a angioplastia não é eficaz e devemos reconhecer o papel do placebo como parte integrante da eficácia de qualquer terapia.

Como cardiologista, acabei de ser apresentado pelo JAMA Internal Medicine a um ensaio clínico randomizado chinês, que supostamente demonstrou a eficácia da acupuntura no controle da angina estável, em comparação com o placebo.

Assim é demais para mim. Eu tenho que aceitar que stent não é um tratamento muito eficaz para controle da angina estável, e ao mesmo tempo aceitar a acupuntura como uma terapia válida?

De início, não consegui controlar meu viés contra este estudo chinês. Estava severamente inclinado a ler o estudo sem a devida imparcialidade. Mas depois de uma meditação (há evidência disso?), me tornei mais imparcial e capaz de ler o artigo tecnicamente.

Para minha surpresa, encontrei um artigo bem escrito, de acordo com os padrões CONSORT, que preenche os critérios básicos para baixo risco de viés e erros aleatórios. É um ensaio bem dimensionado, com suposições corretas no cálculo do tamanho da amostra, fornecendo poder suficiente para testar a hipótese e precisão aos intervalos de confiança. Metodologia realizada de acordo com a definição a priori publicada em clinicaltrial.gov, sem alteração no protocolo. Conclusão baseada em desfecho primário previamente definido. Randomização central e fechada, dois grupos controle com sham (acupuntura não-meridiana e simulação de acupuntura), análise de intenção de tratar, sem perda de seguimento. Portanto, à primeira vista, parecia ser baixo risco de resultado falso positivo.

Mesmo? Qual é o valor preditivo positivo desse estudo em particular?

Embora a metodologia de um estudo deva ser avaliada de forma independente, seu valor preditivo deve ser avaliado no contexto da probabilidade pré-teste de uma hipótese verdadeira. A probabilidade de pré-teste depende da (1) plausibilidade e (2) quanto os dados anteriores apóiam a hipótese.

Primeiro, é bastante plausível que a abertura de uma coronária obstruída diminua os sintomas da isquemia miocárdica. Embora não equivalente à certeza no paradigma do pára-quedas, a melhora dos sintomas pelo implante de stent coronário é quase óbvia. Por outro lado, melhorar os sintomas de isquemia miocárdica através da introdução de agulhas em uma parte remota do corpo é menos óbvia.

Aprendi que os "meridianos" são baseados na trajetória dos nervos aferentes a serem estimulados pelo procedimento. Dá uma lógica básica à acupuntura, portanto não é o mesmo que a homeopatia. Mas a trajetória do nervo sozinha não é suficiente para gerar plausibilidade em relação a eficácia clínica. Precisamos avançar nos mecanismos. 

Sendo assim, perguntei a dois amigos acupunturistas qual é o mecanismo de ação da acupuntura. Um primeiro me deu vários mecanismos diferentes e reconheceu que não tinha certeza; o outro prometeu “conversar comigo depois”… ainda espero.

Isso confirma minha impressão epistemológica de que a eficácia da acupuntura no tratamento da angina tem baixo nível de plausibilidade biológica. Na biologia, os mecanismos da doença são complexos e multifatoriais. Por outro lado, o verdadeiro mecanismo de um tratamento eficaz está normalmente relacionado a apenas uma via. Propagandas fantasiosas costumam propor várias vias para a eficácia de um mesmo tratamento, sem perceber que essa lógica vai de encontro com a filosofia da ciência. É improvável que uma ferramenta criada para uma função surja com uma segunda ou terceira capacidade de interferir no desfecho (os efeitos pleiotrópicos). Mas somos frequentemente apresentados a vários mecanismos no intuito de gerar uma impressão de terapias onipresentes. 

Sabendo-se que a criação de uma ferramenta é baseada em um mecanismo, seria muita coincidência que a mesma aparecesse com um segundo mecanismo benéfico para o qual não foi criada. Parece estranho, quase um milagre, que uma intervenção como acupuntura  tenha tantas vias benéficas (imunológicas, anti-inflamatórias, melhora do fluxo sanguíneo, relaxante muscular, melhora da mobilidade muscular). Os tais efeitos pleiotrópicos das coisas são ou mero reflexo do efeito principal ou fantasias teóricas.

Em relação à evidências empíricas prévias sobre acupuntura em angina estável, surpreendentemente, encontrei no BMJ uma revisão sistemática de ensaios clínicos randomizados que mostra efeito positivo consistente (sem heterogeneidade) dessa terapia no controle da dor. No entanto, todos os ensaios foram classificados como alto risco de viés devido à falta de cegamento. Um estudo com alto risco de viés não serve para aumentar a probabilidade pré-teste de uma hipótese ser verdadeira.

Finalmente, as pessoas costuma usar o argumento da "terapia milenar" em favor da acupuntura. Bem, eu não sei de nenhum "critério milenar" a ser levado em consideração para a probabilidade das coisas serem verdadeiras. Afinal, mitos também são milenares.

Assim, de forma conservadora, devemos considerar a eficácia da acupuntura no controle da angina como de baixa probabilidade pré-teste. Com isso, não estou afirmando que não existe, apenas colocando que não temos subsídio para considerar provável.

Quando encontramos uma evidência muito boa em favor de uma hipótese improvável, a probabilidade final não será alta. Talvez a boa evidência aumente a probabilidade para moderada, mas ainda precisa de confirmação (reprodutibilidade).

Mas o estudo chinês realmente representa uma boa evidência? Assim decidi comparar as metodologias do estudo ORBITA versus o estudo chinês. Claramente, ORBITA tem um maior respeito pela hipótese nula. Duas questões, não avaliadas pela checklist tradicional de risco de viés:

Subjetividade do desfecho primário: enquanto ORBITA escolheu um critério objetivo (tempo de exercício no teste de esforço), os chineses escolheram um critério subjetivo autorreferido (número de eventos de angina por semana).

Eficácia de cegamento: enquanto ORBITA relatou o índice de cegamento, o ensaio chinês não se incomodou com isso. Nesse caso, devemos considerar que o acupunturista não era cego e o paciente estava plenamente consciente. Quão cego realmente foi este estudo de acupuntura? Faltou a avaliação pelo índice, em que se pergunta ao paciente em que grupo ele acha que está, e a frequência de resposta deve ser igual entre os grupos de alocação. 

No final, embora cardiologista, devo reconhecer como superestimado o valor do implante de stent coronário no tratamento da doença coronariana estável. Quanto à acupuntura, não há base para que esta se torne o futuro da intervenção coronária.

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