quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Consumo de Chocolate e Conquista de Prêmios Nobel



Na semana passada Franz Messerli publicou New England Journal of Medicine um intrigante trabalho demonstrando que quanto maior o consumo de chocolate de uma nação, maior o número de prêmios Nobel conquistados pela nação.

A figura acima representa esta análise. Primeiro, vamos aproveitar para revisar como interpretar uma análise de correlação.

Associação

1)    Este é um gráfico de correlação, ou seja, mostra associação linear entre duas variáveis numéricas. A variável preditora (eixo x) é o consumo de chocolate anual per capita. A variável de desfecho (eixo y) é o número de prêmios Nobel a cada 10 milhões de pessoas no país.
2)    O coeficiente de regressão (b) do consumo de chocolate foi de 2.5, indicando que o cada 1.0 Kg de consumo per capita, a nação conquista 2.5 prêmios Nobel. Mostra o grau de influência do chocolate nos prêmios.
3)    O coeficiente de correlação (r) foi de 0.79. Este mostra a força de associação linear, quanto mais próximo de 1, mais forte é a associação. Neste caso, podemos interpretar como associação moderada a forte.
4)    Se elevarmos o r ao quadrado, obteremos o coeficiente de determinação (R2 = 0.62), que representa o quanto das conquistas de prêmios Nobel pode ser explicado pelo consumo de chocolate. Neste caso, 62% dos prêmios podem ser explicados pelo consumo de chocolate.
5)    O valor de P desta associação foi < 0.0001, indicando que é muito pequena a probabilidade destes achados serem devido ao acaso.

Observem que do ponto de vista estatístico, a análise é bastante convincente. De fato, há uma verdadeira associação linear entre chocolate per capita e prêmio Nobel a cada 10 milhões de pessoas.

Em segundo lugar, devemos nos perguntar se esta associação ocorre porque o consumo de chocolate provoca conquistas de prêmios Nobel.

Causalidade

Quando a análise chega neste ponto, o pensamento deixa de ser estatístico e passa a ser baseado na lógica da causalidade. Neste caso, devemos analisar os critérios de causalidade. Em 1965, Sir Austin Bradford Hill, professor Emérito de Bioestatística da Universidade de Londres publicou o artigo “The Environment and Disease: Association or Causation?” na revista Proceedings of the Royal Society of Medicine (58:295-30), onde ele explica 9 critérios que devem ser analisados para avaliar se uma associação é causal. Este se tornaram conhecidos como Critérios de Hill. Nesta postagem citarei os 5 critérios mais importantes.

1) Força e independência da associação: diz-se que quanto mais forte é uma associação, mas provável esta ser causal. Uma associação muito forte tem menos possibilidade de ser mediada por fator de confusão. Isto porque se uma associação forte é mediada por um fator de confusão, este fator ficará muito aparente.

Além da força da associação, esta deve ser independente de fatores de confusão.

Mas o que é mesmo fator de confusão? É uma terceira variável que intermedia a relação entre a exposição (chocolate) e o desfecho (prêmios Nobel), porém essa mediação não faz parte de uma seqüência causal, ou seja, não é o chocolate levando a alguma coisa que por sua vez provoca a conquista dos prêmios. Na verdade, essa variável (fator de confusão) seria associada a chocolate e associada aos prêmios, porém essas duas associações seriam desconectadas. Sendo assim, de maneira artificial, o fator de confusão promoveria uma associação não causal entre a exposição e o desfecho. 

Esse pode ser o caso em questão. Pode ser que o consumo de chocolate esteja associado ao nível sócio-econômico do país. Por sua vez, o nível sócio-econômico está associado a melhor educação e investimento em pesquisa, predispondo ao ganho de prêmios Nobel. Observem que esse link não é causal, pois não é o consumo de chocolate que melhora do nível sócio-econômico, para que este promova os prêmios. Neste caso, o nível sócio-econômico pode ser o fator de confusão desta análise.

Mas como podemos saber se a associação é ou não mediada por este fator de confusão? Precisaríamos fazer uma análise multivariada, onde colocamos chocolate, nível sócio-econômico e prêmios Nobel no mesmo modelo estatístico, e verificamos se a associação entre chocolate e prêmio independe do nível sócio-econômico. Se for independente, sugere causalidade (mas não garante). Essa análise não está presente no estudo, portanto está faltando um critério essencial para se demonstrar causalidade.

Portanto, força de associação fala a favor de causalidade, mas não é uma condição necessária. Já independência da associação é uma condição necessária para causalidade, porém não suficiente. Outros critérios devem ser obedecidos.

2) Plausibilidade: além de existir uma associação independente, deve haver uma razão lógica para que a variável preditora esteja causando o desfecho. Por exemplo, colesterol possui associação independente com infarto e há plausibilidade para se acreditar que esta relação é causal. Claro, é provavelmente o acúmulo do colesterol na parede do vaso que faz surgir a placa aterosclerótica, que será responsável pelo infarto.

Por outro lado, há muitas associações que carecem de lógica causal.

Acreditar que consumir chocolate promove um aumento da função cognitiva capaz de influenciar na produção de prêmios Nobel, com esta força de associação, é querer demais. Portanto, não há plausibilidade biológica para tal, até porque se isso fosse verdade chocólatras seriam evidentes gênios e podemos perceber exemplos contrários à nossa volta. Sendo assim, a conclusão do trabalho carece do segundo critério, o de plausibilidade.

3) Temporalidade: para que consideremos uma relação causal, o desenho do estudo deve nos garantir que a exposição veio antes do desfecho, pois a causa deve vir antes da conseqüência. Isso é o que ocorre em estudos de coorte prospectiva. Por exemplo, a coorte de Framingham demonstrou que níveis elevados de colesterol medidos no início do estudo (quando ninguém tinha tido o desfecho) se associaram à ocorrência do desfecho infarto ao longo do seguimento de longo prazo.

Porém isso não ocorre com nosso estudo do chocolate. As duas informações (consumo e Nobel) foram colhidas no mesmo momento. Pode ser até que o padrão de consumo maior de chocolate tenha surgido depois das conquistas de prêmios Nobel, se tornando impossível que aquele seja o causador dos Nobel. Na ausência dos critérios de temporalidade, pode existir o fenômeno de causalidade reversa: o ganho dos prêmios Nobel induzindo a uma maior consumo de chocolate – embora isso também careça de plausibilidade.

Portanto, este é mais um critério de causalidade que está ausente no trabalho.

4) Gradiente Dose-resposta: quanto maior o nível do preditor, maior a intensidade do desfecho. Esta é uma relação que se observa nesse estudo, visto que há demonstração de correlação positiva.

5) Reversibilidade Experimental: este é o critério que representa a validação final de uma relação causal, e deve ser proveniente de ensaios clínicos randomizados. Significa que ao controlar o preditor em um experimento controlado (ensaio clínico), o desfecho reduz. Isso ocorre no caso do colesterol. Ensaios clínicos randomizados indicam que na medida em que estatinas reduzem o colesterol, o risco de infarto diminui. Isso valida o colesterol como causador da doença coronária.

Se acreditamos que chocolate promove aumento da função cognitiva a ponto de gerar mais prêmios Nobels, ao reduzir o chocolate de uma nação, seus prêmios iriam reduzir ao longo do tempo. Não é esse tipo de evidência que se faz presente neste estudo, que é puramente observacional.

Há casos de variáveis que não fecham o ciclo de validação como fatores de risco, visto que seu controle não promove redução de risco. O caso mais recente é o do HDL-colesterol baixo, cujas drogas que promovem aumento em sua concentração não resultam em benefício clínico. É bem provável que este não seja um fator de risco, apenas seja uma marcador de risco.

Na recente década de 90 acreditava-se que infecção na placa aterosclerótica agravava a doença coronária. Porém, o uso de antibióticos em ensaios clínicos não modificou a incidência de desfechos coronários (versus placebo), fazendo cair por terra a hipótese infecciosa.

Sendo assim, uma breve análise dos critérios de causalidade nos sugerem que este trabalho está longe de provar uma associação causal entre consumo de chocolate e conquistas de um prêmio Nobel. Na verdade, o trabalho não passa de um brincadeira do autor que usou esta correlação para chamar a atenção de que associação e causalidade não são a mesma coisa. Uma brincadeira tão inteligente que resultou em um artigo no New England Journal of Medicine.

A Verdade

Por que o gráfico mostra que países como Noruega, Áustria, Dinamarca, Finlândia possuem um desempenho científico muito melhor do que os Estados Unidos? Tem algo errado, pois sabemos que os Estados Unidos são o país de maior produção científica do mundo. O erro está em ajustar o número de prêmios Nobel para cada 10 milhões de habitantes, pois a grande maioria destes habitantes não são cientistas e não estão contribuindo nada com isso. Os Estados Unidos são os que possuem a maior população e a maioria de qualquer população não é cientista. Como a população fica no denominador da fração, isso reduz o índice de prêmios Nobel dos Estados Unidos. O correto seria ajustar o número de prêmios para o número de cientistas do país e não para a população geral. Ao fazer errado, a medida de premiação beneficiou países pequenos da Europa, que coincidentemente consomem muito chocolate. Tudo não passa de um viés de análise de dados.