sexta-feira, 5 de junho de 2020

A Cauda Gorda da Pandemia: nova face da MBE




O conceito de medicina baseada em evidências é tradicionalmente individual. Evidências científicas servem de norte a um processo de decisão alinhado com a individualidade clínica e preferências do paciente. 

O paradigma parte do geral (conceito científico) para o específico (decisão individual). 

Este paradigma se estruturou ao longo do último século, dando origem à forma contemporânea de pensar medicina, baseada em ciência e probabilidades clínicas. Vínhamos neste processo evolutivo, reformulando a habilidade do pensamento e a atitude médica na tomada de decisão, quando fomos surpreendidos: a população se tornou nosso paciente.

Em uma era que o médico se acostumava a racionalizar cientificamente em prol do paciente, fomos surpreendidos com a necessidade de migrar do pensamento clínico, de padrão individual, para o pensamento populacional, de padrão sistêmico e escalável.

No paradigma individual, diante da incerteza, encontramos a melhor solução com base nas probabilidades de eventos comuns, calculadas a partir da curva de distribuição normal. Não é tão incomum que o rastreamento de uma doença oculta flagre um paciente que se beneficiará do diagnóstico, porém é mais comum que pacientes sofram as consequências não intencionais desse overdiagnosis. Desta forma, pela ótica probabilística, rastreamento de boa parte dos cânceres são considerados inapropriados. Inapropriados também pela ótica do impacto, pois a potencial consequência negativa da omissão de um eventual diagnóstico é individual, sem impacto sistêmico.

No paradigma populacional, não há um denominador de muitos sujeitos para que a probabilidade de benefício seja calculada. O sujeito é a população, única, como se apenas houvesse um doente. O pensamento probabilístico cede lugar ao impacto do evento. Eventos populacionais tendem a impactos sistêmicos e escaláveis.



Distribuição Normal versus Distribuição da Cauda Gorda


O pensamento médico e epidemiológico tradicional é baseado na curva normal. Este “normal” não é o contrário de anormal, aqui normal significa padrão. O padrão de nossa vida clínica são eventos comuns, medianos, representados pela área mais central abaixo da curva normal (Gaussiana). Saindo da área central, esta curva normal sofre um declínio abrupto, de forma que os eventos menos comuns são muito incomuns, extremamente raros, representados pelas caudas estreitas

Um exemplo do filósofo da incerteza Nassim Taleb nos ajuda a explicar: imaginem a distribuição normal da estatura. A média da população é 1,67 metros. Se somarmos 10 cm, 1 em 6 pessoas terão altura > 1,77 metros. Se distanciamos 20 cm da média, a probabilidade cai para 1 em 44 de ter uma altura > 1,87 metros. Agora, se somarmos apenas mais 10 cm, a probabilidade de um indivíduo ter uma altura > 1,97 metros cai para 1 em 740. A cada 10 cm a mais, a probabilidade cai de 1 em 6, para 1 em 44, para 1 em 740. E se somarmos mais 10 cm, é quase impossível uma pessoa ter 40 cm a mais que a média (> 2,07 metros): 1 em 32.000. Os valores até 20 cm da média são possíveis, mas a partir deste ponto, a redução de probabilidade é abrupta e imensa, tornando os eventos muito raros (caudas estreitas). 

Parafraseando Nassim Taleb, vivemos no “mediocristão”: lidamos com eventos comuns, sem necessidade de preocupação com eventos menos comuns, pois estes são muito raros, pertencentes às caudas estreitas da curva normal. Nosso mediocristão é constituídos do comum nos infartos, cânceres ou epidemias como influenza, dengue, ebola, H1N1, SARS ou MERS. Assim vivem médicos e epidemiologistas. 

Por outro lado, estamos aprendendo que no paradigma populacional, deve prevalecer a distribuição da cauda gorda e de eventos escaláveis. Embora menos prováveis que eventos cotidianos que ficam na parte central da curva, os extremos desta distribuição não são improváveis. Isto ocorre pois o tempo de vida de uma população é tão grande que a probabilidade de um evento raro ocorrer em algum momento da história também é grande: terremotos, pandemias, tsunamis, 11 de setembro. 

A curva de cauda gorda indica que estes eventos são menos frequentes que o usual, mas a probabilidade deles virem a ocorrer não é baixa. Portanto, do ponto de vista populacional devemos estar atentos a estas possibilidades. Em segundo lugar, eventos populacionais possuem consequências escaláveis, são muito mais impactantes do que uma conduta médica que deixou de prevenir a consequências do câncer de um doente. 

Explicando melhor a lógica das curvas, representando pela figura desta postagem: o eixo vertical mede a probabilidade, o eixo horizontal mede diversos tipos de eventos categóricos ou mostra os valores numéricos de uma variável como altura. A cauda é gorda, pois a probabilidade dos eventos representados pelas caudas é maior do que na curva normal, de cauda magra. 

O conceito de overuse exemplifica a importância da dicotomia dos paradigmas. O paradigma menos é mais, que é o racional do movimento choosing wisely, deve prevalecer na dimensão individual de um médico que discute com um paciente o quanto seria apropriado o rastreamento de um câncer como o de próstata. Neste caso, usamos o conceito de overdiagnosis ou overtratamento, tentando evitar atitudes precoces antes do indivíduo estar vivendo as consequências da doença. 

Se seguíssemos este modelo mental, entrar com medidas de distanciamento antes da epidemia se alastrar representaria um overtratamento. No entanto, no aspecto populacional, catástrofes estão na cauda gorda (menos improváveis) e possuem consequências escaláveis. Por estes dois motivos, o princípio da precaução deve prevalecer quando “nosso paciente é a população”. Percebam que giramos a chave do pensamento.


A Falta do Modelo Mental Escalável

A letárgica reação da comunidade médica e institutos epidemiológicos à epidemia do novo coronavírus evidenciou que o modelo mental da cauda gorda não ocupava o espaço que merecia no intelecto destes especialistas. 

Isso pode ser exemplificado pelo meu próprio erro de predição de que “não teremos um cisne negro”, escrito na postagem do Blog em 31 de janeiro. Assim como pelas posições dos famosos epidemiologistas John Ioannidis ("A fiasco in the making"e Peter Gotzsche ("Are we the victims of mass panic?"), os quais argumentavam que a magnitude do problema estava superestimada. 

Probabilisticamente, não estávamos errados, pois o risco do cisne negro era menor do que o risco do cisne branco (um evento usual). O erro foi usar o pensamento probabilístico da cauda estreita para um evento escalável. 

Não estávamos sozinhos no erro de predição. Toda a comunidade ocidental tardou a reagir, fazendo de fevereiro o “mês perdido” no controle da epidemia. 

É fácil analisar retrospectivamente, portanto minha reflexão não é de culpabilidade. De fato, alguns avançaram a possibilidade da então epidemia se tornasse algo mais sério, porém apenas dentro da leveza do campo hipotético, que não gera ações suficientemente precoces. 

Interessante notar as colocações em 21 de Janeiro de Anthony Fauci, principal consultor do governo americano, um dos mais experientes cientistas do mundo a respeito de doenças contagiosas. 

“Obviously, you need to take it seriously and do the kind of things the (Centers for Disease Control and Prevention) and the Department of Homeland Security is doing." 

No entanto: “The American people should not be worried or frightened by this. It’s a very, very low risk to the United States".

E essa foi a percepção inicial dos líderes mundiais, a maioria provavelmente assessorados por especialistas de seus países. E assim, apenas depois que a doença se alastrou pela Europa Ocidental, acordamos e iniciamos as intervenções que já tardavam a acontecer.

A limitação está no costume da mente médica, de lidar apenas com fenômenos usuais, regidos pela curva normal. Enquanto toda nossa experiência foi acumulada no mediocristão, pela primeira vez em décadas o extremistão, o mundo da cauda gorda, nos apresentou um evento médico. 

O que nos pareceu imprevisível não era imprevisível para aqueles de modelo mental da cauda gorda: Bill Gates nos preveniu desta ocorrência em 2015 e Nassim Taleb publicou em 26 de janeiro de 2020 que este poderia ser um evento de consequências exponenciais. Nenhum dos dois é médico ou epidemiologista. A própria história profissional do primeiro é um evento escalável. O segundo veio do mercado financeiro, um ambiente que acumula eventos extremos de tempos em tempos.

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Este é o texto introdutório do novo módulo do curso online de MBEPandemia Baseada em Evidências: paradigma populacional. Veja aulas no link. 

* Texto subsequentes neste Blog trarão mais exemplos da dicotomia individual e populacional. Na próxima semana postarei sobre a diferença de modelo mental entre tratamentos clínicos e populacionais durante a pandemia. 

* Esta abordagem se fez presente em episódios recentes do MBE Podcast e vídeos no Canal MBE