sábado, 18 de setembro de 2021

Confusão entre Equações Clínicas e Populacionais: vacinas em jovens


Um bom processo de decisão se apoia em  “modelos” adequados. Modelos representam simplificações do universo, que servem para testar hipóteses científicas ou estimar consequências de nossas decisões. Para avaliar causalidade, modelos são testados estatisticamente, enquanto nos processos de decisão servem como projeções de como o mundo reagirá diante de premissas pré-definidas. 


Diferentes modelos devem estar presentes em uma caixa de ferramentas mentais, que permitirá uma escolha estratégica de pensamento para cada situação. Um martelo deve ser escolhido para enfiar um prego na parede, enquanto uma chave de fenda para girar um parafuso. Se poucas vezes erramos na escolha entre chave de fenda ou martelo, erramos mais em escolhas baseadas em nuances. Erros sutis, de consequências escaláveis. 


Esse é o caso da escolha entre a ferramenta de pensamento clínico (individual) versus a ferramenta de saúde pública (sistêmica). Com o início das aprovações das vacinas de RNA para utilização em adolescentes, e brevemente em crianças, surgem opiniões que utilizam o modelo clínico de risco-benefício, argumentando contra a vacinação destes jovens na pandemia de COVID-19. Embora estas vacinas tenham eficácia > 90%, esta propriedade aplicada a pacientes de baixo risco (jovens) resulta em um benefício individual (redução absoluta ou número necessário a tratar) pouco impactante. Aliás, toda vacina tem usualmente um grande NNT, principalmente as que são aplicadas fora de uma pandemia. 


Embora sujeito a críticas por sua metodologia, usarei um recente artigo (pre-printpara fazer um exercício de numerologia. Os autores estimaram 62 hospitalizações por COVID-19 por milhão de adolescentes não vacinados e 162 miocardites por milhão de adolescentes vacinados. Assim, calculo um NNT de benefício da vacina em torno de 16.000, porém um NNH para causar uma miocardite em torno de 6.000. Ou seja, risco > beneficio. 


Embora pareça racional, este pensamento desconsidera o caráter sistêmico da pandemia, reduzindo a decisão ao nível do indivíduo. Para entender melhor o pensamento sistêmico, podemos usar a analogia de que, em problemas sistêmicos, nosso doente é a população com uma única entidade. A este doente, desejamos administrar um remédio que trate todas as suas células, fazendo com que o todo fico curado. As células desta entidade populacional são as pessoas. Na pandemia, o que precisamos curar é a população. 


OBS 1: não estou querendo reduzir pessoas a células, foi apenas uma analogia. Pessoas tem direitos humanos, células não ...


Este pensamento torna escalável o benefício da vacinação de um grupo populacional, para além do indivíduo vacinado. Em se considerando que o paciente é esta entidade populacional, o número necessário a tratar de populações (NNTp) para que haja um benefício é 1. Ou seja, a existência de algum impacto favorável de jovens vacinados na pandemia, em relação ao contrafactual de jovens não serem vacinados, é quase uma garantia (NNT = 1). 


NNTp = 1 ocorre porque benefícios de ações sistêmicas são menos incertos do que ações individuais. É uma questão de probabilidade: o paciente é um sujeito, candidato a um evento em um experimento de milhões de indivíduos. Já o efeito na população resulta da média do que acontece com os indivíduos, e uma média é muito mais previsível do que um evento isolado: as variabilidades naturais se anulam na média (Lei dos Grandes Números). 


OBS 2: é importante salientar que eu não estou propondo abolir o raciocínio clínico para vacinas, nem a escolha individual. A escolha individual é cabível, porém dentro de quatro paredes de um consultório, caso o paciente demonstre preocupações com condições clínicas específicas, aspectos religiosos, valores e preferências. Em políticas de saúde deve prevalecer a preferência da sociedade, e esta precisa primar pela racionalidade coletiva. 


Outro aspecto digno de nota é que mesmo que fosse uma questão de se aplicar o pensamento clínico individual, as probabilidades do benefício e risco são de escalas tão pequenas que não faz sentido comparar probabilidades. Se fizéssemos, estaríamos pesando nos processos de decisão duas variáveis sem peso algum, pois na imensa maioria das vezes, nada aconteceria (nem benefício, nem malefício). Sendo assim, no caso de uma decisão clínica, esta não deve se basear em probabilidade, mas na decisão compartilhada e influenciada pela preferência do paciente.


Temos visto se repetir esse equívoco durante a pandemia, até por partes de gestores de saúde pública. Um exemplo foi a demanda para que o CONITEC analisasse a implementação de ECMO como tratamento de COVID-19, em meio a uma pandemia. Uma proposta de tratamento individual, porém de impacto potencialmente deletério ao frágil sistema complexo que rege a saúde pública em um momento de caos. 


Conclusão


Em processos de decisão, o primeiro passo é identificar qual a dimensão do problema e depois escolher o modelo mental adequado. Profissionais de saúde usam do paradigma clínico em seu cotidiano, mas precisam trocar de ferramenta de pensamento quando necessário. A mais importante tecnologia em saúde pública é o pensamento, ou seja, a gestão mental do conhecimento


OBS: Esse texto foi escrito antes da sugestão do Ministro da Saúde de que adolescentes não deveriam ser vacinados devido ao risco de complicações. Julguei que o texto fala por si só, sendo desnecessário e redundante inserir um comentário sobre o fato desta semana.


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