quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Papai Noel deve usar estatina?



Passado o período natalino, Papai Noel entra em uma fase do ano mais tranquila, com tempo para cuidar de sua saúde. Ao recebê-lo no consultório, estamos cientes de que não devemos pesquisar doença coronária obstrutiva neste ilustre cliente, como discutido em postagem antiga deste Blog. Sob a ilusão de proteção clínica, estaríamos incorrendo no fenômeno de overdiagnosis. 

Por outro lado, em se considerando a avançada idade de Papai Noel, seu risco cardiovascular não é baixo. Naturalmente, temos intuito de reduzir a probabilidade de um evento cardiovascular em Papai Noel. Ao percebermos que seu colesterol LDL é de 140 mg/dl, nos vem o pensamento de discutir com nosso paciente a possibilidade do uso de estatina. No entanto, somos rapidamente frustrados pela lembrança de que o recente Guideline do US Prevention Task Force propôs que estatina não seja indicada após os 75 anos, por falta de evidências.

O intuito dessa postagem é refletir a respeito deste posicionamento do guideline. Mas antes de tentar responder a pergunta do uso de estatina por Papai Noel, vamos colocar as coisas em ordem. Há uma primeira pergunta mais importante, que nos serve de reflexão em relação ao paradigma científico: sob a ótica de evidências, Papai Noel existe?

Papai Noel existe?


Não entendo a angústia de alguns pais a respeito da suposta inexistência do Papai Noel. Uns até revelam para seus filhos essa inexistência, pelo temor de estarem traindo a confiança das crianças. Outros alimentam a suposta fantasia até quando podem. Mas são raros aqueles que percebem o fato incontestável de que Papai Noel existe. A raridade do verdadeiro reconhecimento de Papai Noel decorre da questão ser normalmente analisada pela ótica científica errada.

Podemos estudar o universo sob duas óticas filosófico-científicas: realismo ou idealismo. Realismo se aplica ao teste de conceitos objetivos, já o idealismo se refere a situações em que nossa própria percepção modifica a realidade. 

Se Papai Noel existe é uma pergunta a ser respondida pela ótica científica do idealismo. Observem que nosso comportamento a respeito da perspectiva de Papai Noel faz com que ele se concretize em realidade. Quando uma criança escreve uma carta pedindo um presente e esse presente chega na noite do natal, a realidade de Papai Noel se materializa. É óbvio que Papai Noel existe. E como tudo que é real no mundo, Papai Noel não é exatamente justo. Tem aqueles que Papai Noel não passa na casa …

Esse fenômeno que chamo de “equívoco de perspectiva científica” resulta em conclusões incorretas. Em ciências sociais, devemos considerar uma postura mais permeada pela subjetividade, o idealismo. Papai Noel é um fenômeno socialmente verdadeiro. 

Trago esta reflexão, pois a prática médica deve também ser analisada pela ótica do social. Medicina é um fenômeno social. Portanto, há perguntas a serem cientificamente respondidas por métodos que contemplem o idealismo, como a influência de crenças na tomada de decisão médica ou a preferência de pacientes influenciando no desfecho de um tratamento. 


Estatinas são drogas benéficas ou tudo isso é mito?


Esta segunda pergunta também sofre do fenômeno de equívoco de perspectiva científica. Aqui a perspectiva correta seria a do realismo, porém diferentes pessoas têm diferentes opiniões a respeito do benefício (ou não benefício) de estatinas, cada um com tamanha ênfase que parecem tentar mudar a realidade a partir de suas ideias (perspectiva do idealismo).

Na perspectiva do realismo, a questão não é de opinião, mas sim de observar a realidade da forma mais acurada possível, sob a lente de um método (o científico) que nos previne contra vieses interpretativos. Ao aplicar corretamente o pensamento científico, nos tornamos indivíduos sem preferência. A questão não é de ideal, é de realidade. 

Vivo criticando condutas de minha própria especialidade cuja popularidade não é acompanhada de evidências científicas (rastreamento de DAC, implantes de stents inapropriados, controle excessivo da pressão arterial, beta-bloqueador em cirurgia não cardíaca, benefício clínico do exercício, benefício do vinho). Mas uma coisa que não posso questionar é o demonstrado benefício das estatinas. Que eu conheça, não existe um tratamento cujo conceito de benefício esteja tão bem demonstrado e reprodutível por inúmeros ensaios clínicos randomizados.

Já escrevi neste blog diversas vezes contra a indicação indiscriminada de estatina para pessoas de colesterol baixo. Mas falar de indicação exagerada de estatinas é uma coisa, argumentar que estatinas não são benéficas é outra totalmente diferente. Seria anti-cientifico. 

Neste sentido há uma legião de inimigos das estatinas que usam de argumentos pseudo-científicos contra esta terapia. O lobby atual contra estatinas é intenso, percebendo-se uma postura idealista a esse respeito. Interessante que este lobby contra estatina normalmente vem acompanhado proposta de terapias alternativas não embasadas em evidências ou de uma postura pseudo menos é mais (pseudo, pois neste caso o menos resulta em menos benefício).

Portanto, sob a perspectiva científica correta para este caso (realismo), estatinas são drogas que reduzem eventos cardiovasculares quando usadas para redução do colesterol.

Então, se Papai Noel existe e o benefício de estatinas existe, Papai Noel deve utilizar estatina?


Papai Noel deve usar estatina?


O recente Guideline do US Prevention Task Force considerou que estatinas não estão indicadas para indivíduos muito idosos, pois não haveria evidências suficientes nesta faixa etária. Esta recomendação é baseada na ótima revisão sistemática realizada pelo Task Force, que nos mostra que ensaios clínicos com estatinas não representam bem indivíduos muito idosos. 

No entanto, este é um exemplo do aplicação caricatural (e inadequado) do paradigma da medicina baseada em evidências, como se tivesse que ter evidência direta para tudo. Esta é uma violação de um importante princípio da medicina baseada em evidências: o princípio da complacência, que respalda a utilização de evidências indiretas. 

Se concordarmos com o US Prevention Task Force de que não devemos utilizar estatinas em nossos muito idosos, não deveremos utilizar quase nada em muito idosos, pois quase nenhum ensaio clínico, em qualquer área, inclui suficientemente este tipo de paciente. 

O princípio da complacência é baseado em evidências. Evidências de que o fenômeno de interação é raro, ou seja, um conceito comprovado em um tipo de paciente, tenderá a se reproduzir em outros tipos de pacientes, a não ser que haja uma grande razão biológica para que o efeito não se reproduza. Esta é a base de pelo menos 40% das condutas médicas embasadas em evidências. Usamos antibióticos em infecções bacterianas diversas, não porque tem um ensaio clínico grande para cada infecção e cada antibiótico, o que temos são evidências de boa qualidade demonstrando o conceito de que antibiótico é benéfico em infecções bacterianas. Isso demonstrado, já é suficiente. Em postagem recente deste Blog, discutimos isso com profundidade.  

Corroborando com esta ideia, a própria revisão nos traz análises de subgrupo dicotomizando em pacientes com mais ou menos de 70 anos, demostrando consistência de efeito. Mas eles argumentam que poucos trabalhos incluiram pacientes com mais de 75 anos e estes não fizeram análises de subgrupos cortando em 75 anos. Por isso consideram que não está recomendado o uso de estatina em prevenção primária de muito idosos. 

Devemos nos perguntar: se está demonstrado o benefício da estatina na prevenção primária de indivíduos < 75 anos (redução de infarto ou AVC), há uma grande razão biológica para não funcionar nos mais idosos? A tendência é que se mantenha o efeito intrínseco, com um redução relativa do risco em escala semelhante. 

Não quero dizer que todo muito idoso deve necessariamente utilizar estatina. Estou simplesmente apontando o erro de considerar esse como um subgrupo a parte, no qual não está indicada a droga. A decisão quanto ao uso da estatina em Papai Noel deve ser individualizada e compartilhada com nosso cliente.

O interessante é que quanto individualizamos a probabilidade de benefício em Papai Noel, não nos afastamos da indicação, mas sim nos aproximados. Papai Noel, em sendo muito idoso, tem uma maior probabilidade de ter um infarto do miocárdio do que a população geral. Sendo assim, para uma mesma redução relativa do risco, haverá uma maior redução absoluta do risco e um menor NNT, evidenciando uma maior probabilidade de benefício individual em Papai Noel do que pessoas mais jovens. 

O verdadeiro diferencial do muito idoso está em um maior benefício concreto e não na falta de benefício. 

Quando se fala em muito idoso, normalmente se comete um erro de pensamento probabilístico. Já ouvi muitos falarem que como a expectativa de vida da população é 75 anos, uma pessoa de 80 anos está no lucro e não dá tempo de se beneficiar de terapias cujo benefício é de médio-longo prazo. Este raciocínio não considera o pensamento de probabilidade condicional. Uma pessoa que acaba de nascer, tem 75 anos como o momento de morte mais provável. Mas a cada ano que essa pessoa sobrevive, seu tempo de sobrevida vai aumentando, pois ela se mostra mais resistente. Passada a infância, a pessoa pulou o risco de mortalidade infantil, então já tem uma maior probabilidade de viver mais do que 75 anos, pois essa média está desviada pela mortalidade infantil. E curvas atuariais mostram que ao chegar aos 80 anos, a expectativa de vida média é 86 anos. 

Desta forma, se Papai Noel chegou aos 1.747 anos de vida (segundo um site confiável), ele é uma pessoa altamente resistente à morte e provavelmente terá mais 500 anos pela frente. O que quero dizer é que ser muito idoso, sob a ótica da probabilidade condicional, não é um motivo para niilismo terapêutico.

Claro que na decisão individualizada, o benefício deve ser confrontado com o risco de efeito adverso e de interações medicamentosas. Mas como tendência geral, a magnitude individual do benefício neste caso (NNT) tende a superar o risco deste tipo de droga, que sabemos ser relativamente segura. 

Portanto, se Papai Noel tem um colesterol maior do que 130 mg/dl e se quisermos reduzir seu risco de infarto, devemos conversar sobre o uso da estatina.

Conclusão


Meus amigos de direita acham que sou liberal, enquanto meus amigos de esquerda acham que sou conservador. Médicos especialistas (cardiologistas ou endocrinologistas) me consideram restritivo quanto ao uso de estatinas, porém os generalistas de visão mais holística me consideram entusiasta demais. Uma mesma posição realista pode soar conservadora ou liberal, a depender da perspectiva do leitor idealista.

Sendo esta uma situação objetiva, a ótica deve ser a do realismo, evitando posições políticas em relação ao assunto. Evidências científicas devem prevalecer, em detrimento de ideologias. Hoje parece ser politicamente correto falar mal de estatinas. E esta atitude muitas vezes vem acompanhada de um marketing em prol de pseudotratamentos não baseados em evidências. Da mesma forma, o crescimento da visão negativa às já antigas estatinas é acompanhado do surgimento de novos  adventos farmacológicos contra dislipidemia. Não podemos ser ingênuos. Há interesses por todo lado.

Não há nada diferente com as estatinas, elas apenas sofrem do paradigma do NNT, como qualquer outro tratamento utilizado para reduzir risco de desfechos futuros. Normalmente precisamos tratar muitos para poucos se beneficiarem. É sempre assim, por isso devemos reservar a preferência do uso para aqueles com maior probabilidade do desfecho, como Papai Noel. Estatinas não são panaceias, mas como muitos outros tratamentos, oferecem algum benefício. Não precisaria tanta controvérsia desnecessária. 

O caso das estatinas é um grande exemplo de opiniões médicas baseadas em posições políticas, em detrimento do pensamento baseado em evidências. O US Prevention Task Force escorregou nesse lobby e caricaturou o uso do pensamento baseado em evidências.

Em 2012 discutimos que Papei Noel não deveria fazer pesquisa não invasiva de doença coronariana. Agora em 2017, propomos que Papai Noel faça uso de estatina.

E, claro, não podemos esquecer: Papai Noel existe, obviamente. 

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