Como cardiologista, não foi fácil aceitar o resultado negativo do ensaio clínico ORBITA há dois anos. Angioplastia coronária com stent não controla a angina? O que me salvou foi minha tendência ao ceticismo científico e amor pela hipótese nula. Sendo assim, consegui na época escrever um filosófico post analisando o valor do ORBITA. Para o tamanho do efeito assumido naquele ensaio, a angioplastia não é eficaz e devemos reconhecer o papel do placebo como parte integrante da eficácia de qualquer terapia.
Como cardiologista, acabei de ser apresentado pelo JAMA Internal Medicine a um ensaio clínico randomizado chinês, que supostamente demonstrou a eficácia da acupuntura no controle da angina estável, em comparação com o placebo.
Assim é demais para mim. Eu tenho que aceitar que stent não é um tratamento muito eficaz para controle da angina estável, e ao mesmo tempo aceitar a acupuntura como uma terapia válida?
De início, não consegui controlar meu viés contra este estudo chinês. Estava severamente inclinado a ler o estudo sem a devida imparcialidade. Mas depois de uma meditação (há evidência disso?), me tornei mais imparcial e capaz de ler o artigo tecnicamente.
Para minha surpresa, encontrei um artigo bem escrito, de acordo com os padrões CONSORT, que preenche os critérios básicos para baixo risco de viés e erros aleatórios. É um ensaio bem dimensionado, com suposições corretas no cálculo do tamanho da amostra, fornecendo poder suficiente para testar a hipótese e precisão aos intervalos de confiança. Metodologia realizada de acordo com a definição a priori publicada em clinicaltrial.gov, sem alteração no protocolo. Conclusão baseada em desfecho primário previamente definido. Randomização central e fechada, dois grupos controle com sham (acupuntura não-meridiana e simulação de acupuntura), análise de intenção de tratar, sem perda de seguimento. Portanto, à primeira vista, parecia ser baixo risco de resultado falso positivo.
Mesmo? Qual é o valor preditivo positivo desse estudo em particular?
Embora a metodologia de um estudo deva ser avaliada de forma independente, seu valor preditivo deve ser avaliado no contexto da probabilidade pré-teste de uma hipótese verdadeira. A probabilidade de pré-teste depende da (1) plausibilidade e (2) quanto os dados anteriores apóiam a hipótese.
Primeiro, é bastante plausível que a abertura de uma coronária obstruída diminua os sintomas da isquemia miocárdica. Embora não equivalente à certeza no paradigma do pára-quedas, a melhora dos sintomas pelo implante de stent coronário é quase óbvia. Por outro lado, melhorar os sintomas de isquemia miocárdica através da introdução de agulhas em uma parte remota do corpo é menos óbvia.
Aprendi que os "meridianos" são baseados na trajetória dos nervos aferentes a serem estimulados pelo procedimento. Dá uma lógica básica à acupuntura, portanto não é o mesmo que a homeopatia. Mas a trajetória do nervo sozinha não é suficiente para gerar plausibilidade em relação a eficácia clínica. Precisamos avançar nos mecanismos.
Sendo assim, perguntei a dois amigos acupunturistas qual é o mecanismo de ação da acupuntura. Um primeiro me deu vários mecanismos diferentes e reconheceu que não tinha certeza; o outro prometeu “conversar comigo depois”… ainda espero.
Isso confirma minha impressão epistemológica de que a eficácia da acupuntura no tratamento da angina tem baixo nível de plausibilidade biológica. Na biologia, os mecanismos da doença são complexos e multifatoriais. Por outro lado, o verdadeiro mecanismo de um tratamento eficaz está normalmente relacionado a apenas uma via. Propagandas fantasiosas costumam propor várias vias para a eficácia de um mesmo tratamento, sem perceber que essa lógica vai de encontro com a filosofia da ciência. É improvável que uma ferramenta criada para uma função surja com uma segunda ou terceira capacidade de interferir no desfecho (os efeitos pleiotrópicos). Mas somos frequentemente apresentados a vários mecanismos no intuito de gerar uma impressão de terapias onipresentes.
Sabendo-se que a criação de uma ferramenta é baseada em um mecanismo, seria muita coincidência que a mesma aparecesse com um segundo mecanismo benéfico para o qual não foi criada. Parece estranho, quase um milagre, que uma intervenção como acupuntura tenha tantas vias benéficas (imunológicas, anti-inflamatórias, melhora do fluxo sanguíneo, relaxante muscular, melhora da mobilidade muscular). Os tais efeitos pleiotrópicos das coisas são ou mero reflexo do efeito principal ou fantasias teóricas.
Sabendo-se que a criação de uma ferramenta é baseada em um mecanismo, seria muita coincidência que a mesma aparecesse com um segundo mecanismo benéfico para o qual não foi criada. Parece estranho, quase um milagre, que uma intervenção como acupuntura tenha tantas vias benéficas (imunológicas, anti-inflamatórias, melhora do fluxo sanguíneo, relaxante muscular, melhora da mobilidade muscular). Os tais efeitos pleiotrópicos das coisas são ou mero reflexo do efeito principal ou fantasias teóricas.
Em relação à evidências empíricas prévias sobre acupuntura em angina estável, surpreendentemente, encontrei no BMJ uma revisão sistemática de ensaios clínicos randomizados que mostra efeito positivo consistente (sem heterogeneidade) dessa terapia no controle da dor. No entanto, todos os ensaios foram classificados como alto risco de viés devido à falta de cegamento. Um estudo com alto risco de viés não serve para aumentar a probabilidade pré-teste de uma hipótese ser verdadeira.
Finalmente, as pessoas costuma usar o argumento da "terapia milenar" em favor da acupuntura. Bem, eu não sei de nenhum "critério milenar" a ser levado em consideração para a probabilidade das coisas serem verdadeiras. Afinal, mitos também são milenares.
Assim, de forma conservadora, devemos considerar a eficácia da acupuntura no controle da angina como de baixa probabilidade pré-teste. Com isso, não estou afirmando que não existe, apenas colocando que não temos subsídio para considerar provável.
Quando encontramos uma evidência muito boa em favor de uma hipótese improvável, a probabilidade final não será alta. Talvez a boa evidência aumente a probabilidade para moderada, mas ainda precisa de confirmação (reprodutibilidade).
Mas o estudo chinês realmente representa uma boa evidência? Assim decidi comparar as metodologias do estudo ORBITA versus o estudo chinês. Claramente, ORBITA tem um maior respeito pela hipótese nula. Duas questões, não avaliadas pela checklist tradicional de risco de viés:
Subjetividade do desfecho primário: enquanto ORBITA escolheu um critério objetivo (tempo de exercício no teste de esforço), os chineses escolheram um critério subjetivo autorreferido (número de eventos de angina por semana).
Eficácia de cegamento: enquanto ORBITA relatou o índice de cegamento, o ensaio chinês não se incomodou com isso. Nesse caso, devemos considerar que o acupunturista não era cego e o paciente estava plenamente consciente. Quão cego realmente foi este estudo de acupuntura? Faltou a avaliação pelo índice, em que se pergunta ao paciente em que grupo ele acha que está, e a frequência de resposta deve ser igual entre os grupos de alocação.
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Prezado Luis,
ResponderExcluirConfesso que tenho um viés de percepção, ou um conflito de DESinteresse, quanto à homeopatia, acumpuntura e medicinas alternativas. Respeito as filosofias orientais e também uma tendêencia dessas medicinas a um tratamento holístico. Mas isso não significa que concorde haver evidência de sua eficácia.
Vamos repensar um pouco sobre o ORBITA. Noto que ele utilizou como avaliadores o Seattle Angina Questionnaire (o mesmo utilizado no estudo chinês) e uma "5 level version of the EuroQol 5 dimensions (EQ-5D-5L) questionnaire" (Qualidade de Vida). Mas esse foi o desfecho SECUNDÁRIO. O PRIMÁRIO foi: a diferença na capacidade de exercício, mensurada por meio do teste de esforço. O estudo foi realizado em pacientes com angina estável, e durou 6 meses.
Outra coisa: este estudo apresentou uma randomização sólida, com um procedimento placebo consistente e bem descrito.
Observamos ainda que a diferença entre os dois grupos talvez tenha residido na atenção médica realizada após o procedimento (está descrita em um apêndice que não encontrei, online).
Realmente, "é bastante plausível que a abertura de uma coronária obstruída diminua os sintomas da isquemia miocárdica". Mas... será que nesses casos, a obstrução clinicamente visível (e submetida ao stent) é a unica responsável pelo quadro do paciente?
Notei também que o artigo foi corrigido. Onde? Não consegui encontrar a versão original (anterior a 04/01/2018).
Vejamos então o artigo chinês. Ele apresenta resultados de terapêutica ADJUNTA (não ALTERNATIVA), também em casos de angina estável (crônica).
Portanto, o tratamento clínico da angina não variou estatisticamente entre os grupos (ou assim deveria ser).
O que desejamos controlar com a acumpuntura: a dor (consequencia e marcador de qualidade de vida), ou os eventos cardiovasculares adversos (prováveis causadores da dor)? Necessitmos conhecer se os tais meridianos seriam de alguma maneira responsáveis por uma vasodilatação coronariana, ou se sua ação se limita a reduzir asensibilidade (dor).
Achei a descrição da acumpuntura um tanto subjetiva em alguns potos. Mas talvez seja desconhecimento meu.
Os pacientes não tratados ficaram natal "Waiting list". Dá a idéia de que ficaram "esperando" por uma terapêutica (a acumpuntura). Não seria um fator de ansiedade?
É possível que os pacientes dos 3 grupos acumpuntura tenham recebido melhor atenção (frequencia aos centros) em relação aos "espera".
As descrições de dor não teriam sofrido interferências do cuidado prestado?
Um cego real aqui é impossivel. No mínimo, os aplicadores da acumpuntura e pessoal circunstante sabem "quem é quem".
Observei também na descrição de características de base que os pacientes DAM (Acumpuntura real) tinham uma duração da enfermidade bastante inferior 46.2 (47.9) versus 59.9 (84.3) 51.3 (51.1) 61.5 (69.3) [Grupo de espera!] e 54.7 (64.8) [média]. Interferiu?
Computando tudo, acho que há forte evidência a favor do ORBITA (e contra o uso do Stent, NAQUELE GRUPO ESTUDADO). Mas com Stent ou sem Stent, o papel evidenciado para a Acumpuntura é, no máximo, coadjuvante e controle da dor.
Acupuntura > acupuntura sham > angioplastia = placebo.
ResponderExcluirEnfiar agulhas aleatoriamente parece melhor que angioplastia...
Difícil. Reforça a necessidade de achados serem reproduzidos por um grupo independente, não importa quão bem delineado pareça o trabalho.
Esse ceticismo natural é fundamental hoje em dia. Recentemente um filósofo da ciência, Jacob stegenga abordou está questão no livro "Medical nihilism", que podem baixar aquí clicando na foto da capa do livro e logo em get:
ResponderExcluirhttps://libgen.is/book/index.php?md5=18FB11155F27EDCE2CF4774B9D734EEB