Intenção-de-tratar é considerada a análise apropriada para testar “superioridade” em ensaios clínicos randomizados. Nesta abordagem, os indivíduos são analisados de acordo com o seu grupo de alocação original, independentemente do tratamento real recebido, evitando o viés de confusão causado pela exclusão de pacientes não aderentes (análise por-protocolo). Ou seja, um paciente randomizado para o tratamento será analisado como tratamento mesmo se não tiver realizado o tratamento; assim como um paciente randomizado para controle será analisado como controle mesmo se tiver cruzado para tratamento. Parece contraintuitivo, mas é o melhor método para evitar perda do efeito da randomização.
Por outro lado, o problema da intenção-de-tratar é o viés pró hipótese nula, pois na medida em que pacientes cruzam (crossover) para outro grupo, o efeito perceptível da intervenção se atenua, pois diminui o contraste de tratamento entre os dois grupos. Os grupos tendem a ficar mais semelhantes em desfechos.
No entanto, esta crítica é inadequada quando se trata de crossover clínico, fenômeno que será descrito nesta postagem, o diferenciando do crossover metodológico.
Esta foi a principal crítica recebida pelo ensaio clínico CABANA, publicado este ano no JAMA, que frustrou cardiologistas que esperavam ver a comprovação do benefício da restauração do ritmo sinusal, agora pela técnica de ablação, mais competente do que drogas antiarrítmicas. Como “solução psicológica” para o inconformismo com o resultado, entusiastas preferiram considerar o estudo inconclusivo, devido ao crossover de 27% dos pacientes do grupo controle, que acabaram sendo submetidos a ablação ao longo do seguimento de 48 meses, o que foi interpretado como um viés gerador do resultado negativo.
Este crossover deve ser um aspecto relevante na interpretação do CABABA? Meu argumento é que não. No entanto, independente dos objetivos didáticos dessa postagem, o estudo CABANA tem outros problemas que o tornam mais exploratório do que confirmatório: estudo "pequeno" (número de eventos), aberto, modificação a posteriori do desfecho primário. O CABANA, mesmo se fosse positivo, não seria um estudo confirmatório.
No entanto, a crítica ao CABANA tem sido concentrada no crossover, uma crítica que não considera a essencial diferença entre crossover clínico e metodológico. O primeiro deve ser considerado um viés, ocorre independentemente da resposta clínica ao tratamento alocado e mais comumente é na direção do grupo ativo para o grupo controle. Por exemplo, um paciente randomizado para um tratamento não o recebe porque ele teve uma piora do estado de saúde ou morreu antes de passar pela terapia. A eliminação desse tipo de paciente da análise torna o grupo ativo de melhor prognóstico e cria um viés em prol da rejeição da hipótese nula.
Por outro lado, proponho o termo “clínico” para um crossover do controle para o tratamento e que ocorre quando os pacientes não estão indo bem com a abordagem mais conservadora. Nesse caso, depois de tentar ser conservador, os médicos decidem mudar para o tratamento ativo porque a primeira escolha (aleatória no estudo) parece não estar funcionando bem. Este tipo de cruzamento não deve ser visto como uma limitação se o estudo testar a hipótese pragmática de “qual deve ser a primeira escolha”, em vez de “qual deve ser a única escolha”.
A base para considerar o “crossover clínico” como imparcial é a ideia de que é a escolha médica inicial que está sendo testada. É preciso saber se a conduta mais complexa deve ser a escolha inicial de tratamento. Esse teste deve levar em conta a desejada liberdade de um médico em mudar sua ideia de acordo com a evolução clínica. Por exemplo, se o paciente experimentar dificuldades para controlar a frequência cardíaca ou se tornar muito sintomático pela arritmia, o médico deve mudar de ideia e indicar a ablação. Isto não invalida o teste da escolha inicial. Apesar de 27% de crossover, pode valer a pena tentar primeiro uma estratégia mais conservadora, pois esta preveniu necessidade de ablação em 73% dos pacientes, sem aumentar desfechos clínicos.
Esta foi a mesma ideia que “protegeu” o ensaio clínico COURAGE deste tipo de crítica. O COURAGE testou a hipótese de que a intervenção coronária percutânea de rotina é superior ao manejo clínico em termos de prevenção de eventos coronarianos maiores. Foi um estudo negativo que mudou o paradigma da intervenção em pacientes estáveis.
Em COURAGE, apesar de um cruzamento de 30% do grupo controle para intervenção, o estudo não foi considerado inconclusivo. Aqueles eram pacientes que se tornaram refratários ao manejo clínico e necessitaram de terapia invasiva. Ainda assim, a abordagem conservadora valeu a pena porque funcionou em 70% dos pacientes, sem aumento de eventos cardiovasculares maiores.
As questões clínicas têm uma natureza pragmática e servem para orientar a primeira escolha do médico. A hipótese do CABANA tem uma natureza pragmática. Se CABANA fosse criado para avaliar se ritmo sinusal é melhor do que fibrilação atrial (conceito científico), o crossover seria um problema. Mas este conceito científico é óbvio e não é o motivo do estudo. A dúvida é se devemos nos aventurar a indicar de rotina controle do ritmo, ao invés adotar primeiro o mais simples controle de frequência.
Do ponto de vista da hipótese pragmática (o que devo fazer), a análise por intenção-de-tratar com crossover clínico aproxima o estudo do mundo real. Por outro lado, esta reduz a validade interna de um estudo que testa uma hipótese conceitual (lei da natureza).
Devemos evitar críticas inadequadas a estudos que têm em sua própria natureza a possibilidade de crossover clínico, pois na prática clínica os médicos devem ter a liberdade de mudar sua abordagem para a mais agressiva se a escolha conservadora não estiver funcionando bem. Mas estes médicos precisam saber se vale a pena tentar primeiro o método mais simples.
Se for um teste da primeira opção, o cruzamento clínico não é um viés, ao contrário, dá sentido pragmático ao estudo. A partir dessa percepção científica, o estudo CABANA deixaria de ser inconclusivo e ganharia valor como sugestivo da postura conservadora.
O ônus da prova está em condutas mais agressivas, pois a natureza do agressivo guarda mais consequências não intencionais do que o conservador. A lógica do pensamento não pode ser invertida. Não há necessidade da "comprovação" de ausência de benefício para que algo deixe de ser a primeira opção. A necessidade é de comprovação de benefício, sempre.
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excelente explicação, parabéns
ResponderExcluirProfessor fiquei com dúvida. Vc no inicio colocou que o problema da análise por intenção é que ela criava um viés pró hipótese nula. A impressão que tive lendo o texto é que o que cria este viés é o crossover em si e não a análise por intenção de tratar. Esta de alguma forma atenua este problema, uma vez que o paciente será analisado como fora alocado originalmente.
ResponderExcluirolá, carlos,
Excluirposso estar enganado, mas pelo que entendi, a análise por intenção de tratar pressupõe o crossover [quem foi alocado para grupo tratamento vai ser analisado como grupo tratamento apesar de não ter tratado (crossover para o grupo controle); quem foi alocado para grupo controle vai ser analisado como grupo controle apesar de ter sido tratado (como ele defende no artigo, normalmente por necessidade ou agravamento do quadro, o que determinaria crossover para o grupo controle)]
não sei se ficou claro ou se entendi a dúvida, hehe