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domingo, 12 de novembro de 2017

O Efeito Placebo dos Stents


Um trabalho científico de qualidade merece um interpretação científica de qualidade. Não é isso que vem ocorrendo com o elegante estudo ORBITA, cuja leitura sensacionalista gerou manchetes do tipo “Stents não aliviam dor cardíaca, mostra estudo” (Folha de São Paulo) ou “Stents não melhoram sintoma de angina, diz estudo” (Revista Veja).

O ORBITA é um ensaio clínico inglês, recentemente publicado no prestigioso Lancet. Dentre os inúmeros ensaios clínicos que comparam angioplastia versus controle, este é o primeiro a cegar os pacientes quanto à alocação do tratamento. 

Ensaios clínicos prévios, todos abertos, são consistentes em não demonstrar redução de mortalidade ou incidência de infarto. Por outro lado, baseado em forte lógica e em observações abertas, acredita-se que a angioplastia contribui substancialmente no controle da angina. O ORBITA é o primeiro estudo devidamente preparado a avaliar este efeito.

Após a coronariografia e demonstração de lesão funcionalmente importante pelo FFR, pacientes com angina classe II ou III foram randomizados para angioplastia versus controle, sendo os dois grupos igualmente sedados para o procedimento. Desta forma, ficaram cegos os pacientes e seus médicos quanto à verdadeira realização do procedimento. Este avanço metodológico ajustou o resultado para um esperado efeito placebo do procedimento. 

Coincidindo com a experiência clínica, o estudo demonstrou que pacientes submetidos a angioplastia desfrutaram de melhora da angina. No entanto, de forma surpreendente, essa melhora não foi significativamente superior à melhora obtida pelo fingimento da angioplastia. Subtraindo um pelo outro, não sobrou um efeito verdadeiramente decorrente da dilatação do vaso.

Dor (angina) é um tipo de desfecho reconhecidamente susceptível ao efeito placebo. Mesmo um analgésico que tenha um mecanismo real oferece um efeito placebo adicional (o que é bom). Cientificamente, precisamos reconhecer quanto do efeito é placebo e quanto resulta do mecanismo primário do tratamento (efeito direto). 

O estudo ORBITA não detectou efeito além do placebo. 

Mas o que isso quer dizer? Isso prova que a dilatação do vaso e implante de stent não oferecem efeito anti-anginoso direto?


Interpretação de Resultado Negativo


Para interpretar um resultado negativo, devemos partir de uma premissa científica básica: experimentos científicos não se prestam a provar ausência de um fenômeno. Isso é impossível, por dois motivos. 

Primeiro, a frase “demonstrar que não existe” é uma armadilha filosófica. Se não existe, não podemos demonstrar. Segundo, para provar que algo não existe precisaríamos de  uma ferramenta observacional capaz de observar qualquer fenômeno, por menor que seja,  por mais efêmero que dure, por mais escondido que esteja. Isso não é possível.

Por exemplo, não é possível provar que não existem discos voadores. Como nenhuma observação tem lente de aumento infinita, o fenômeno pode ser tão discreto que não está sendo visto. Para demonstrar ausência, precisaríamos ser capazes de observar o infinito. Ainda não somos …

Sendo assim, o ônus da prova nunca pode estar na inexistência de um fenômeno, mas sim na existência. Isso explica a sequência do teste de hipótese. A premissa natural, nossa posição inicial, é a hipótese nula. Caso se demonstre o fenômeno, rejeitamos a nulidade e adotamos uma posição a favor da existência. Se o estudo não consregue rejeitar a hipótese nula, ficamos com a premissa básica = não sei se existe = não existe até que se prove o contrário.

Portanto, devemos evitar dizer que um estudo prova que algo não tem benefício. 

Mas vamos além nesta discussão. Quando estamos diante de uma observação negativa, precisamos avaliar qual o tamanho do fenômeno que a lente de observação do estudo era capaz de perceber. Pois o estudo é negativo para este tamanho de efeito, não tendo capacidade de sugerir inexistência de efeitos menores

O desfecho primário do ORBITA era tempo de exercício no teste de esforço, um desfecho que traduz o quanto a angina limita o paciente. Por ser um desfecho de caráter objetivo, este é muito utilizado na avaliação de efeito anti-anginoso.

O ORBITA tinha poder para detectar uma melhora de 30 segundos no tempo de exercício, decorrente da dilatação do vaso: subtraindo a melhora do grupo angioplastia pela melhora do placebo, sobraria 30 segundos. Mas o que significa 30 segundos?

Os autores partiram de evidências prévias de que o uso de drogas anti-anginosas superam o placebo em 55 segundos. Espera-se que a dilatação do vaso seja mais efetiva do que drogas. Assim, era provável que o efeito do stent fosse maior que 55 segundos. Mesmo assim, o estudo se preparou para detectar uma diferença menor que esta,  a de 30 segundos. Portanto, o ORBITA tem poder para detectar o benefício típico de intervenção anti-anginosas e até efeitos menores do que esse. 

Assim, o resultado do ORBITA pode ser resumido em duas frases:

  1. Angioplastia não promove um efeito anti-anginoso tipicamente esperado.
  2. Por outro lado, o estudo não prova inexistência de efeitos menos relevantes.

Não seria científico dizer que o estudo demonstra que “stents não melhoram sintoma de angina”.

Na verdade, o grupo stent apresentou uma melhora de 28 segundos e o grupo placebo de 12 segundos. Isso gerou um incremento de 16 segundos com a angioplastia (após subtraída do efeito placebo). Porém esse pequena melhora não alcançou significância estatística, portanto não sabemos se é real ou acaso. Mas não deixa de ser um indício de que pode haver alguma melhora. 

Vale salientar que o resultado se reproduziu de forma negativa em todos os outros desfechos secundários: escore de angina, classe funcional, qualidade de vida, tempo para surgimento de isquemia no exercício, escore de DUKE, consumo máximo de oxigênio. É um estudo consistente.

E essa é uma das utilidades de desfechos secundários. Mostrar a consistência do resultado primário. Errado é procurar um resultado positivo em algum desfecho secundário quando o estudo é primariamente negativo. Mas desfechos secundários podem reforçar o resultado primário.

De fato, é difícil encontrar algo que coloque em dúvida o resultado do ORBITA, por mais inquietante que este seja. E isso fica mais claro quando analisamos com cuidado os detalhes metodológicos.


A Veracidade do Resultado

O ORBITA é um ensaio clínico randomizado, cego para paciente, médicos e avaliadores dos desfechos, com número mínimo aceitável de pacientes (200) para gerar homogeneidade de grupos da randomização, sem potencial de viés de desempenho (cegamento, drogas utilizadas de forma semelhante), risco baixo de viés de observação (desfecho primário objetivo, estudo cego), analisado por intenção de tratar. Além destas questões clássicas, vale salientar cuidados adicionais:

  • Pacientes foram testados quanto à efetividade do cegamento e o índice foi perfeito (resposta igual entre os dois grupos quando os pacientes eram perguntados em que grupo estavam).
  • Mesmo sedados, havia um isolamento acústico que reduzia a possibilidade do pacientes ouvir o som dos procedimentos.
  • Em 69% a obstrução estava na descendente anterior, a mais importante coronária.
  • Classe funcional III (angina aos mínimos esforços) estava presente em 39% dos pacientes, sendo o restante classe funcional II.
  • Todas as lesões eram confirmadas pelo FFR como hemodinamicamente importantes e a média de estenose foi 84%.
  • Pacientes que teriam alguma lesão não angioplastada foram excluídos, evitando angina residual decorrente de outro vaso.
  • O grupo sham também manteve dupla anti-agregação plaquetária.


Surpreendente?

Na verdade, o resultado não é muito surpreendente, pois dor é muito susceptível ao efeito placebo e quanto mais complexo for o procedimento, mais forte será o placebo. Comprimido azul tem placebo mais forte que comprimido branco, placebo injetável é mais intenso que placebo oral e placebo caro é mais “eficaz” que placebo barato. 

Portanto, o resultado de que stent tem efeito placebo não é surpresa e de certa forma já havia sido demonstrado. 


Em 1960 foi publicado o primeiro ensaio clínico da história a utilizar sham no grupo controle de um procedimento cirúrgico. Coincidentemente, a doença em questão era angina do peito e o estudo foi publicado no American Journal of Cardiology. O estudo foi realizado para avaliar se uma popular cirurgia na época (ligadura da artéria mamária interna) realmente melhorava angina. Na prática, a melhora da angina relatada pelos pacientes entusiasmava os clínicos. Até que cientistas (céticos) resolveram testar a verdade. Fizeram um ensaio clínico onde todos os pacientes recebiam a incisão cirúrgica, mas apenas metade era sorteada para ligadura da artéria. O resultado? Igual ao estudo ORBITA. A melhora do grupo cirurgia também ocorreu no grupo sham. 

Portanto, já sabíamos que angina é um sintoma muito susceptível ao efeito placebo de intervenções. Porém esperávamos um maior efeito direto do stent.

E como fica a prática clínica?

Na prática clínica atual, quando o paciente tem angina estável, considera-se a intervenção coronária percutânea como um meio eficaz de melhorar os sintomas, melhor do que o tratamento clínico. Essa é uma indicação frequente. Isso muda depois do ORBITA?

Para responder a esta questão, devemos utilizar o pensamento científico bayesiano, calculando o valor preditivo negativo do ORBITA. Sendo o ORBITA um estudo negativo, qual a probabilidade de inexistência de um efeito direto minimamente relevante do stent?

Valor preditivo resulta da probabilidade pré-estudo da hipótese ser verdadeira e da qualidade do estudo. Antes do estudo, a probabilidade do stent melhorar angina era alta, com base na lógica e em estudos randomizados não cegos. O ORBITA é um estudo de boa qualidade, portanto deve ser capaz de promover uma redução desta probabilidade. Mas como partimos de uma probabilidade pré-estudo alta, terminamos com uma probabilidade pós-estudo ainda razoável. Devido à probabilidade pré-teste, o ORBITA não afasta de todo alguma melhora da angina.

Por outro lado, o ORBITA é suficiente para nos alertar que provavelmente superestimamos o benefício direto do stent na angina estável. O estudo reduz o “valor” do procedimento, colocando um pouco menos de peso neste benefício dentro de uma perspectiva econômica (benefício - custo). 

Benefício = evidência clínica x preferência do paciente
Custo = custo pessoal do paciente + custo monetário do sistema. 

Valor = benefício - custo. 

Nesta equação, o “valor” do stent ficará algo menor após o ORBITA, principalmente se a preferência do paciente pender ao tratamento clínico e/ou se o custo pessoal do paciente for individualmente grande (risco de complicações, por exemplo).

Há sempre uma questão filosófica quanto ao placebo, que já abordamos nesse Blog: se placebo promove uma melhora real, não poderíamos fazer uso disso? Bem, é interessante desfrutar do placebo quando este incrementa um tratamento que já tem efeito direto. No entanto, entraremos em um dilema ético ao propor “simular” para o paciente que algo funciona apenas para obter um efeito placebo. É uma linha tênue que se desenha entre o adequado e o inadequado.

Epílogo


A elegância do ensaio clínico ORBITA nos faz lembrar que medicina baseada em evidências nada mais é do que medicina baseada em humildade. A humildade de reconhecer que muito do que fazemos possui impacto menor do que imaginamos. Nem por isso fecharemos com a negação plena do efeito anti-anginoso do stent. Este efeito ainda é provável.

“Nudge” é um termo proposto pelo ganhador do prêmio Nobel de economia deste ano. Richard Thaler demonstrou que o pensamento humano é anti-econômico, superestimando ganho e subestimando custos. "Nudge" é um empurrãozinho que realoca nosso pensamento em uma direção menos enviesada. O resultado do ORBITA funciona como um “nudge” na direção do pensamento clínico racional.

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segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Acupuntura é melhor do que stent no tratamento da angina estável?


Como cardiologista, não foi fácil aceitar o resultado negativo do ensaio clínico ORBITA há dois anos. Angioplastia coronária com stent não controla a angina? O que me salvou foi minha tendência ao ceticismo científico e amor pela hipótese nula. Sendo assim, consegui na época escrever um filosófico post analisando o valor do ORBITA. Para o tamanho do efeito assumido naquele ensaio, a angioplastia não é eficaz e devemos reconhecer o papel do placebo como parte integrante da eficácia de qualquer terapia.

Como cardiologista, acabei de ser apresentado pelo JAMA Internal Medicine a um ensaio clínico randomizado chinês, que supostamente demonstrou a eficácia da acupuntura no controle da angina estável, em comparação com o placebo.

Assim é demais para mim. Eu tenho que aceitar que stent não é um tratamento muito eficaz para controle da angina estável, e ao mesmo tempo aceitar a acupuntura como uma terapia válida?

De início, não consegui controlar meu viés contra este estudo chinês. Estava severamente inclinado a ler o estudo sem a devida imparcialidade. Mas depois de uma meditação (há evidência disso?), me tornei mais imparcial e capaz de ler o artigo tecnicamente.

Para minha surpresa, encontrei um artigo bem escrito, de acordo com os padrões CONSORT, que preenche os critérios básicos para baixo risco de viés e erros aleatórios. É um ensaio bem dimensionado, com suposições corretas no cálculo do tamanho da amostra, fornecendo poder suficiente para testar a hipótese e precisão aos intervalos de confiança. Metodologia realizada de acordo com a definição a priori publicada em clinicaltrial.gov, sem alteração no protocolo. Conclusão baseada em desfecho primário previamente definido. Randomização central e fechada, dois grupos controle com sham (acupuntura não-meridiana e simulação de acupuntura), análise de intenção de tratar, sem perda de seguimento. Portanto, à primeira vista, parecia ser baixo risco de resultado falso positivo.

Mesmo? Qual é o valor preditivo positivo desse estudo em particular?

Embora a metodologia de um estudo deva ser avaliada de forma independente, seu valor preditivo deve ser avaliado no contexto da probabilidade pré-teste de uma hipótese verdadeira. A probabilidade de pré-teste depende da (1) plausibilidade e (2) quanto os dados anteriores apóiam a hipótese.

Primeiro, é bastante plausível que a abertura de uma coronária obstruída diminua os sintomas da isquemia miocárdica. Embora não equivalente à certeza no paradigma do pára-quedas, a melhora dos sintomas pelo implante de stent coronário é quase óbvia. Por outro lado, melhorar os sintomas de isquemia miocárdica através da introdução de agulhas em uma parte remota do corpo é menos óbvia.

Aprendi que os "meridianos" são baseados na trajetória dos nervos aferentes a serem estimulados pelo procedimento. Dá uma lógica básica à acupuntura, portanto não é o mesmo que a homeopatia. Mas a trajetória do nervo sozinha não é suficiente para gerar plausibilidade em relação a eficácia clínica. Precisamos avançar nos mecanismos. 

Sendo assim, perguntei a dois amigos acupunturistas qual é o mecanismo de ação da acupuntura. Um primeiro me deu vários mecanismos diferentes e reconheceu que não tinha certeza; o outro prometeu “conversar comigo depois”… ainda espero.

Isso confirma minha impressão epistemológica de que a eficácia da acupuntura no tratamento da angina tem baixo nível de plausibilidade biológica. Na biologia, os mecanismos da doença são complexos e multifatoriais. Por outro lado, o verdadeiro mecanismo de um tratamento eficaz está normalmente relacionado a apenas uma via. Propagandas fantasiosas costumam propor várias vias para a eficácia de um mesmo tratamento, sem perceber que essa lógica vai de encontro com a filosofia da ciência. É improvável que uma ferramenta criada para uma função surja com uma segunda ou terceira capacidade de interferir no desfecho (os efeitos pleiotrópicos). Mas somos frequentemente apresentados a vários mecanismos no intuito de gerar uma impressão de terapias onipresentes. 

Sabendo-se que a criação de uma ferramenta é baseada em um mecanismo, seria muita coincidência que a mesma aparecesse com um segundo mecanismo benéfico para o qual não foi criada. Parece estranho, quase um milagre, que uma intervenção como acupuntura  tenha tantas vias benéficas (imunológicas, anti-inflamatórias, melhora do fluxo sanguíneo, relaxante muscular, melhora da mobilidade muscular). Os tais efeitos pleiotrópicos das coisas são ou mero reflexo do efeito principal ou fantasias teóricas.

Em relação à evidências empíricas prévias sobre acupuntura em angina estável, surpreendentemente, encontrei no BMJ uma revisão sistemática de ensaios clínicos randomizados que mostra efeito positivo consistente (sem heterogeneidade) dessa terapia no controle da dor. No entanto, todos os ensaios foram classificados como alto risco de viés devido à falta de cegamento. Um estudo com alto risco de viés não serve para aumentar a probabilidade pré-teste de uma hipótese ser verdadeira.

Finalmente, as pessoas costuma usar o argumento da "terapia milenar" em favor da acupuntura. Bem, eu não sei de nenhum "critério milenar" a ser levado em consideração para a probabilidade das coisas serem verdadeiras. Afinal, mitos também são milenares.

Assim, de forma conservadora, devemos considerar a eficácia da acupuntura no controle da angina como de baixa probabilidade pré-teste. Com isso, não estou afirmando que não existe, apenas colocando que não temos subsídio para considerar provável.

Quando encontramos uma evidência muito boa em favor de uma hipótese improvável, a probabilidade final não será alta. Talvez a boa evidência aumente a probabilidade para moderada, mas ainda precisa de confirmação (reprodutibilidade).

Mas o estudo chinês realmente representa uma boa evidência? Assim decidi comparar as metodologias do estudo ORBITA versus o estudo chinês. Claramente, ORBITA tem um maior respeito pela hipótese nula. Duas questões, não avaliadas pela checklist tradicional de risco de viés:

Subjetividade do desfecho primário: enquanto ORBITA escolheu um critério objetivo (tempo de exercício no teste de esforço), os chineses escolheram um critério subjetivo autorreferido (número de eventos de angina por semana).

Eficácia de cegamento: enquanto ORBITA relatou o índice de cegamento, o ensaio chinês não se incomodou com isso. Nesse caso, devemos considerar que o acupunturista não era cego e o paciente estava plenamente consciente. Quão cego realmente foi este estudo de acupuntura? Faltou a avaliação pelo índice, em que se pergunta ao paciente em que grupo ele acha que está, e a frequência de resposta deve ser igual entre os grupos de alocação. 

No final, embora cardiologista, devo reconhecer como superestimado o valor do implante de stent coronário no tratamento da doença coronariana estável. Quanto à acupuntura, não há base para que esta se torne o futuro da intervenção coronária.

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domingo, 23 de junho de 2019

MR-INFORM Trial: uma profecia autorrealizável


Há estudos enigmáticos, cujo significado não está explícito e custamos a compreender o sentido à primeira vista. Na leitura de um artigo científico, além de nosso conhecimento metodológico, devemos fazer uso de nossas sensações. E quando a sensação inicial for confusão mental, devemos redobrar a atenção: este estudo faz sentido? 

Neste momento, temos o papel de discriminar estudos com sentido implícito (não evidente à primeira vista) de estudos desprovidos de sentido científico. Vale lembrar a lendária frase de Douglas Altman em 1994, “precisamos de menos estudos, estudos melhores e feitos pelas razões certas” que ganha relevância neste contexto. Assim como o ensaio “Why most clinical research is not useful” em que Ioannidis estima que a maioria dos recursos são desperdiçados em estudos inadequados ou sem sentido.

Tenho mais facilidade de pescar exemplos em minha área de interesse clínico, mas a validade didática deste texto é genérica. Comentaremos nesta postagem um dos mecanismo por trás de estudos inúteis: a profecia autorrealizável. Rotulo um estudo de profecia quando seu resultado é a concretização do óbvio. 

O mecanismo da criação de profecias está na escolha do desfecho. Temos dois tipos de profecias, aquela que pretende mostrar diferença (superioridade) ou aquela que almeja quase semelhança (não-inferioridade). Para dissimular superioridade, precisamos escolher um desfecho que seja induzido no grupo controle pelo caráter aberto do estudo: desfechos susceptíveis a interpretação ou criados pelo médico (como indicação de procedimento no grupo controle que não realizou o procedimento) - vide post antigo. Para dissimular semelhança, é só escolher um desfecho que não seja influenciado pela intervenção. Claro que sua incidência será igual nos dois grupos. É o caso que discutiremos. 

É como se comparássemos angioplastia coronária versus tratamento clínico quanto ao desfecho artrose de joelho. Claro que tratamento clínico seria não-inferior (igual) a angioplastia para dor no joelho. 

Vejamos o exemplo de estudo MR-INFORM, publicado nesta semana na revista médica de maior impacto: New England Journal of Medicine. Este é um estudo de não-inferioridade, que pretende demonstrar em pacientes com angina estável que uma estratégia de realizar coronariografia (seguida de angioplastia) apenas se houver isquemia importante na ressonância magnética é não-inferior à estratégia invasiva de realizar coronariografia em todos os pacientes, seguida de FFR (avaliação hemodinâmica da lesão), que se positivo induziria angioplastia. Na primeira estratégia, o gatekeeper  (filtro) da angioplastia está antes do cateterismo, portanto muitos pacientes não precisariam chegar ao exame invasivo. Na segunda estratégia, o gatekeeper está depois do cateterismo, portanto todos recebem esse exame. Essa seria uma vantagem da estratégia da ressonância, pois a torna menos invasiva, justificando o desenho de não-inferioridade: aceitar um certo grau de inferioridade como se fosse algo semelhante, pois existe uma vantagem prática que compensa. 

Agora vamos ao mecanismo da profecia neste estudo. 

Percebam que são duas estratégias que culminam em angioplastia. A potencial diferença de resultado clínico entre as duas reside na possível diferença de angioplastia. Portanto, para garantir o resultado igual entre os grupos, precisamos escolher desfechos que não sejam influenciados pela angioplastia no cenário estável. Como todos sabem, de forma reprodutível em diferentes estudos, morte e infarto não são prevenidos por angioplastia. Estes desfechos são insensíveis à intervenção. 

Outro mecanismo pelo qual desfechos deste tipo poderiam ser influenciados pela estratégia mais invasiva, seria o conhecimento de uma lesão obstrutiva na coronariografia influenciar um melhor tratamento clínico. No entanto, esses benefícios indiretos são muito pouco prováveis de resultar em diferenças clínicas. O racional desta afirmação está nos tipicamente modestos tamanhos de efeito dos tratamentos farmacológicos em doenças crônicas (redução relativa do risco em torno de 25%) vistos em desenhos que promovem quase um contraste total entre os grupos de tratamento: a randomização para tratar ou não tratar. Quando randomizamos para outras coisas que indiretamente podem ou não influenciar em um pouco mais de tratamento em algum grupo, qualquer resultado em desfecho clínico ficaria quase imperceptível. Esse foi o racional que usamos em postagem prévia quando interpretarmos o SCOT-HEART como "bom demais para ser verdade" (vide postagem prévia). 

Portanto, antes do estudo realizado, já poderíamos saber que a estratégia candidata a não-inferior não causaria mais morte ou infarto. 

Para garantir ainda mais a profecia, o desfecho primário composto do estudo teve um terceiro componente: necessidade de repetir revascularização no vaso primariamente revascularizado (target vessel revascularization). A dúvida da não-inferioridade reside no caráter mais conversador do braço ressonância, que poderia gerar menos angioplastia. Ora, se esse grupo tiver menos vaso angioplastado, obviamente terá menos vaso reangioplastado, pois para ser reangioplastado o vaso precisa primeiro ser angioplastado primeiro. A redundância da minha sentença é proposital, pois é da redundância que surge a profecia. Colocado de outra forma, se o grupo invasivo tem mais vaso angioplastado, terá mais vaso reangioplastado, e esse maior número de desfechos falaria contra o grupo coronariografia e a favor do grupo candidato a não-inferioridade. 

De fato, no resultado do estudo, o número de revascularizações do vaso-alvo no grupo do FFR foi maior do que o dobro do grupo ressonância, o que não ocorreu com morte e infarto. No final, a incidência do desfecho composto foi semelhante entre os dois grupos (3.6% versus 3.7%). 

Qual seria o desfecho adequado?

Tenho dúvida sobre a utilidade deste estudo, mesmo que não fosse uma profecia auto-realizável. Mas se tivesse que fazer este estudo, usaria como desfecho primário controle da angina. Ou seja, se um braço do estudo tem a tendência de promover menos angioplastia, este poderia ser inferior no controle da angina, pois angioplastia controla angina (seja por efeito direto, seja por efeito placebo - vide estudo ORBITA). Angina é um desfecho sensível a um procedimento, que poderia vir a ser menos frequente no braço ressonância. 

De fato, este grupo teve 47 angioplastias a menos, 9% em termos absolutos. Observem que não é uma diferença muito grande e ambos os grupos tiveram o mesmo sucesso em controle de angina. Como esse não foi o desfecho primário, não pode ser visto como um dado confirmatório. No entanto, julgo ser uma informação exploratória mais útil do que o óbvio do desfecho primário. 

Este trabalho nos traz outras provocações interessantes a serem comentadas, como impacto do pequeno número de desfechos no desenho de não-inferioridade, a inversão da lógica da não-inferioridade (na verdade, o ônus da prova está na superioridade da conduta mais complexa) e a confusão entre avaliação funcional (clínica) e avaliação de isquemia (ressonância) ou hemodinâmica (FFR). Mas deixarei estas questões para outra oportunidade, a fim de manter o foco da discussão na profecia autorealizável. 


A Utilidade das Profecias e os Sequestros dos Paradigmas

Demonstrar o óbvio não tem valor científico, mas tem valor prático: ao publicar uma conclusão positiva a favor de uma conduta, esta passará a ser mais utilizada. Isso funciona devido ao  sequestro do paradigma da medicina baseada em evidências: criar uma evidência óbvia que “sugestione” (tradução do termo nudge, usado em ciência do comportamento) mudança de comportamento.

Isso funciona devido à infeliz confusão entre medicina baseada em evidências e medicina baseada em regras. Na primeira, tomamos condutas individuais norteados por conceitos científicos. Na segunda, condutas específicas são testadas por trabalhos e copiadas para a prática clínica. Estudos se tornam “recomendações”, quando na verdade estudos devem se tornar princípios norteadores. Medicina baseada em regras pode ser também entendida como medicina copiada de artigos. Ao criar um artigo positivo, a conduta testada tende a ser copiada de forma mais efetiva no mundo que vive o paradigma da regra médica. 

Mas se utilizamos o princípio do conceito científico, perceberemos que já temos conhecimento para utilizar ressonância de perfusão quando julgarmos adequado avaliar isquemia antes de realizar uma coronariografia. Para tal, precisamos saber a acurácia da ressonância para pesquisa de isquemia, já validada cientificamente e com resultados superiores aos demais métodos não invasivos. 

O paradigma de testar “utilidade” de um método diagnóstico ou prognóstico (além de testar acurácia) traz o advento de ensaios clínicos randomizados para diferentes estratégias de investigação, que é uma evolução. No entanto, percebo que este advento vem sendo sequestrado para outros fins (vide exemplos prévios). 

Conflito de interesse é algo intrínseco da mente humana, sendo esperado que especialistas superestimem o valor das suas ferramentas, o que Kahneman chamou de viés da habilidade. Os autores deste trabalho como especialistas em ressonância magnética são naturalmente enviesados em prol da ressonância. Nossos vieses implícitos (implicit bias) nos levam a sequestrar o método científico para demonstrar o que desejamos. Isso não é algo particular da área cardiológica, é universal. Nem sempre representa uma ato de plena consciência. Sem querer parecer inocente, penso que muitos entram nessa tendência sem perceber que o entusiasmo é inimigo da integridade científica. 

A publicação pelo New England Journal of Medicine de tamanha profecia autorrealizável é uma demonstração do poder do lobby médico. O artigo se aproxima mais de um marketing pseudo-científico do uso de um método de grande valor (vide acurácia da ressonância), que se torna banalizado por uma política de imbecilização do leitor

No cerne das profecias e distorções científicas, está a perda de percepção de que o método científico, em sua pureza original, foi criado para refutar ideias, que viriam a ser consideradas verdadeiras se sobrevivessem a este processo. No entanto, o método um dia criado por Ronald Fisher e aprimorado por tantos filósofos da ciência tem sido sequestrado para comprovar ideias falsas ou obviamente verdadeiras. 

Talvez parte do tempo que gastamos discutindo recomendações médicas como receitas deva ser investido na filosofia da ciência.

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