quinta-feira, 31 de maio de 2018

Práticas Integrativas no SUS - quem são os dogmáticos?



A incorporação das fantasiosas "práticas integrativas" no Sistema Único de Saúde é mais um exemplo de medicina baseada em crença, situação em que condutas sem evidências de eficácia são suportadas pelo forte lobby da fé. Recursos gastos em fantasia deveriam ser melhor aplicados a terapias de eficácia comprovada. 

Se seguisse o fetiche do pensamento médico baseado em evidências que tanto me caracteriza, esta postagem seria concluída pelo parágrafo acima. Mas hoje farei diferente, pois ao observar a fervorosa reação contrária de amigos que primam por um pensamento racional, pensei: quem são os dogmáticos? E foi no meio desse pensamento desordenado que percebi mais uma vez que todos nós temos crenças internas que enviesam nossa interpretação da realidade. 

Em um primeiro impulso, é natural a tendência de mentes científicas rejeitarem a resolução do Ministério da Saúde. Em um segundo momento, temos duas opções: atacar a resolução de forma inquisitória ou analisar cientificamente o mérito da questão.

Nesta postagem opto pela segunda alternativa, onde desenvolverei um pensamento regido pelos conceitos científicos de "efeito futuro" versus "efeito simultâneo" de um tratamento.

Assim como devemos ser céticos no acreditar (fé) em condutas profissionais, devemos também evitar a confusão entre a valorização da dúvida e a certeza de inexistência. 

O rol de “práticas integrativas” incluídas pelo SUS contém condutas diferentes, com propriedades diferentes no que tange o pensamento científico.

Por exemplo, homeopatia é uma coisa, música ou aromaterapia são outra coisa. Mas como?

A diferença está (1) na forma e (2) no efeito que cada um deles se propõe a oferecer.

A Forma

Homeopatia se fantasia de remédio, é oferecida sob a forma de comprimidos. São comprimidos de “nada”, pois não restou mais nenhuma molécula da substância original depois de tantas diluições. Argumentam que sobra a energia, pode ser. Mas porque fantasiar a energia de comprimido? Energia transcende o físico, pode ser muito bem administrada pelo pensamento ou pelo simples tocar no paciente.  

Por outro lado, os outros dois exemplos não se fantasiam de remédio, assumem o que são. Música é audição, aroma é olfato. Aromaterapia não se propõe que as moléculas do aroma penetrem no organismo e promovam reações químicas com plausibilidade para cura. Estes são tratamentos sinceros, que não se disfarçam de comprimidos.

O Efeito

Neste caso, precisamos discutir a diferença entre “efeito futuro” e “efeito simultâneo” de uma terapia. Efeito futuro é o que denominamos de “desfecho”. Para afirmar que um tratamento melhora o desfecho do paciente, precisamos de evidências que nos tragam a probabilidade de melhora. Evidências que surgem de trabalhos longitudinais, que acompanham o paciente a partir da intervenção para o futuro. Para afirmar que um cansativo tratamento com pseudo-comprimidos vai melhorar a alergia de uma paciente, precisamos predizer, pois a melhora ocorrerá no futuro. Precisamos portanto de evidências científicas empíricas, pragmáticas. 

Quando homeopatia é avaliada por trabalhos com baixo risco de viés, seu efeito é igual ao placebo. Claro, tem trabalhos positivos a respeito da eficácia da homeopatia, assim como tem estudo positivo para qualquer coisa que queremos afirmar. A análise crítica está no risco de viés e risco de erro aleatório, uma análise que deve ser independente de nossas crenças internas. 

Por outro lado, há práticas cujo efeito é “simultâneo”. Estas não precisam de predição probabilística, pois o efeito ocorre durante a conduta. Quando recebo uma massagem, sei se estou experimentando bem estar durante a aplicação deste tratamento. Portanto, posso fazer uma primeira sessão e se gostar continuo o tratamento; se não gostar, interrompo o tratamento. O efeito proposto é o bem estar. Estas são situações em que podemos usar estudos de N = 1, pois a evidência não é preditiva, é definitiva. A evidência não é generalizável, é individual.

Portanto, a depender do desfecho proposto (bem estar), é anticientífico criticar aromaterapia. Pode ser muito benéfica para alguns, nada benéfico para outros. Fica a gosto do cliente. Tal como ir ao cinema neste feriado, tomar um vinho (moderadamente) com amigos, dar uma corrida na orla. 

A este respeito, tenho escrito que corrida não promove diretamente redução de peso, nem redução de risco cardiovascular (efeitos futuros). Mas dá prazer a quem gosta de correr (efeito simultâneo). Isso basta.



Pensemos em pacientes com anemia falciforme, doença de difícil controle, que pode promover grave sofrimento crônico. Estes pacientes, usualmente tratados pelo SUS, são sofredores crônicos. Muitos deles poderiam ter seu sofrimento amenizado com uma postura acolhedora, com a oferta de um grupo de meditação, um grupo de exercício lúdico, ouvirem boas músicas (jazz de preferência) ou experimentarem aromas agradáveis. Para alguns, certas práticas integrativas teriam grande impacto! Grande tamanho de efeito.

Este é o mesmo motivo pelo qual pacientes em estágio avançado de câncer procuram terapias complementares. Na verdade, muitos destes pacientes não estão à procura da cura por métodos fantasiosos, estão a procura do bem estar espiritual que estas condutas podem lhes trazer. 

Caso isso fosse (fosse!) bem implementado, não só traria conforto para alguns, mas também melhoria a auto-estima dos pacientes do SUS, que normalmente vêem nosso universal sistema de saúde com desprezo. Sentem-se desamparados. Tais condutas, acolhedoras, poderiam funcionar como se os postos de saúde passassem a ser equipados com bonitos móveis, ar condicionados, limpeza impecável. Tudo isso tem impacto coletivo, na percepção do quanto o paciente está sendo cuidado pelo sistema. 

O Custo

Até aqui, argumentei sobre a potencial efetividade individual de algumas práticas integrativas. Mas pequei por ainda não ter mencionado a questão do custo monetário. Quanto custarão essas terapias integrativas ao nosso sistema de saúde de recursos tão limitados?

Esta questão precisa ser analisada com critério, antes de nos posicionarmos contra ou a favor das práticas.

Primeiro, quanto vai custar? Muito ou pouco? Minha resposta é não sei. Mas "não sei" é diferente de se fechar para a questão. Eu ficaria inicialmente com o benefício da dúvida. 

Aqui se aplica o princípio do "ceticismo reverso": o benefício da dúvida não serve apenas para a existência do fenômeno, podemos também valorizar a dúvida quanto à inexistência, desde que a hipótese tenha uma razoável probabilidade pré-teste.

Uma ideia: será que não poderíamos treinar os próprios enfermeiros ou técnicos que já trabalham nos postos? Segundo, antes de criticar o eventual custo de implementar aromaterapia no SUS, precisamos criticar os muitos tratamentos de altíssimo custo e baixo impacto, que servem mais para dar “segurança perceptível” ao paciente, do que oferecer benefício clínico. São muitos os exemplos de tratamentos de alto custo substituirem terapias usuais de menor curso, seja por estar no rol do SUS, seja porque um inocente juiz defere uma liminar baseada em relatório médico. Talvez essa segurança perceptível viesse a ser substituída pela sensação de acolhimento recebida por um paciente terminal que não precisa de mais uma quimioterapia para prolongar sua vida em poucos dias (se prolongar), mas sim de uma aromaterapia. Desde que não se proponha que o aroma vá curar o câncer. Seria apenas um aroma agradável, oferecido por um sistema de saúde que preza pelo conforto dos seus pacientes. 

Portanto, custo monetário é relativo, talvez no mundo ideal a implementação de condutas integrativas e paliativas possam promover uma redução substancial do custo de tratamentos fúteis e muitas vezes prejudiciais aos pacientes. 

Que tal trocar toque retal por musicoterapia? Seria um troca bastante econômica (pensamento não monetário) no homem assintomático. Quem achou que isso é ironia sem base científica, leia a postagem o Crepúsculo do Novembro azul, onde discutimos sobre rastreamento de câncer de próstata.

Sim, estou viajando em possibilidades. Nada disso pode ocorrer e as terapias integrativas virem a ser apenas um custo adicional mal aplicado, que mais serve para promover o pensamento mágico do que para acolher pacientes. 

Portanto, não tenho posição a respeito da decisão do Ministério da Saúde. Se tivesse que decidir, provavelmente eliminaria algumas dessas práticas e outras buscaria mais detalhes para me posicionar. Neste momento, pouco conheço da maioria dessas práticas. Minha discussão aqui é mais conceitual, abstrata, científica, do que pragmática.

Mas não começaria por rejeitar ideias de forma dogmática. Pode ser que por trás das ideias não haja só um ministro mal informado. Pode ser que haja técnicos bem intencionados, com uma certa racionalidade.

Científico versus Ideológico

Confesso meu temor de que meu discurso científico vire ideológico. Por isso tento explorar o contraditório. "Trair minha tradição", como diz o rabino Nilton Bonder em seu livro "A Alma Imoral". 

Neste caso, podemos considerar o científico como imoral, contraditório. O científico é aquele menino malicioso que teve coragem de dizer "o rei está nu". O dogmático assume a posição da tradição moralista. 

O ceticismo está na base do pensamento científico. Mas ser cético não é desacreditar. É explorar. A exploração desta questão tem como pensamento central os conceitos epidemiológicos de "efeito futuro" e "efeito simultâneo". 

Agora vou ali, dar uma corridinha na orla de Salvador.


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sábado, 5 de maio de 2018

Supremo Baseado em Evidências (NNJ = Número Necessário a Julgar)



Em recente sessão do supremo a respeito de um certo habeas corpus, o Ministro Barroso exerceu direito baseado em evidências. Foi o único ministro que citou dados probabilísticos que nos permite fazer um raciocínio médico a respeito da questão.

Digo raciocínio médico, pois a palavra "medicina" vem do latim Mederi, que significa "saber o melhor caminho". Este é, portanto, um termo abstrato que vai além de questões de saúde. Medicina é escolher o caminho em situações de incerteza. 

Segundo evidências apresentadas pelo Ministro, dos recursos apresentados ao Supremo, apenas 0,04% geram absolvições. 

Baseado nisso, podemos criar um equivalente do NNT  (número necessário a tratar) para a justiça: o NNJ, número necessário a julgar

Assim como o NNT, NNJ = 100 / benefício absoluto.

NNJ = 100 / 0,04 = 2500 réus precisam ser levados até o Supremo, para absolver 1 réu.

Supondo que esse ajuste de sentença seja sempre para melhor, beneficiaremos 1 réu, ao custo de deixar 2499 temporariamente impunes até o julgamento no Supremo. Essa é a análise médica da questão. 

Para "saber o melhor caminho" frente a situações de incerteza (medicina), deve-se levar em conta dois pilares de pensamento: o probabilístico (0,04%) e o econômico (1 benefício para 2499 impunes - relação benefício/custo).

Sendo assim, Barroso é o melhor médico dentre os ministros do supremo, pois o pensamento médico dever ser focado na probabilidade de desfecho por parte do paciente e no quanto este paga por um desfecho mais favorável. Probabilidade é pragmatismo.


Pragmatismo versus Principialismo

Podemos observar que boa parte da discordância entre os ministros do supremo reside na dicotomia entre principialismo e pragmatismo. Muito preferem priorizar a constituição independente do resultado prático, enquanto outros interpretam a constituição de forma mais flexível, em prol de se fazer justiça. 

Em direito, as duas ideologias têm um valor equivalente e se complementam pela equilibrada polarização dos juízes. Por outro lado, em medicina a forma pragmática de pensamento deve dominar a decisão individual, que visa um melhor desfecho para o paciente. Explicaremos à luz da medicina baseada em evidências. 

Em direito, uma decisão quanto a um caso específico nunca é restrita ao indivíduo, tendo também um simbolismo coletivo que exerce um impacto social. Neste caso, pensar em probabilidade ou prever o impacto de uma decisão é difícil, pois no âmbito social há grande imprevisibilidade de consequências não intencionais. Sendo assim, o pragmático dá espaço aos princípios. Basear-se em princípios constitucionais gera menor variabilidade de resultados, o mundo fica mais previsível. Por este motivo, alguns ministros são inflexíveis na interpretação da constituição. 

O ex-ministro do supremo Aires Brito, constitucionalista e poeta, escreveu elegantemente: "não tenho metas ou objetivos a alcançar, tenho princípios e na companhia deles nem me pergunto onde vou chegar."

Vejam um exemplo biológico em que o pragmatismo poderia ter consequências desastrosas. Do ponto de vista pragmático, poderíamos promover a eugenia, esterilizando indivíduos violentos, corruptos, desonestos ou oligofrênicos. Isso geraria uma humanidade de melhor qualidade. Porém esta conduta um tanto nazista poderia ter consequências não intencionais desastrosas. Seria o caso de um pragmatismo de alto risco social. Assim, prefere-se priorizar princípios éticos. 

O principialismo ganha algum valor nas decisões médicas, apenas quando estas têm um caráter coletivo (políticas de saúde). Embora eu defenda um maior pragmatismo nas decisões do SUS (eliminar condutas de baixo valor, pensar em custo-efetividade), reconheço que há um valor social no princípio da uma universalidade plena.

Por outro lado, decisões médicas individuais devem ser pragmáticas em sua essência, e para isso baseadas em probabilidade. Em medicina, devemos estar atentos para o frequente fenômeno da violação do pragmatismo em prol de um principialismo inútil. Isso se faz presente quando ...

  • Quando os princípios são tradições médicas sem base em evidências empíricas, porém aplicadas na rotina como se fossem condutas sagradas.
  • Quando os princípios estão escritos em pseudo-constituições que tomam a forma de Diretrizes Médicas, que frequentemente geram recomendações de pouca base em probabilística. 
  • Quando médicos justificam sua conduta não pela probabilidade de desfecho do paciente, mas porque é "recomendação classe I na diretriz".
  • Quando médicos fazem medicina baseada em regras: LDL > 70 + risco cardiovascular intermediário = estatina; triarterial ou tronco de coronária = cirurgia de revascularização. Mesmo que regras sejam baseadas em trabalhos científicos de qualidade, medicina baseada em regras não é o mesmo que medicina baseada em evidências. O "baseado" conota que evidências são meras probabilidades que nos nortearam na decisão individual. Precisamos calcular probabilidades individuais, nos baseando em conceitos científicos, individualidade clínica e valores dos pacientes. Fazendo assim, precisaríamos de menos "receitas de bolo".
  • Quando médicos esquecem o raciocínio econômico, pensando apenas no benefício a ser alcançado e desprezam o custo (não monetário) a ser pago pelo paciente. 


A Incerteza

Um grande equívoco do pensamento médico é de procurar a conduta certa.

"Saber o melhor caminho" não é o mesmo que "saber o caminho certo". "Melhor caminho" tem conotação probabilística. Podemos escolher o melhor caminho para um destino, uma via cujo tráfego seja usualmente muito melhor do que as demais vias. No entanto, em um dado dia pode ter ocorrido um acidente nesta via, tornando aquele caminho o pior naquele momento. Observem que, do ponto de vista pragmático, naquele dia o melhor caminho foi o caminho errado. "Melhor caminho" significa apenas o caminho de melhor probabilidade. 

Isto justifica o uso de evidências (medicina baseada em evidências), pois as probabilidades estão nas evidências. Foi o que Barroso fez, ao acessar a probabilidade de mudança de sentença nas instâncias superiores.

E isto deve estar no cerne do pensamento médico. A priori é impossível saber o caminho certo, podemos apenas identificar o caminho com maior probabilidade de sucesso. Só saberemos se a decisão é certa ou errada a posteriori, depois do seguimento prospectivo. Medicina é a ciência da incerteza.

Esta falta de percepção faz com que médicos entrem em uma platônica tentativa de identificar a conduta certa, criando dilemas maniqueístas inúteis, regras platônicas e se afastando do pensamento probabilístico. É uma postura anti-pragmática.


Assimetria de Decisões

Em seu novo livro "Skin in the Game”, Nassim Taleb discute assimetria de decisões, quando alguém decide a respeito de algo que não impacta na sua própria vida. Um consultor da bolsa de valores que orienta um investidor tende a tomar decisões menos econômicas quando o resultado do investimento não impactará em seus ganhos financeiros. Este consultor não decidirá tão bem quanto se sua “pele estivesse no jogo”. 

Nós médicos temos esse mesmo problema. Como não é nossa pele que está em jogo, nossas decisões podem priorizar mais nossos interesses intelectuais do que o desfecho do paciente. O paciente muitas vezes percebe isso e devolve: "Doutor, se fosse seu pai, o que você faria?" Ao falar isso, o paciente demonstra sentir que não estamos decidindo pela probabilidade do desfecho, mas sim em prol de nossas diretrizes, das normas de nossas especialidades ou simplesmente em prol de minhas crenças não probabilísticas. Sentem que não estamos percebendo o preço que eles pagarão por nossa recomendação que pode estar sendo anti-econômica. 

A não ter a pele em jogo, somos mais vulneráveis a decisões anti-econômicas, pois não somos nós que pagamos o preço. Não ter a pele em jogo nos torna menos pragmáticos. 

A Medicina ...

O interesse do paciente está no desfecho favorável. Este é o fim, enquanto o meio são as evidências que nos apontam para as probabilidades de cada caminho. "Medicina baseada em desfecho" é uma expressão mais cristalina para sentido pragmático da medicina.

Não sei se o voto de Barroso foi correto... Mas ele nos deu uma aula de medicina. Medicina que não precisa ser uma apologia a evidências, mas ao desfecho do paciente. Barroso nos deu uma aula de medicina baseada em desfecho.


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