domingo, 30 de dezembro de 2012

Santa Claus Gets a Check-Up



Como resposta a nossa última postagem, nosso colega Mário Coutinho (MD, PhD) nos enviou este vídeo que utiliza o check-up de Papai Noel como tema de propaganda da indústria do check-up. Faz exatamente o raciocínio contrário ao nosso, utiliza o apelo do esforço que Papai Noel faria no Natal para promoter o idéia do check-up cardiovascular. Como disse Mário Coutinho, "a indústria do check-up não se importa em parecer ridícula."

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Papai Noel precisa de check-up antes do Natal?



Na noite passada, Papai Noel trabalhou 39 horas contínuas, entregando presentes a 700.000.000 de crianças, percorrendo uma distância de 342.510.000 Km ao redor do mundo, carregando um saco de 416.000 toneladas (assumindo que um presente médio pesa 660g) - segundo fonte recente.

Embora este velhinho tenha passado por todo este esforço, até então não ouvimos notícia de que Papai Noel infartou e está internado na UTI “de um hospital privado na cidade”. Talvez tudo tenha dado certo, pois Papai Noel seja precavido e tenha feito seu check-up cardiológico no início de dezembro, como muitos costumam fazer. Isso é o que pensaria o senso comum.

Entendam por check-up a série de exames realizados no intuito de detectar perigosas doenças ocultas. Daquele tipo que costumamos ver propagandas em revistas alocadas nas poltronas das principais linhas aéras brasileiras, usualmente encartes relacionados a hospitais paulistas.

Contrariando as expectativas, Papai Noel afirmou em entrevista recente de que não costuma fazer este check-up antes do Natal, o que soou como uma certa irresponsabilidade do bom velhinho.

Sendo assim, fica a questão: Papai Noel deveria ou não deveria ter feito um check-up cardiovascular em dezembro?

Considerando sua idade, 550 anos, é grande a probabilidade de doença coronária oculta. Desta forma, se Papai Noel resolvesse fazer uma pesquisa de doença coronária com testes não invasivos (teste ergométrico, cintilografia miocárdica, ressonância de perfusão ou tomografia de coronária) seria bem possível a detecção de aterosclerose obstrutiva. Qual seria o resultado disso?



Provavelmente o Natal das crianças seria adiado.

Sim, porque o screening seria positivo; normalmente este resultado positivo desemboca na realização de cateterismo cardíaco (principalmente em pacientes VIPS como Noel), cujo resultado automaticamente leva à indicação de um procedimento, seja angioplastia coronária ou cirurgia de revascularização.

Não daria tempo, não haveria condição de Papai Noel se recuperar para distribuir os presentes na madrugada de hoje.

Mas poderia ser que valesse a pena adiar este Natal, para garantir o Natal dos próximos anos. Não sejamos imediatistas, há males que bem para o bem.

Porém este não é o caso, este mal acontece de graça, pois não traz consigo um bem maior. Isso mesmo, o check-up cardiovascular em um indivíduo assintomático não traz benefício, mesmo que isto vá de encontro ao senso comum.

Sabemos que o screening da doença coronária não previne desfechos cardiovasculares maiores. Isso está demonstrado em trabalho que randomizou pacientes de risco cardiovascular elevado para realizar ou não realizar screening, mostrando semelhança na incidência destes desfechos. Além disso, estamos cansados de saber (ensaios clínicos) que angioplastia coronária não reduz infarto e não prolonga sobrevida, quando comparada ao tratamento clínico. Portanto, Papai Noel não teria seu infarto prevenido por um procedimento deste tipo que seria induzido por um diagnóstico de doença oculta.

Em casos de doença coronária severa (triarterial ou tronco), evidência recente do estudo FREEDOM nos sugere benefício da cirurgia de revascularização na redução de morte ou infarto. Porém em pacientes com a excelente classe funcional de Papai Noel é pouco provável uma doença coronária severa.

Neste tipo de discussão, entusiastas do excesso de exames normalmente usam algum exemplo de certo paciente assintomático, cujo teste não invasivo foi positivo, levando a um cateterismo que mostrou doença triarterial grave, se beneficiando de cirurgia de revascularização. Estou cansado de ouvir isso.

Este raciocínio mediano e equivocado desconsidera o pensamento epidemiológico, que deve ser probabilístico, baseado em dados coletivos. Ao pensarmos probabilisticamente, percebemos a outra face da moeda. Enquanto um paciente é beneficiado pela solicitação de exames, outro (ou outros) sofre do overdiagnosis.

No overdiagnosis, os casos anedóticos de benefício trazido pelo diagnóstico são anulados ou até mesmo superados pelo número de pacientes que se prejudicam pelo diagnóstico.

Seria o caso de Papai Noel fazer algum exame não invasivo, mostrando doença fora do alto espectro de gravidade do estudo FREEDOM (o mais comum), levando a uma angioplastia coronária que não prolongou sua vida, não reduziu probabilidade de infarto. Tudo isso na ausência de sintomas, que poderiam se melhorados se estivessem presentes, mas não estão presentes. Sem falar em complicações mais graves de procedimentos desnecessários. Desde óbito até sequelas importantes.

Perderíamos o Natal das crianças, em troca de nenhum benefício clínico para Papai Noel.

Esse é um equívoco comum no pensamento médico: justificar procedimentos com base na possibilidade de benefício em alguns pacientes, desconsiderando a possibilidade de malefício em outros. Como mencionamos previamente, somos mais movidos por resultados positivos e nossa mente tende a desconsiderar a possibilidade de desfechos negativos. Indicamos procedimentos porque alguns podem se beneficiar, mesmo que um número maior possa de prejudicar. Acontece porque fixamos em nossa memória desfechos favoráveis, nos esquecendo de desfechos desfavoráveis.

Em 2012, percebi uma crescente preocupação com esta questão, tendo surgido recomendações médicas voltadas para evitar o overdiagnosis. Neste ano, o US Prevention Task Force classificou como inadequada a realização de eletrocardiograma de esforço em pacientes assintomáticos. Seguindo essa conduta, como parte do programa Choosing Wisely, o American College of Cardiology aponta a realização de pesquisa de isquemia em assintomáticos como uma das cinco condutas a serem evitadas na prática cardiológica. 

Claro que este raciocínio não se aplica apenas a cardiologia. Universalmente se faz screening para câncer de próstata com PSA, porém neste ano esta conduta passou a ser contra-indicada pelo US Prevention TaskForce. Não tem utilidade. Deve-se também evitar mamografia de rotina em mulheres com menos de 50 anos, ressonância de coluna se a dor lombar tiver menos de 6 semanas, exames de imagem (tomografia ou ressonância de crânio) em pacientes com sincope sem sinais neurológicos.  Enfim, são inúmeras as condutas médicas que caracterizam o overdiagnosis.



No filme de Tim Burton, Nightmare Before Christmas (O Estranho Mundo de Jack), Papai Noel é raptado por Jack, um monstro do mundo do Halloween. Sem maldade e por inocência, Jack deseja substituir Papai Noel em sua função de alegrar as crianças. No entanto, Jack é um monstro e quando entra nas casas, não traz felicidade, mas sim horror às crianças. Isso é o que acontece com a postura médica do excesso de diagnóstico. Há intenção de fazer o bem, porém a visão equivocada provoca o fenômeno do overdiagnosis: diagnóstico correto, porém dispensável, com potencial de ser deletério ao paciente.

Vivemos hoje no estranho mundo do overdiagnosis, levando os nossos pacientes ao pesadelo de serem raptados da sua condição estável, para a criação de um problema (falso em sua magnitude) que será resolvido por uma solução (falsa em seu benefício).

Meus votos natalinos neste ano são de que Papai Noel nos traga a consciência de que vivemos neste estranho mundo.