quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Papai Noel Baseado em Evidências


Papai Noel existe? Essa é uma pergunta comum nesta época do ano. Considerando que este Blog se propõe a discutir a veracidade dos fatos sob o paradigma científico, precisamos abordar esta importante questão, a qual impactará na vida de milhares de famílias nas próximas horas. 

Partimos inicialmente do Princípio da Hipótese Nula, o qual afirma que todo fenômeno é inexistente até que se prove o contrário (prova científica). Esta é a justificativa para eventualmente nos questionarmos sobre a existência de Papai Noel. Ou seja, duvidar faz parte do pensamento científico. Mas não podemos parar por aqui, temos que evoluir nosso pensamento. 

Devemos evoluir e nos perguntar se a presente questão se adequa ao Princípio da Plausibilidade Extrema. Este princípio se aplica a situações de exceção, onde o fenômeno é tão plausível, que dispensamos comprovação científica. Por exemplo, na prática clínica ter uma boa relação médico-paciente, saber ouvir e conversar com nosso cliente, representa uma habilidade que deve ser utilizada, mesmo sem um ensaio clínico randomizado demonstrando que a boa relação é benéfica. É extremamente plausível que um médico atencioso faz bem ao seu paciente e por isso aplicamos (ou devemos aplicar) essa abordagem mesmo na ausência de evidência científica.

A existência de Papai Noel é extremamente plausível. Isto porque esta existência só se materializa se formos capazes de acreditar. Se acreditarmos, Papai Noel existirá, se não acreditarmos, ele desaparecerá (ou não aparecerá). É um perfeito exemplo do Princípio da Plausibilidade Extrema, que deve ser aplicado apenas a situações especiais, onde dispensamos a necessidade de demonstração e ficamos como a verdade, simplesmente porque aquela verdade é indubitável. 

Há também plausibilidade extrema do benefício em se acreditar em Papai Noel. Óbvio que esta crença faz bem para a alma, portanto devemos nutri-la. E não faz bem apenas para crianças, para adultos também.  Nós todos devemos acreditar em Papai Noel.

É tão plausível que ao imaginarmos um ensaio clínico randomizado para provar esta questão, percebemos que o resultado deste seria previsível. Imaginem que vamos randomizar famílias, metade para acreditar em Papai Noel e metade para não acreditar. É óbvio que nas famílias que acreditarem, as árvores acordarão repletas de presentes, enquanto nas famílias randomizadas para não acreditar, as árvores estarão vazias, se é que nestas casas haveria árvores de natal. É tão óbvio que seria anti-ético fazer esse estudo. 

Poderíamos então fazer um estudo observacional. Observem como o Natal de famílias crentes em Papai Noel é mais mágico do que o Natal de famílias descrentes.

Percebam que todo esse pensamento é baseado em uma seqüência lógica que respeita dos princípios da medicina baseada em evidências. Mas para aqueles que ainda permanecem com o Princípio da Hipótese Nula a despeito de meus argumentos, vamos fazer um teste: amanhã, ao acordar, se houver presentes na árvore, estará provado que Papai Noel passou em sua casa.

Na verdade, todo mundo acredita em Papai Noel, mesmo aqueles que fingem não acreditar.

Feliz Natal a todos.

* Esta é a postagem mais embasada em evidência de todas já escritas neste Blog.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Zika e Microcefalia: Fato ou Ficção Científica?

Diferentemente do que o título expressa, este texto não é primariamente sobre Zika, nem sobre microcefalia. Falarei todo o tempo sobre isso, mas o verdadeiro assunto é outro, mais genérico. O tema desta postagem é sobre miopia científica ou arrogância epistêmica. Estes, sim, seriam títulos mais representativos da ideia.

O crescimento no Brasil da incidência de Zika e aparentemente de microcefalia constituem uma interessante história de geração de hipótese: Zika causa microcefalia. Se bem aproveitada, dará bons frutos científicos. Por outro lado, a forma como esta hipótese científica foi transformada em fato nas publicações da imprensa leiga, respaldadas por especialistas, ganhou ares de ficção científica. 

Ficção científica um termo pertinente e paradoxal. Paradoxal, pois o que é ciência não é ficção; pertinente pois este paradoxo é bastante prevalente.

Este representa um caso caricatural da violação do princípio científico da hipótese nula. São casos como estes que Nassim Taleb, cientista da incerteza na Universidade de Massachussets, denomina de arrogância epistêmica. Este é um fenômeno comum da mente humana que, por questões evolutivas, tende a subestimar a incerteza presente em hipóteses.

Isto fica mais evidente quando percebemos que, ao longo das últimas semanas, a força de convicção das afirmações a favor da relação causal entre Zika e microcefalia cresceu exponencialmente, a despeito da ausência de evidências reais. É o fenômeno da manada, quanto mais se fala mais a história ganha ares de fato, sem que haja qualquer associação entre o crescimento da convicção e o aumento do nível de evidência.

São inúmeras as reportagens impressas e televisivas. Não coloco jornalistas como meros criadores de fatos, pois estes acompanham afirmações de profissionais que tem (suposta) autoridade para falar no assunto.

Um médico no Fantástico recomendou às mulheres de 30 anos (que teoricamente possuem mais tempo) a não engravidar, enquanto as de 40 anos fazê-lo, desde que cuidadosamente. Em paralelo, a Revista Veja diz: “A relação entre Zika e microcefalia fetal está 100% comprovada”. E justifica sua afirmação: “O Ministério da Saúde confirmou o fato após detectar o vírus em um bebê com microcefalia que foi a óbito”.

Há também aqueles que reconhecem a necessidade de comprovação definitiva, porém falam com a conotação de fato. Dizem que “tudo indica”, ao passo em que recomendam “medidas de prevenção” (são medidas mesmo?). Estes aparentam preservar o princípio da hipótese nula, porém fazem o contrário. Utilizam deste princípio para gerar uma aparência cientifica de mais credibilidade, sem perceber que já rejeitaram a hipótese nula quando fazem o mundo se comportar como se a causalidade estivesse estabelecida.

Precisamos refletir quais os danos versus as vantagens da rejeição precipitada da hipótese nula. Por que será que, em geral, o pensamento científico considera que o erro tipo I (afirmar algo falso - toleramos 5% deste erro) é cientificamente mais grave do que o erro tipo II (não afirmar algo verdadeiro - toleramos um risco de 20% deste erro). Esta é uma válida reflexão para este momento.

Considerando que o adequado combate à Zika deve ocorrer independentemente da criação de fatos pseudo-científicos, precisamos refletir se esta miopia científica traz (individual e culturalmente) mais benefícios ou prejuízos. A miopia científica fica evidente quando observamos a grande lacuna entre o pensamento humano cotidiano e a forma científica de raciocinar.

De fato, alguns acham que ciência é uma coisa, vida prática é outra. Em artigo na Folha de São Paulo, após afirmar que “não tenho dúvida do elo entre Zika e Microcefalia”, o diretor da OPAS diz: “alguns cientistas acreditam que é preciso mais provas, mas como profissional de saúde não tenho dúvida”. Observem que a frase propõe uma lacuna entre ciência e vida prática. Isto mostra que alguns não entendem bem que ciência nada mais é do que a forma mais honesta de retratar a natureza. Digo honesta, pois o método científico não serve para criar conhecimento. Serve para descrever o mundo, prevenindo-se contra fenômenos cientificamente reconhecidos: vieses cognitivos, vieses de observação e efeito do acaso.

Nosso problema é que, na história da humanidade, só muito recentemente o pensar científico contribui para nossa sobrevivência individual. Mas quanto à sobrevivência da espécie, ainda não deu tempo do pensar contribuir suficientemente. A nossa seleção natural se deu não pela capacidade de pensar, mas pela capacidade de correr. Talvez os que pensaram morreram mais (pois corriam menos). Por este motivo, ser cético e questionador não é nosso estado natural, precisamos nos condicionar ao paradigma científico.

Karl Popper, o maior filósofo científico do século passado, propôs que a comprovação de uma hipótese deve passar pelo processo de tentar refutá-la. Devemos começar acreditando na nulidade e mudarmos de ideia quando a evidência a favor do fenômeno ultrapassar um limiar inferior de dúvida.

O caso Zika e microcefalia mostra que ainda não entendemos o que Popper propôs. Ainda não entendemos o papel da hipótese nula. Assim, a miopia científica prevalece, com seus diversos componentes a serem descritos abaixo. 

Miopia da Incerteza

Na miopia da incerteza, não percebemos o quanto incertas são coisas que “fazem sentido”. Somos apaixonadas por nossa lógica, sem perceber que esta serve para dar plausibilidade às hipóteses, não para gerar fatos (exceto na plausibilidade extrema).

Estamos repletos de exemplos em medicina de hipóteses que faziam todo sentido, porém funcionaram ao contrário. São estas mesmas hipóteses que geram reação emocional neste Blog, quando mostramos evidências contrárias a crenças lógicas, porém incertas. Achamos que podemos acreditar, desde que tenhamos alguma forma de explicar.

Faz sentido de que Zika seja a responsável pelo suposto aumento de microcefalia, por três motivos: certos vírus podem alterar a embriogênese do sistema nervoso no primeiro trimestre; Zika está em crescimento; microcefalia está em crescimento. Dadas estas premissas, as pessoas concluem que Zika  causa microcefalia, sem perceberem que fazer sentido não é o mesmo que ser um fato. Os especialistas que fazem afirmações certas ou quasi-certas deste pseudo-fato não percebem o grau de incerteza presente na hipótese.


Miopia de Hipóteses

Este é um viés cognitivo causado pela análise retrospectiva da história dos descobrimentos científicos. Explicarei.

Retrospectivamente, o mundo ganha um aspecto platônico, parecendo que tudo fazia muito sentido antes da comprovação. Mas, este mundo funciona de outra forma. Na verdade, para cada explicação comprovada com base em evidências, existiram inúmeras hipóteses, e nem sempre a que parecia mais lógica foi a que venceu. As hipóteses que perderam ganham o status de silenciosas, não nos lembraremos delas, ficando apenas a hipótese vencedora como parte da narração da história. Assim, parece que um descobrimento foi feito por uma hipótese gerada, testada e comprovada. Um mundo platônico, uni-hipotético.

Na verdade, para cada descoberta, há inúmeras hipóteses que perderam, dentre as quais usualmente está a mais provável das hipóteses. E normalmente, a hipótese favorita tem menor probabilidade de perder do que de ganhar. Ser a mais provável, não quer dizer ser muito provável.

Modelos estatísticos multifatoriais previam que a seleção brasileira era a favorita para ganhar a copa do mundo de 2014, porém a probabilidade calculada era menor que 50%. Embora fosse a favorita, era mais provável que perdesse. Simplesmente porque haviam muitas hipóteses (seleções) concorrendo.

Esta falta de entendimento faz com que as pessoas superestimem a probabilidade da Zika ser a explicação, a ponto de julgar isso como algo confirmado ou fortemente sugestivo.

Observem o vencedor de uma maratona olímpica. Diferente dos 100 metros rasos, este tipo de prova tem o resultado influenciado por um processo mais complexo. É quase imprevisível saber quem vai ganhar, na realidade todos tem quase a mesma probabilidade. Por outro lado, depois do término da corrida, o vencedor ganha o título de ser o melhor e passa a fazer muito sentido ele ter sido o vencedor. Encontramos sempre explicações, talento, treinamento, etc. Depois do resultado, nossa mente superestima a probabilidade prévia daquele resultado. A isso se chama falácia narrativa, quando qualquer evento importante ganha uma explicação óbvia depois de ocorrido.

Pessoalmente, se fosse para apostar, eu colocaria meu dinheiro na Zika. Mas não colocaria muito dinheiro, pois mesmo sendo a escolhida como mais provável, a probabilidade de Zika ganhar é pequena.

Ser a mais provável, não quer dizer ser muito provável.

Miopia Epidemiológica

Esta é caracterizada por confundirmos os conceitos básicos de coexistência e associação.

O termo “associação” (ou relação) é o mais utilizado nas notícias sobre zika e microcefalia. No entanto, tem sido utilizado de forma equivocada e rudimentar. Inúmeros especialistas e jornalistas mencionam associação, porém na verdade este exemplo é de coexistência. Até então não presenciei qualquer relato sobre associação, nem mesmo uma menção de curiosidade a respeito.

“Uma mãe cujo filho nasceu com microcefalia pode ter tido Zika no primeiro trimestre”. Ou: “identificaram o vírus em dois casos que nasceram com microcefalia”. Isso não é associação, pois falta o outro lado da história, a evidência silenciosa. O lado silencioso da história são os casos de normocefalia com história de Zika e os casos de microcefalia sem história de Zika.

Qual a proporção de Zika na gravidez de casos de microcefalia, comparada à proporção de Zika na gravidez de crianças que nasceram normais? Se não há dados ainda, deste que seria um estudo caso-controle, pelo menos olhemos a nossa volta e perceberemos que devem ser muitos os casos de normocefalia que tiveram Zika. Precisamos valorizar mais a dúvida.

É total miopia epidemiológica falar em associação. Mas mesmo se a associação fosse comprovada, esta seria apenas o primeiro passo na demonstração de causalidade. Há muitas associações verdadeiras, porém não causais. Observem a associação abaixo descrita, publicada no New England Journal of Medicine. Será que é causal?




Outros falam em associação temporal. É mais uma miopia epidemiológica, pois sabemos que associação temporal é uma grande falácia. Coisas podem crescer ou decrescer juntas, sem que haja qualquer relação causal. Ao longo do tempo uma criança fica maior em altura e ao mesmo tempo sua habilidade de leitura aumenta. Isso quer dizer que quanto mais alta uma pessoa, maior a habilidade com línguas?


O livro Spurious Correlation nos traz interessantes exemplos da falácia da associação temporal.





Portanto, não podemos falar em associação, quanto mais em causalidade. Ainda estamos muito longe do que poderia ser considerado algo provável. Ainda estamos muito longe do limite de rejeição da hipótese nula. Muito longe do que poderia ser considerado algo provável.

Miopia Estatística

Essa é a mais banal das miopias, a qual decorre da falta de percepção de que precisamos de um denominador para quantificar o risco dos desfechos. Este denominador não tem sido apresentado nos depoimentos dos médicos ou reportagens da imprensa.

Fala-se em um crescimento grande do número de registros de microcefalia, de 30 casos para 1.200 casos em 3 meses. Isto é bastante assustador e o número que passa dos milhares traz a conotação de um grande risco. As grávidas entram em pânico quando se fala em 1.200 casos. No entanto, risco é uma probabilidade, advinda do total de desfechos dividido pelo total de pessoas vulneráveis ao desfecho. Desta forma, dividindo-se 1.200 pelo número médio de nascidos-vivos em um período de 3 meses (em torno de 600.000), chegamos a um risco de 0.19% de uma criança nascer com microcefalia nestes últimos meses, dada todas as possíveis causas, não apenas Zika. Se considerarmos o  cenário otimista de que metade destes casos decorrem de Zika, diremos que 0.095% é o risco de microcefalia por Zika. Isto justifica pânico?

A miopia estatística (básica) faz com que médicos recomendem no Fantástico que mulheres deixem de engravidar. Estes se esquecem que o conjunto de outras possíveis infecções que causam sequelas em bebês ultrapassa em muito o risco de microcefalia por Zika, se este risco for verdadeiro. Segundo meus consultores obstétricos: citomegalovírus 2.6% de incidência de infecção, toxoplasmose 1.6%, sífilis 0.5%, herpes 0.2%, só para falar alguns. E 40-50% dos fetos afetados por estas infecções apresentam sequelas.

Por que só agora recomendamos não engravidar? Ou colocado de outra forma: o número (com denominador) justifica o pânico?

O que Kant diria?

Percepção = sentidos + inconsciente.

Segundo Kant, a interpretação que damos ao que vemos é involuntária e incontrolavelmente influenciada pelo inconsciente. Sua filosofia foi mais tarde confirmada por psicólogos cognitivos. Na postagem Ensaio sobre a Cegueira, discutimos como seria importante que a interpretação de métodos de imagem ou do exame físico fosse cega em relação à probabilidade pré-teste, ou seja, ao quadro clínico ou epidemiológico.

Ao se deparar com a atual epidemia de microcefalia, Kant se perguntaria se o aumento do número de casos poderia decorrer de um problema de percepção influenciado pelo cognitivo de pessoas já influenciadas pelo modismo.

Talvez esse raciocínio pareça demasiadamente cético quando sugerimos a não existência do problema. Por outro lado, este mesmo raciocínio se torna demasiadamente plausível quando pensamos na possibilidade de superestimativa do problema.

Não há dúvida que a mente dos diagnosticadores de microcefalia está enviesada involuntariamente pelo modismo, o que implica em uma noção de probabilidade pré-teste aumentada. Para agravar, encontramos o conforto cognitivo, que se apresenta quando se torna mais confortável laudar de acordo com o mundo externo do que de forma independente. Isto faz com que médicos prefiram ampliar sua sensibilidade, em detrimento da especificidade. Isto pode gerar uma banalização dos diagnósticos.

Como cardiologista, sei o quanto pode ser subjetivo laudar uma disfunção sistólica do ventrículo esquerdo ou calcular uma fração de ejeção, número mágico para quem não passa pelo processo de quantificação. Porém nada entendo de obstetrícia ou ultrassom obstétrico. Por isso, perguntei a especialistas de mente científica e a resposta foi semelhante ao que vivencio na ecocardiografia. Há subjetividade em muitos casos. Na dúvida, de que forma se comportam os diagnosticadores neste momento particular de modismo? E como se comportavam antes?

Pouco se falava do problema, portanto a sensibilidade dos médicos não estava voltada para isso. Hoje, a principal ideia que está na mente de um ultrassonografista (e da coitada da grávida) antes do exame é se há sinais de microcefalia.

No sistema público de saúde, provavelmente menos grávidas faziam ultrassom. Hoje vemos mutirões  de ultrassom. E os médicos que fazem os exames estão muito mais atentos. Isso tudo indica que é muito plausível acreditar que no passado havia subnotificação.

Desta forma, há plausível subnotificação do passado e supernotificação do presente. Quantitativamente, parte do problema é criada por isso. Pelo menos parte do problema.

Reflexões Finais

Até o momento, tivemos acesso a apenas relatos de coexistência Zika-microcefalia publicados pela imprensa leiga, que desconsideram o lado silencioso das evidências. Ainda não dispomos de publicações em revistas científicas, aquelas que seguem um rigor na descrição dos métodos e resultados da pesquisa, passando pelo crivo da revisão por pares.

Tais artigos surgirão em revistas científicas. Como todo estudo, estes deverão passar pelo crivo da análise do nível de evidências. Mas, devemos estar atentos para a particularidade maior desta questão cientifica: a hipótese nula foi precipitadamente rejeitada, abrindo guarda aos vieses de confirmação e publicação.

Nassim Taleb aborda bem o problema dos especialistas em seu livro A Lógica do Cisne Negro. Especialistas de atividades que lidam com incerteza sofrem do problema da auto-ilusão. É por este motivo que comentaristas políticos erram muito mais do que modelos estatísticos de previsão de eleições. A arrogância epistêmica obstrui a habilidade preditiva de especialistas e suas ideias se tornam pegajosas. Depois de criadas, fica pouco provável de mudar. É o fenômeno de perseverança da crença, quando as ideias são tratadas como propriedades pessoais, da qual não queremos nos desfazer. É quando muitos convictos pesquisadores tendem a procurar confirmação de suas ideias a todo custo, vibrando quanto encontram resultados positivos, mesmo que à custa de P-value hacking, problema das múltiplas comparações ou vies de publicação.

Entre a ausência de evidencias sobre uma questão (estado atual) e a resposta definitiva, normalmente existe uma lacuna repleta de estudos pequenos, de qualidade mediana, cuja divulgação é regida pelo viés de publicação de evidências positivas. Isto estenderá o obscurantismo científico, até que em algum momento saberemos a verdade.

No mundo em que a hipótese nula foi violada, é indispensável que os diagnósticos Zika e microcefalia sejam feitos de forma cega e independente. Resultados definitivos virão de estudos prospectivamente desenhados, com hipóteses e desfechos primários definidos a priori.

Enquanto isso, grávidas devem evitar se expor a qualquer tipo de doença infecciosa e outros agentes sabidamente teratogênicos como sempre fizeram. Devem também evitar um demasiado envolvimento com recomendações caricaturais contra Zika. E devem estar cientes de que não há razão probabilística (risco absoluto) para que o pânico roube a tranquilidade de suas gestações.

Se Zika é responsável pelo crescimento dos casos de microcefalia, por enquanto não sabemos.

Mas a pergunta primordial desta postagem é outra: sabemos distinguir entre fato e ficção?


* Texto escrito por Luis Correia e Denise Matias, com colaboração intelectual dos obstetras Allan Silva e Leomar Lyrio.