quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Benefício Líquido em Saúde


 

Em economia, a mediada ponderada mais utilizada é a de custo-benefício, em que o custo e o benefício são colocados na mesma unidade, para que comparação fique intuitiva e clara. Por exemplo, uma medida de saúde pública para redução de acidentes de trânsito (construção de melhores estradas) pode quantificar as vidas salvas em unidade monetária, visto que as diferentes sociedades definem o “valor estatístico de uma vida” para fins de tomada de decisão. Desta forma, se compara o ganho de vida em dólares versus o gasto com estrada em dólar. Isso torna intuitivo o processo de decisão. Outra alternativa é transformar o custo das estradas em números de vidas salvas, ficando os dois lados da equação mensurados pelo benefício líquido.

No entanto, no campo da saúde, os estudos de economia costumam priorizar as medidas de custo-efetividade, onde o custo é monetário e a efetividade é clínica. A mais utilizada é a razão de custo-efetividade incremental, expressa em dólares por cada ano de vida salva, ajustado para qualidade. Embora o entendimento desta medida tenha se difundido, a utilização desta torna o processo de decisão enviesado. 

Primeiro, esta medida conota vidas perdidas devido a economia monetária, o que torna irracionalizável o processo de decisão. Segundo, esta medida diz respeito apenas à doença em questão, perdendo a perspectiva de custo-oportunidade do sistema de saúde. Estes dois problemas não ocorreriam caso fosse utilizada uma medida de custo-benefício. 

A medida ideal seria a de “net health benefit”, na qual o curso é transformado em vidas. Sabendo-se a definição do limite custo-efetividade de um país, podemos transformar custo da terapia em vidas. 

Por exemplo, consideremos que a definição do limite de custo-efetividade no Brasil é R$ 50.000 por ano de vida salva. Caso a terapia custe 1 milhão por vida salva, essa vida foi salva a um custo de 20 outras vidas (1 milhão / 50.000). Este cálculo se aplica a sistemas públicos universais onde o orçamento em saúde é fixo. Portanto, o gasto no orçamento para salvar essa vida custa ao sistema 20 outras vidas, caso esse mesmo valor fosse aplicado a um outro tratamento (de outra doença) definido como custo-efetivo. 

Assim, a medida de “net health benefit” deixa explícito a noção de custo-oportunidade, e eventualmente uma negação do tratamento traz a percepção de ganho para a sociedade, ao invés da percepção de perda para um paciente. Em paralelo, uma aprovação acima do limite de custo-efevidade deverá vir acompanhada de uma justificativa do porquê que nesta circunstância tratamento essa vida salva de forma assimétrica em relação a outra. Por vezes, existe esta justificativa. 

Devemos enfatizar que não se trata de encontrar formas mais confortáveis de negar tratamentos aos pacientes, mas sim evitar a “aversão à perda” que domina os processos de decisão baseados da razão de custo-efetividade incremental, e imputar o pensamento de custo-oportunidade ao norte da decisão. 

Conclusão

Diante da percepção de que há grande benefício, porém alto custo, o pensamento econômico-monetário deve ser baseado em custo-benefício e custo-oportunidade, ao invés de uma medida que confronta dinheiro e vidas.

sábado, 8 de julho de 2023

Aprovação de Terapia Gênica para Hipercolesterolemia: Inclisiran

 


A ANVISA aprovou nessa semana a regulação da terapia gênica Inclisiran para pacientes com hipercolesterolemia familiar ou que continuam com colesterol insatisfatório a despeito de dose máxima de estatina. Nestes pacientes “refratários”, ensaios clínicos pivotais demonstraram redução média do colesterol de 50% (NEJM 2020).

Esta notícia veio acompanhada de crítica de colegas a respeito do assunto: entusiasmo exagerado e aprovação baseada em desfecho substituto. Abordarei esses dois tópicos. 

Pesquisei a notícia no Google e me surpreendi com grande número de jornais e sites de notícias que evidenciaram o ato da ANVISA: Folha de São Paulo, Veja, Correio Brasiliense, Valor Digital, Acessa, UOL, O Tempo. Aparentemente esses veículos de comunicação foram sensíveis ao press release da indústria. 

Quem já assistiu a TV americana em horário nobre deve ter achar estranho a quantidade de propaganda explícita de drogas sob prescrição médica, de anticoagulantes a quimioterápicos, de vasodilatadores a biológicos. Os Estados Unidos são praticamente o único país em que isso é permitido. Embora caricatural, a propaganda explícita é menos efetiva. Sabe-se que a melhor propaganda é a subliminar, aquela que desperta o interesse do consumidor, mas não tenta o convencer a adquirir o produto. Esta é mais efetiva, pois a sensação de quem está sendo influenciado é a de que a decisão foi própria, sem influências externas, e, portanto, legítima. O leitor de um grande jornal de circulação acredita estar se informando de algo relevante, e muda sua perspectiva.

Na verdade, isso nem se trata de notícia (novidade). É apenas a descrição de um ato regulatório da ANVISA, como tantos outros. 

Do ponto de vista de tecnologia, o advento impressiona, e poderia fazer parte de algum documentário para interessados em avanços da medicina: duas aplicações ao ano de um “pedaço de RNA” (small interfering RNA) promove redução substancial e sustentada do colesterol. Lembrem que há 4 décadas não havia tratamento efetivo para colesterol.

Small interfering RNA serve para inibir a transcrição do RNA. No caso dessa droga, o efeito é na inibição da síntese da proteína PSK9, a qual é envolvida na síntese do colesterol.  É uma tecnologia promissora em várias áreas, pela capacidade de silenciar processos indesejados. 

Por outro lado, há uma dissonância entre o hype da notícia e a relevância prática para a maioria dos pacientes.  Quando indicado, o controle do colesterol é alcançado com as tradicionais estatinas na maioria dos casos. Sendo assim, essa inovação ficaria reservada para situações específicas, baseadas em julgamento clínico criterioso. Mesmo assim, existem opções mais baratas. 

Além disso, salvo situações disruptivas, a introdução de novas tecnologias deve ser progressiva. Nenhum estudo prova total segurança (ausência de dano), cabendo aos pivotais indicarem que a droga é tolerável. Mas após disponibilização, novos fármacos precisam de um surveillance (ativo ou passivo) para detecção de potenciais danos não observados em ensaios clínicos de tamanho moderado. 


Desfecho “Substituto”

Não estou certo de que a crítica à ANVISA, FDA ou Agência Europeia é pertinente quanto ao fato de a regulação ter sido baseada em redução de colesterol, um desfecho caracterizado pelos críticos como “substituto” de desfechos clínicos. 

Colesterol não é uma variável que se presta a substituir um desfecho clínico. Colesterol é um fator de risco para aterosclerose, e o controle dos fatores de risco modificáveis é uma forma efetiva de prevenir de eventos. 

O conceito de desfechos substitutos melhor se aplica a variáveis não causais. Vejam estes exemplos, nenhum deles é fator de risco:

Redução de BNP com novos tratamentos para ICC indica controle da volemia, mas não significa eliminação da causa da ICC. 

Redução de substância amiloide em Alzheimer é de impacto incerto, pois não sabemos se essa substância é causa ou um mero marcador da doença. 

Aumento da fração de ejeção com drogas inotrópicas não reduz mortalidade, mas não é a fração de ejeção a causa da ICC, este é apenas uma consequência da cardiopatia.

Achávamos que HDL-colesterol baixo era fator de risco, mas foram diversos ensaios clínicos negativos que nos ensinaram que este é não passa de marcador de síndrome metabólica. 

No exemplo mais clássico de efeito inesperado, o aumento de mortalidade depois que extra-sístoles ventriculares foram reduzidas com drogas antiarrítmicas se deu porque reduziram a extra-sístole que não causava morte, e aumentaram a arritmia que causava morte. É um exemplo capcioso. Não estavam tratando um fator de risco para a doença, mas sim um gatilho para a morte. 

Não é simples, precisamos pensar profundo, ao invés de decidir com base em clichês (desfecho substituto). Clichês têm o papel de heurísticas, de atalhos mentais por vezes úteis, por vezes simplório. O melhor clichê é a típica resposta da epidemiologia: “depende”.

Se concordamos que colesterol é um fator de risco, a melhor analogia é com a hipertensão. Como primeira linha, preferimos as drogas mais estudadas clinicamente. Mas quando a hipertensão é refratária, associamos drogas como clonidina e minoxidil, fortes hipotensores sem “evidências em desfechos clínicos”. O que estamos fazendo é controlando um fator de risco. 

O cerne da questão está no entendimento do que se trata uma variável de desfecho. Mesmo as variáveis clínicas, estas são sempre substitutos de um construto maior: benefício ou malefício. Ciência não é a observação da realidade, mas sempre uma observação limitada, estendida para a realidade através da inferência. Inferência é pensar o significado do que estamos observando. 


Regulação não é Implementação

Precisamos entender o verdadeiro propósito da “regulação”, que se originou nos Estados Unidos, no início do século passado, em uma série de iniciativas que anos depois deram origem à Food and Drug Administration. Este foi um modelo seguido pelo mundo, culminando no Brasil com a criação da ANVISA em 1999. 

Há 100 anos era proibido nos Estados Unidos mentir a respeito da substância que existia em um produto. Mas a indústria poderia colocar no “label” do produto efeitos terapêuticos inventados, e comercializar produtos sem demonstrar tolerabilidade de forma rigorosa. O FDA se construiu de forma reativa, como resposta a efeitos adversos desastrosos. Começou então por exigir evidências de segurança. Isso evoluiu, décadas depois, para evidências de eficácia: a demonstração de que aquele produto faz de verdade o que se propõe. 

Um analgésico precisa ter efeito analgésico além do placebo. Um indutor de sono precisa induzir o sono. Um antihipertensivo precisa reduzir a pressão. E um hipolipemiante precisa reduzir o colesterol. Esses exemplos são produtos voltados para efeitos imediatos (dor, humor, sono) ou controles de fatores de risco. 

Mas quando um produto é voltado primariamente para consequências distais, estas precisam ser demonstradas para existir no “label” que o quimioterápico prolonga a vida de quem tem câncer ou o inibidor da ECA prolonga a vida de quem tem insuficiência cardíaca. São esses exemplos que trazem o contexto de quando a regulação precisa ser baseada em desfecho clínico. 

E sabem para que serve um “label”? Para regular a propaganda, ou seja, o que existe no “label” pode ser usado como argumento para consumo, o que não existe não pode ser propagandeado. Embora certos usos off-label sejam adequados, estes devem ocorrer fora do ambiente da propaganda do efeito do produto.  

É comum criticarmos certas decisões do FDA (vide Aducanumab no MBE Podcast), mas precisamos reconhecer que o processo regulatório dessas agências é rigoroso. Antes mesmo da indústria iniciar qualquer teste em serem humanos, faz-se necessário a aprovação pelo FDA, que julga se o planejamento científico das diversas fases investigativas (I, II e III) é adequado. O FDA não apenas lê um artigo, como nós fazemos, mas acompanha todo o processo ao longo dos anos, compartilhando decisões com a indústria. A regulação não é apenas do produto, é do processo investigativo. 

O que essas agências garantem é que produtos comercializados são verdadeiros e tolerados pelo organismo humano. Isso é regulação. Precisamos entender a diferença de regulação e decisão clínica ou em saúde pública. Se este produto comercial passará a ser utilizado como uma opção primária, caberá aos profissionais decidirem. E isso fica posto em guidelines, diretrizes, ou em decisões de sistemas de saúde como CONITEC, ANS e NICE para citar o exemplo internacional pivotal. E no final, um médico que assume a complexidade de sua arte com profissionalismo, toma uma decisão individualizada e compartilhada com o paciente. 

A regulação é o processo inicial que torna a comercialização legal. Depois disso, cabe a nós assumirmos a responsabilidade das próximas decisões, agora levando em conta magnitude de efeito clínico, eficácia comparativa com tratamentos tradicionais e custo-efetividade. 

É neste momento que não podemos ser marionetes comandadas pela propaganda da indústria. Mas ao mesmo tempo devemos reconhecer o valor de verdadeiras inovações.


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quinta-feira, 6 de julho de 2023

O que é Odds Ratio?


 

O post de 2010 “O que significa Odds Ratio” é o segundo texto mais acessado deste Blog (154K acessos). Naquele material, eu explico como se calcula e interpreta odds ratio. Mas faltava um conteúdo complementar para a plena compreensão da razão de existir desta medida de associação. 

No intuito de preencher essa lacuna, escolhi este assunto para o Tópico da Semana no Fórum do Curso Online de MBE. E fiz as seguintes perguntas ao participantes:


1) Em um estudo caso-controle, por que se utiliza Odds Ratio da exposição (casos versus controles), ao invés probabilidade da exposição em casos / probabilidade da exposição em controles,  o qual seria mais intuitivamente denominado probabilidade relativa de exposição?

2) Por que o Odds Ratio se aproxima do risco relativo se a probabilidade do desfecho for pequena?

3) Em regressão logística, fora do contexto caso-controle, por que se utiliza Odds Ratio do desfecho (expostos versus não expostos), ao invés de risco relativo que seria mais intuitivo?

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Vamos às minhas respostas ao final da semana:


Em um estudo caso-controle, por que se utiliza Odds Ratio de exposição (casos versus controles), ao invés probabilidade da exposição em casos / probabilidade da exposição em controles,  o qual seria mais intuitivamente denominado probabilidade relativa de exposição?

Normalmente a justificativa para esta questão é a de que um estudo caso-controle não pode utilizar risco relativo do desfecho (exposto versus não exposto), pois não há registro da incidência do desfecho. Portanto, se utiliza odds (chance) da exposição (caso versus controle). 

No entanto, isso não justifica utilizar uma medida de frequência menos intuitiva como odds, visto que poderia se calcular a simples razão da probabilidade de um caso ser exposto / probabilidade de um controle ser exposto. Por que trocar probabilidade por odds?

A verdadeira razão foi uma das descobertas mais importantes da epidemiologia, feita por Cornfield: a invariância do Odds Ratio. Cornfield foi chair do Departamento de Estatística da Escola de Saúde Pública de Johns Hopkins na década de 50. Ele ficou interessado em estudos caso-controle depois de ver o trabalho publicado por Doll e Hill sobre tabagismo e câncer de pulmão. 

Cornfield demonstrou que o Odds Ratio da exposição (caso/controle) é igual o Odds Ratio da doença (exposição/não exposição). A isto se denomina invariância do odds ratio.

Um estudo caso-controle calcula diretamente o odds do doente ser exposto / odds do não doente ser exposto. Mas esse número é o mesmo do odds do exposto ser doente / odds do não exposto ser doente. Portanto, um estudo caso-controle é capaz de fornecer o OR da doença, comparando a exposição versus não exposição. Este OR está no sentido da causalidade, visto que reflete o odds do desfecho causado pela exposição. 




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A nossa segunda pergunta é a segunda parte da descoberta de Cornfield. 

Por que o Odds Ratio se aproxima do risco relativo se a probabilidade do desfecho for pequena? Como ocorre na linha preta do gráfico abaixo (baseline risk = 0.01)




ODDS = Probabilidade / 1 – Probabilidade 

OU 

ODDS = Risco / 1 - Risco

Se o desfecho é raro, a probabilidade é o número muito pequeno. Isso faz com que o denominador do ODDS (1 – P) seja quase igual a 1. Portanto, o odds vai ser quase igual ao risco, pois o odds vai ser o risco/aproximadamente 1

Portanto, o trabalho de Cornfield sugeriu o uso de OR em estudo de caso-controle. Pois assim, podemos ter o OR da doença, na dependência da exposição, e se o desfecho for raro como o caso do câncer de pulmão, esse OR vai aproximar o RR. 

ODDS no desfecho raro    =    Risco / 1 - quase 0   =    Risco / quase 1 Risco

Importante salientar que se usássemos probabilidade relativa de exposição, não existiria a invariância, e isso não resultaria em risco relativo ... 


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Agora vamos à pergunta mais complexa, fora do contexto do estudo caso-controle:

Em regressão logística, por que se utiliza Odds Ratio do desfecho (expostos versus não expostos), ao invés de risco relativo que seria mais intuitivo?

Regressão logística é uma adaptação da regressão linear. 

Regressão Linear: Y = 𝜶 + 𝝱.X

Na regressão linear, o desfecho Y é uma variável numérica, por exemplo, taxa de filtração glomerular. Mas como predizer um Y que seja um desfecho binário (doente ou não doente, evento ou não evento)? Neste caso, o Y seria a probabilidade de o desfecho binário ocorrer. 

O problema é que probabilidade é um número entre [0 e 1], e a amplitude de uma função linear retorna valores entre (- ∞ e + ∞). Portanto, a regressão linear iria invadir erradamente os limites da probabilidade 0-1, acabando por predizer erradamente probabilidades < 0 e > 1. Ficaria assim:

 


Portanto, a solução é transformar probabilidade em algo que vai de - ∞ a + ∞.

Isso é feito em duas etapas:

1) Transforma probabilidade em ODDS = P / 1 – P. 

Isso já resolve o limite superior, pois o odds vai de 0 a + ∞.

2) Depois faz o logaritmo do odds, pois o log tem que ser de um número de 0 a + ∞ (exatamente como odds), e logaritmo retorna valores de amplitude - ∞ a + ∞.

Portanto, na regressão logística o Y é o logaritmo do odds. E o coeficiente de regressão 𝝱 de cada variável X é o logaritmo do odds ratio. 

Exponencial do Y = odds

Exponencial do 𝝱 = Odds Ratio. 

Em resumo, regressão logística fornece OR (ao invés de RR), pois usar odds é a primeira etapa para linearizar uma probabilidade. 

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domingo, 25 de junho de 2023

Não-inferioridade é Deslocamento da Hipótese Nula

 

O ensaio clínico TRASVERSE, recentemente publicado no NEJM, foi um estudo de “não inferioridade a placebo”, com objetivo de “explorar os efeitos da reposição de testosterona em eventos cardiovasculares”. 

Aproveitei esse estudo para gerar a discussão da semana passada no Fórum de nosso Curso Online de MBE, no intuito de elaborar sobre (1) o deslocamento da hipótese nula, (2) porque esta é a análise mais adequada para explorar segurança, (3) e como exercitar generalização e transportabilidade de evidências sobre segurança. As seguintes perguntas foram feitas aos participantes do Curso, o que gerou uma ótima discussão, dando origem a este texto. Agradeço aos colegas a participação nestas reflexões. 

NEJM: Cardiovascular Safety of Testosterone-Replacement Therapy

Hipótese: não inferioridade a placebo (limite superior do IC do HR < 1.5)

Resultado: A primary cardiovascular end-point event occurred in 7.0% in the testosterone group and in 7.3% in the placebo group (hazard ratio, 0.96; 95% confidence interval, 0.78 to 1.17; P<0.001 for noninferiority).

Conclusão: In men with hypogonadism and preexisting or a high risk of cardiovascular disease, testosterone-replacement therapy was noninferior to placebo with respect to the incidence of major adverse cardiac events.





1. Como você interpreta o planejamento do estudo de demonstrar não inferioridade da testosterona em relação ao placebo?

Na análise tradicional (eficácia de tratamento ou fator causador de doença), a hipótese nula é ZERO, e a rejeição da hipótese nula nega ausência de efeito. O resultado é que ficamos com a hipótese alternativa de que há influência da exposição no desfecho. A direção da influência mostra se o efeito é benéfico ou maléfico. 

Mas como fazemos para testar segurança? Neste caso, a hipótese nula não pode ser zero, pois insegurança não é zero de diferença entre exposto e não exposto. Pelo contrário, insegurança é uma diferença maior que zero na incidência de complicação nos expostos versus incidência nos não expostos: IE - Inão E. Portanto, usamos a análise de não inferioridade, onde simplesmente deslocamos a hipótese nula para um valor maior que zero. Por exemplo, uma hipótese nula de 2% de aumento de complicações. Neste caso, ao rejeitar 2% na análise unicaudal, estamos dizendo que a exposição não provoca 2% ou mais de complicações se comparado a não exposição. 

A análise é unicaudal, pois o construto de insegurança diz respeito ao resultado à esquerda dessa hipótese nula. Além disso, às vezes, a própria definição de insegurança é inerente à intervenção, sendo impossível um resultado em outro sentido: sangramento por anticoagulação (impossível que a droga reduza sangramento), complicação típica de cirurgia (impossível que complicação cirúrgica seja mais frequente em tratamento clínico).

OBS: Embora eficácia também seja um construto apenas à esquerda da hipótese zero, faz-se análise bicaudal, pois a omissão de um efeito contrário ao desejado é grave e não pode ser perdida. 

OBS: nesta explicação utilizei medida de associação aditiva (diferença absoluta de risco), pois fica mais intuitivo explicar a hipótese nula de zero. Mas podemos fazer o mesmo com medidas de associação multiplicativas (risco relativo, hazard ratio, odds ratio), sendo que a hipótese nula tradicional é 1, e o deslocamento de não inferioridade é para valores maiores que 1. 


2. Esta estratégia PROVA segurança da droga na população do estudo?

Inferência Causal Tradicional: Quando rejeitamos a hipótese nula zero, não estamos comprovando um valor específico diferente de zero, estamos apenas dizendo que não é zero. Não zero é causalidade.  

Inferência Causal por Não Inferioridade: Quando rejeitamos de forma unicaudal a hipótese nula 2%, não estamos comprovando zero, estamos apenas dizendo que não é tão ruim quando 2%. Isto permite concluir que não há causalidade de 2% ou mais.  

PROVA de segurança não existe, pois segurança é ausência, e ausência é invisível. No máximo, podemos afirmar que o estudo rejeita a hipótese de que o aumento de risco supere o valor pré-determinado. 

Por isso que o framework do descolamento da hipótese nula é o mais adequado para avaliar segurança, pois de uma forma conservadora estamos tendo o cuidado de apenas dizer que não causa um prejuízo maior que o valor da hipótese nula. Esse cuidado não acontece quando concluímos que algo é seguro baseado na não rejeição da hipótese nula de zero. Pois não rejeitar o zero não quer dizer que comprovamos o zero. E essa não rejeição pode ter ocorrido por falta de poder estatístico. Assim, o mais adequado para testar segurança é a análise de não inferioridade comparada a placebo. Ou seja, uma análise de não insegurança acima de um certo limite. 

3. Sendo um estudo de não-inferioridade, a análise primária deveria ter sido por protocolo, ao invés de intenção de tratar?

A análise por protocolo tem a vantagem de prevenir a subestimava de efeito que ocorre na análise por intenção de tratar, na qual o contraste entre os grupos quanto à exposição é menor, pois oz tratamentos se misturam pela falta de aderência. Por outro lado, a análise por protocolo equivale à de um estudo não experimental (observacional), pois perde-se o efeito da randomização. Por este motivo, não podemos afirmar que a análise por protocolo é superior à análise por intenção de tratar. Estas passam a ser análises complementares, na medida em que uma cobre a deficiência da outra. 

Há um outro complicador na análise por protocolo neste caso. Como definir não aderência em um tratamento contínuo? Quem usou a droga por 1/3 do período do estudo, e depois parou, será analisado em que grupo? É uma decisão arbitrária também. 

Por isso, a meu ver, os autores optaram por descrever uma análise de sensibilidade, ajustando para não compliance. Partindo-se da incidência observado do desfecho (compliance < 100%), faz-se uma estimativa do quanto seria a incidência se houvesse 100% de compliance. 

Julgo que o melhor caminho para estudos de não inferioridade seja manter a randomização (ITT), e complementar com análises por protocolo ou ajuste de compliance. Embora menos usados, estes ajustes me parecem fazer mais sentido, pois não desfazem a randomização.

4. Que outro viés típico de ensaios clínicos randomizados pode ter ocorrido?

Viés de seleção emigratório. 

Data were available for 82.7% of the possible follow-up time (observed person-time divided by
total person-time, on the assumption of no withdrawals) in the testosterone group and 81.7% of the possible follow-up time in the placebo group.”

A perda de seguimento reduz a validade interna, na medida em que pode causar viés de seleção emigratório. Viés de seleção ocorre quando a seleção (de quem entra ou sai) é motivada simultaneamente pela exposição e por mais predisposição ao desfecho. Mesmo que o número de pacientes perdidos seja igual nos dois grupos, não sabemos se quem saiu no grupo exposto teria mais desfecho do que quem saiu no grupo não exposto. 

Por outro lado, observe que isso é diferente de ausência de seguimento. Em estudos de incidência de eventos clínicos (diferente de medida antes e depois), quando um seguimento é interrompido, a análise de sobrevida computa o valor do paciente proporcional ao tempo em que este foi seguido. Isso não elimina viés de seleção, mas ameniza diferenças entre tempo de seguimento. 

5. Se considerarmos que a conclusão do estudo possui validade interna, partiremos para a validade externa: podemos generalizar este resultado? E podemos transportar este achado para pessoas de baixo risco cardiovascular, sem hipogonadismo, que desejam utilizar o tratamento para fins de qualidade de vida.  

Generalização é um construto de pensamento que se refere à população-alvo (paciente com hipogonadismo e sintomas). O que foi observado na amostra do estudo é generalizável para a população-alvo (hipogonadismo, sintomas e alto risco cardiovascular)? Esta pergunta é necessária pois, em estudos de seleção não probabilística, há sempre diferença entre a população do estudo (observada) e a população alvo (pretendida). Julgo que nas doses testadas, o estudo é generalizável. Não vejo variável com alto potencial de modificação de efeito. Sigo o princípio da complacência.

6. Por que usei o termo transportar?

Transportabilidade se refere a aplicação do resultado para fora da população-alvo: pacientes sem hipogonadismo ou pacientes de baixo risco. Para os de baixo risco cardiovascular com hipogonadismo, julgo transportável. Para os que tem testosterona mais alta, e o nível plasmático pode ficar supra fisiológico, não arriscarei transportabilidade. Observem que o princípio da complacência é mais variável quando falamos em transportabilidade. 

Após essa discussão, pedirei aos participantes de nosso programa online para responder a seguinte pergunta: após essa discussão, você julga que a evidência apresentada a respeito da segurança da testosterona tem suficiente validade interna, aplicabilidade e utilidade para o raciocínio clínico?

Na próxima semana, publicarei a votação e um breve comentário a respeito do processo de decisão clínica a este respeito. 

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terça-feira, 20 de junho de 2023

A Omissão da Inferência Científica



Este post resume o recente debate no Fórum do Curso Online de MBE.

NEJM, 24 de maio, 2023: Link


Conclusão: "The incidence of the composite of stroke, systemic embolism, hemorrhage, or death at 30 days was estimated to range from 2.8 percentage points lower to 0.5 percentage points higher (based on the 95% confidence interval) with early use of DOACs than with later use."


REFLEXÕES

1. A conclusão do autor contém um inferência científica?

Não, é uma mera repetição do resultado. O autor cai na armadilha do realismo ingênuo ao achar que um intervalo de confiança informa sobre a incerteza presente na realidade (incerteza clínica), o que justificaria esta ser a mensagem do estudo. 

No entanto, o intervalo de confiança informa a incerteza DESTE estudo em relação à estimativa da realidade (eficácia), mas não informa sobre a incerteza contida na decisão clínica de anticoagular. Não há utilidade em usar o intervalo de confiança de um estudo como ferramenta clínica, este portanto não é a conclusão, mas sim um método estatístico que serve de subsídio para uma conclusão.  



2. Qual a validade de construto do desfecho primário para eficácia? E para segurança?

Segundo o autor, o objetivo é inferir eficácia e segurança. Mas o seu desfecho primário não tem validade de construto para estes desfechos. Ao combinar desfechos de eficácia e segurança como parte do desfecho primário, este confunde prova de conceito com raciocínio clínico. 

Precisamos obter a prova de dois conceitos separadamente: eficácia (previne AVC embólico) e segurança (causa AVC hemorrágico). Depois disso, no raciocínio clínico, usamos ambos os conceitos combinados, para saber, caso a caso, quando anticoagular. 

Ademais, quando combinamos desfechos que vão em sentido diferente, o resultado tende a sofrer de um viés da direção da hipótese nula, pois se a droga reduzir AVC isquêmico e aumentar sangramento, um anula o outro, não me permitindo saber separadamente a essência do efeito da droga. 




4. Qual o risco de viés de mensuração do desfecho neste estudo?

O estudo é aberto. Embora a adjudicação seja cega, o trigger inicial para a observação do desfecho é realizado pelo investigador proximal ao paciente. Neste momento, um erro que poderia ser aleatório, torna-se sistemático, pois passa a ser diferencial em relação ao tipo de tratamento alocado. Erros aleatórios de medida sempre existem, quando não diferenciais (estudos cegos) estes diluem o resultado, mas quando diferenciais, estes tendem para algum lado, criando viés. 

5. Na análise primária, 38 pacientes não tinham informação do desfecho primário, por perda de seguimento ou morte por outra causa. Ao invés de desconsiderar essas pacientes na análise, eles permaneceram na análise e seu desfecho (desconhecido) foi imputado por técnicas estatísticas. Você julga isso adequado?

Sim, isto é adequado. Na ausência de imputação, surge o viés de seleção emigratório, pois pacientes sem a informação podem ser diferentes de paciente com informações. Ao fazer imputação múltipla, eliminamos esse viés, pois o dado inserido contém apenas a incerteza aleatória típica da amostra, sem viés. Muitos acham que imputação é algo enviesado. Mas é o contrário, não imputar e analisar apenas os pacientes de dados disponíveis causa viés de seleção. É o mesmo que ocorre com análise por protocolo. 




6. O que acham do autor ter apresentado o resultado principal em diferença de risco (redução absoluta), ao invés de redução relativa do risco.

O autor deseja estimar eficácia, mas ao usar redução absoluta de risco sua estimativa perde validade externa. Ou seja, a redução absoluta de risco depende do risco basal, e serve apenas para a população do estudo. Para populações externas ao estudo haverá outro risco absoluto. Diferentemente, o risco relativo não depende do basal, sendo uma propriedade mais generalizável. RAR e NNT de um trabalho não são generalizáveis. 

7. Se um ensaio clínico randomizado torna  as características basais entre os grupos homogênea, porque o autor ajustou para age, NIHSS score at admission, and infarct size usando regressão logística?  

O ajuste para variáveis prognósticas simula análise estratificada, em que há menor variabilidade em cada estrato, portanto aumenta a precisão da estimativa da medida de associação. 

Serve para melhorar precisão, estreitar o intervalo de confiança. 

Em caso de dúvida residual, escrevam comentários ....

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Inversão do Ônus da Prova: "certeza de ineficácia"

 


Este post resume o recente debate no Fórum do Curso Online de MBE.

Em recente revisão sistemática publicada pela Cochrane, intitulada "Cannabis‐based medicines and medical cannabis for adults with cancer pain", os autores concluíram: "There is moderate‐certainty evidence that oromucosal nabiximols and THC are ineffective in relieving moderate‐to‐severe opioid‐refractory cancer pain."

O que lhe parece invertido? 

A rigor, é inapropriado inferir explicitamente a respeito de ineficácia. Na realidade, pode ser dito apenas que um trabalho falhou em provar eficácia. Na medida em que muitos trabalhos falham, a probabilidade de eficácia vai reduzindo progressivamente. Portanto, uma conclusão mais adequada de um estudo que não rejeitou a hipótese nula é que o tratamento não se mostrou eficaz. Isto é diferente de dizer que o estudo demonstrou ineficácia. 

Observem que isso não é apenas semântica, pois quando colocamos o ônus da prova na ineficácia, favorecemos uma crença na eficácia, que não teria sido devidamente negada pelo estudo. Isso fica mais grave quando a revisão sistemática indica que a evidência de ineficácia é apenas moderada. Ou seja, os autores não só invertem o ônus da prova, como reconhecem que a evidência de ineficácia não é ideal. Há, portanto, um problema de inferência. 

Certeza (certainty) é algo que não faz parte do espectro científico, pois evidências são sempre observações limitadas da realidade. Não vemos a verdade, nós inferimos a verdade. Portanto, o linguajar científico deve evitar a palavra certeza. Menos adequado ainda é tentar quantificar a certeza, pois certeza não tem gradiente, é uma só. Certeza não pode ser moderada, pois já é certeza. 

Mais adequado é caracterizar a incerteza, como baixa, moderada ou alta. 

Mas incerteza de quem? 

Não é a evidência que tem incerteza, o que evidência tem é qualidade (validade). Portanto, a abordagem é caracterizar a qualidade da evidência e depois inferir. Quem tem a incerteza é o cientista que está inferindo a partir da evidência.


Em conclusão:

1) A evidência é de eficácia (ou ausência de evidência de eficácia), não de ineficácia.
2) Não temos certeza científica, mas sim incerteza.
3) A evidência não tem graus de incerteza, mas sim níveis de qualidade.
4) Quem fez inferência é quem pode ter incerteza. 

Eu concluiria de que "evidências de moderada qualidade não demonstram eficácia do tratamento". 

domingo, 16 de abril de 2023

A Temporalidade da Decisão Econômica



Que retorno esperamos de um investimento? Um jogador que treina, espera uma vitória esportiva. Um jovem que estuda, espera uma nota alta na prova. Um investidor espera retorno financeiro. Um paciente que "investe" em uma conduta médica pode ter diferentes tipos de retorno, os quais podemos categorizar em tempo de vida e qualidade de vida. 


O aspecto temporal é essencial para a mensuração do custo e do retorno do investimento clínico. Em economia, o presente tem mais valor do que o futuro. Primeiro porque o presente está acontecendo, enquanto o futuro é uma probabilidade (remota). Segundo, o valor do que ainda ocorrerá depende do contexto futuro, o que é incerto. 


No contexto de hoje, um carro que compro é de grande valor para mim. Ao pagar um  consórcio para obter um carro no futuro, o valor é incerto, pois meu contexto pode ter mudado: posso estar morando em uma cidade de excelente transporte público ou não terei saúde suficiente para dirigir o carro. Sem considerar depreciação, o valor futuro de um produto é menor do que o valor presente. Por isso, economistas aplicam um desconto no valor presente para obter o valor futuro. 


O pensamento médico é essencialmente um processo microeconômico. Em medicina, a temporalidade mais favorável é a do retorno (benefício) presente e custo futuro. No outro extremo, as condições que mais precisam de reflexão quanto ao valor econômico são as de custo presente e benefício futuro. Em uma posição intermediária, estão as condições em que ambos o benefício e o custo estão no presente ou no futuro.


O slide abaixo é usado no módulo de decisão clínica de nosso Curso Online:



Além do contexto presente ser conhecido, eventos no presente tendem a ser de probabilidade maior do que eventos no futuro. Portanto, a vantagem do presente pode ser representada pela seguinte equação metafórica: Probabilidade x Contexto. 




A quimioterapia adjuvante à ressecção cirúrgica de cânceres localizados é exemplo de custo-presente/retorno-futuro. Esta conduta é indicada na premissa de efeito adicional na probabilidade de cura ou aumento de sobrevida. Independente de eficácia demonstrada, o custo clínico é quase uma garantia durante o tratamento (presente): estigma, queda de cabelo, efeitos colaterais indesejados ou eventos adversos relacionados à quimioterapia. Por outro lado, o retorno ocorrerá em um contexto futuro e será limitado aos pacientes “programados” a recorrer o câncer após ressecção àqueles em que a quimioterapia será capaz de impedir essa recorrência. 


Esta probabilidade de benefício futuro é calculada pela regra multiplicativa, resultando em uma probabilidade final menor do que os componentes da equação: 


P (A e B) = P (A) * P (B|A) = P (recorrer câncer) x P (impedir recorrência em quem recorreria) 


Por outro lado, consequências no presente não possuem o primeiro componente a ser multiplicado pelo efeito da exposição. E quando há mais de uma possibilidade de evento indesejado, estas obedecerão uma regra aditiva. 


P (A ou B ou C) = P (A) + P (B) + P (C) = P (estigma) + P (cabelo) + P (desconforto) + P (evento)


Comparando essas duas equações, fica evidente porque eficácia futura tem probabilidade (0 - 1) mais próxima do espectro 0 e número necessário a tratar >>> 1, enquanto algum custo presente tem probabilidade próxima a 1 (quase determinístico). 






Do ponto de vista econômico, a terapia adjuvante ao tratamento está na categoria de risco potencialmente antieconômico e deve ser indicado após uma cuidadosa reflexão que sugira que benefício >>> custo. Não proponho que se evite, mas que se reflita, profundamente. 


O paradigma do rastreamento de câncer visa diagnosticar doença em indivíduos assintomáticos, outro exemplo típico de benefício-futuro/custo-presente. O paciente ganha um diagnóstico e toda cascata de procedimentos subsequentes (custo). Este custo precoce se justificaria por duas premissas a serem multiplicadas: o "câncer" evoluirá para comprometimento da vida do paciente e o tratamento na fase subclínica (precoce) terá mais benefício prognóstico do que o tratamento da fase clínica da doença. Para muitos cânceres indolentes a primeira probabilidade é baixa. Já a segunda probabilidade é de benefício marginal (tratamento mais precoce versus tratamento menos precoce), diferente do benefício central observado em tratamento versus não tratamento. Por esta razão, muitos rastreamentos de câncer não possuem racional econômico. Precisam ser pensados, profundamente. 


A cirurgia de revascularização miocárdica em um paciente assintomático que devido a um rastreamento foi diagnosticado com doença coronariana extensa. O benefício não será de controle dos sintomas (presente) e o tratamento é feito na premissa de que a cirurgia vai prevenir um evento que ocorrerá no futuro. Novamente, regra multiplicativa de probabilidade. Já o preço pago pelo paciente é no dia da cirurgia, no aqui e agora, com seus desconfortos e potenciais complicações. A decisão não pode fazer parte do reflexo triarterial-cirúrgico, precisa ser pensada, profundamente. 


Situações que correm risco anti-econômico implicam na necessidade do médico entender a dialética entre o fazer e pensar. Nesta dialética, a conduta será sempre do tipo “ponderada” ou força de indicação II, devendo ser indicada baseada na percepção individual de que a magnitude quantitativa e qualitativa do benefício supera bastante o custo, de forma que as desvantagens de contexto temporal e de probabilidades multiplicativas sejam compensadas pelo tipo de benefício. 


Não julgo nenhuma destas condutas inapropriadas, mas precisamos perceber que a indicação não pode ser baseada em regra, mas em processo de decisão complexo.





No outro extremo do espectro econômico estão as situações de benefício presente e custo futuro. Vamos a exemplos meramente didáticos. 


Resolução recente do Conselho Federal de Medicina proibiu que médicos prescrevam "terapia hormonal para fins estéticos”. Esta resolução foi sustada pelo Congresso Nacional, sob argumento de que o Conselho "exorbitou seu poder regulamentar”. A conduta do CFM parece ter sido motivada por prescrições inapropriadas de hormônios, o que é uma preocupação válida. Por outro lado, a defesa ou ataque de condutas específicas às vezes constitui abordagem simplória de decisões complexas. A “defesa" deve ser a da construção de uma racionalidade econômica e probabilística. Julgo esse ser um caminho menos polarizado e mais construtivo. 


Podemos considerar que o benefício estético não diz respeito à prática médica, é coisa fútil. Outra opção é julgar que a validade de construto do "desfecho estético" envolve dimensões como autoestima, funcionalidade, vitalidade, sexualidade, bem-estar. Essa segunda é a premissa que nos permite discutir esse exemplo como processo de decisão médica. Devo lembrar que a discussão aqui se restringe ao paradigma clínico (microeconomia), não ao paradigma da saúde pública (macroeconomia). Este último é diferente, pois o custo a se considerar tem uma dimensão monetária, recursos são por definição escassos e os melhores retornos são de investimentos coletivos e sistêmicos.


Voltando ao paradigma clínico: considerando uma prescrição hormonal feita de forma apropriada, o efeito terapêutico ocorre no presente, não depende de regra multiplicativa e seu efeito proximal é quase determinístico em essência. 


Quanto ao custo da terapia hormonal, este diz respeito a potenciais efeitos adversos. Eventos adversos são eventos distais à intervenção (indiretos), sendo de probabilidade menor do que o propósito inicial da conduta. No entanto, devemos sempre reconhecer que evento adversos obedecem regra probabilística aditiva. 


Desta forma, este tipo de tratamento hormonal se encontra na categoria de melhor perfil econômico (benefício-presente/custo-futuro). Embora nesta categoria, esta indicação hormonal não deve ser uma regra, pois o benefício depende fortemente da preferência do paciente. Não é uma daquelas coisas que quase todo mundo prefere (como viver mais ou viver sem dor), há maior variabilidade natural, o que justifica a necessidade da ponderação individual. É algo a ser pensado, profundamente, e sem a banalização de regras proibitivas que desconsideram a complexidade dessa nossa profissão.


Na categoria econômica de benefício-presente/custo-futuro, a mais forte indicação está em controle de sintomas, pois é quase uma certeza de que a preferência de quem está sofrendo é o alívio do sofrimento.


O que é mais impactante: omeprazol para tratamento de úlcera ou betabloqueador para tratamento de insuficiência cardíaca? Embora úlcera não mate tanto quanto insuficiência cardíaca, o primeiro é benefício determinístico (NNT = 1) e presente, o segundo é probabilístico (NNT = 20) e futuro.


Ritalina para pessoas que sofrem de déficit de atenção é outro tratamento de alto desempenho econômico, porém não reconhecido como tal. Quando bem indicado, pode mudar a vida de uma pessoa para muito melhor. Pode haver efeitos adversos, mas a chave da decisão está no retorno do investimento. 


Há casos de pais que relutam que seus filhos usem a substância, preferindo que as crianças se esforcem para superar o problema de forma natural. Esse tipo de pensamento não considera que, se bem indicado, o benefício é imediato e altamente provável. E se não houver beneficio ou efeitos colaterais superarem o benefício, a droga pode ser suspensa. Imediatamente, sem sequelas irreversíveis. 


A carência deste modelo mental econômico causa um comum viés cognitivo: embora tenham maior impacto probabilístico e temporal, tratamentos de sintomas são vistos como menos relevantes do que tratamentos prognósticos. No entanto, podem ser mais impactantes.


Sintomas são vistos como um benefício de segunda classe devido à carência de microeconomia no pensamento médico. Cardiologistas costumar falar: "furosemida apenas controla sintomas na insuficiência cardíaca, mas não reduz mortalidade". Mas estes não   percebem que na insuficiência cardíaca grave não há equipoise que permita um ensaio clínico placebo-controlado para testar eficácia da furosemida. Esta é a melhor droga do mundo, a baseado em plausibilidade extrema, é uma droga indispensável para controle de sintoma e redução de mortalidade por edema agudo de pulmão. 

 



O Feedback do Efeito Presente


Condições de benefício presente têm outra grande vantagem sobre benefício futuro: a evidência do feedback. Em tratamento de efeito presente, evidenciamos o resultado durante o tratamento, nos fazendo concluir que a decisão está sendo adequada ou perceber que o efeito não foi é o esperado. Usando desta evidência clínica, proveniente do próprio paciente, saberemos se estamos corretos ou se devemos desistir da decisão. 



A Equivocada Percepção de Segurança


Muitos consideram que a demonstração de segurança é critério obrigatório para a adoção de uma conduta. Na verdade, muitas de nossas condutas têm insegurança demonstrada. Por exemplo, está demonstrado que anticoagulação causa sangramento. 


"Primum non nocere" é uma heurística útil para lembramos que tudo bem um preço, mas não é uma regra de processo de decisão. Em processo de decisão, a justificativa de uma conduta parte inicialmente do benefício. Ninguém opta por fazer algo apenas por ser seguro. Não existe nada isento de risco, tudo tem um preço; por fim, prova de segurança seria prova de ausência, o que é epistemologicamente impossível.


A incerteza quanto ao risco de uma conduta já testada e aprovada por agências regulatórias (hormônios, por exemplo) é um indicativo que os eventos adversos são pouco frequentes, necessitando de estudos grandes para estimar probabilidade com precisão. Na verdade, o que ensaios clínicos descrevem é ausência de toxicidade proibitiva, condição obrigatória para que uma tecnologia eficaz seja regulada. Outros efeitos negativos, raros, serão demonstrados nos estudos grandes de surveillace após regulação da droga. 


Muitas vezes se trata de ingenuidade platônica criticar condutas por não terem "segurança comprovada". Pensar que condutas apropriadas são iguais a condutas seguras é um erro cognitivo do processo de decisão.


Decisão Compartilhada


A economia de processos de decisão não tem o formato de uma balança, onde de um lado está o custo e do outro o benefício. Custo clínico e benefício clínico são grandezas incomparáveis diretamente, pois representam desfechos diversos. Em lugar da balança, devemos usar a análise sequencial, em que depois de acessar o benefício, avaliamos "disposição a pagar". 


Primeiro foque no benefício, nas dimensões de qualidade, probabilidade e temporalidade. Depois do paciente entender bem as dimensões desse benefício, acesse sua disposição a pagar por este benefício. Após construída com a paciente uma percepção de benefício e disposição a pagar, apresente o preço do investimento.



Há diferentes tipos de pacientes, aqueles com aversão ao risco do tratamento, com menos disposição a pagar. Ou aqueles com aversão ao risco da doença, que desenvolvem tolerância ao risco do tratamento. Em um extremo, um paciente que sinaliza antes de uma cirurgia “retire tudo o que for necessário” tem alta disposição a pagar pela resolução do tumor; outro que diz “prefiro morrer a me operar” tem pouca disposição a pagar.


Há benefício de quimioterapia adjuvante. A questão está em saber se o paciente é do tipo disposto a pagar hoje por este benefício que talvez venha no futuro. Há benefício da terapia hormonal para fins estéticos. A questão é saber do valor deste benefício na qualidade de vida do paciente e a disposição a pagar na forma de probabilidade futura de evento adverso. 


Obviamente, esta discussão não contempla prescrições e condutas inapropriadas, seja na quimioterapia, seja na hormonioterapia. 


Conclusão 


Quando defendemos ou atacamos condutas de efeito terapêutico comprovado, nos afastamos da perspectiva do paciente. A defesa deve ser do profissionalismo de entender nuances e complexidades do processo de decisão econômica. Afinal, medicina é a arte de correr risco. Essa nossa profissão não é fácil, precisa pensamento profundo. 



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Para aprofundamento, conheça o módulo de economia clínica em nosso Curso Online de MBE