quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A Liberdade do Conhecimento (Estudo Freedom)



De forma impactante, foi apresentado no recente congresso do American Heart Association e simultaneamente publicado no New England Journal of Medicine o ensaio clínico FREEDOM, que demonstrou cirurgia de revascularização ser um tratamento mais eficaz do que tratamento com stent farmacológico, em diabéticos com doença coronária severa (80% triarteriais, a maioria com boa função sistólica).

Do ponto de vista metodológico, este é um estudo de resultado confiável, poder estatístico adequado, diferenças estatisticamente significantes e ausência de vieses comprometedores. Sendo assim, não desenvolverei nesta postagem uma discussão quanto à veracidade da informação, pois a considero verdadeira. 

O mais interessante neste caso é perceber quais as implicações dos resultados deste estudo, que me parecem ir além da mera escolha da estratégia de revascularização.

O desfecho primário do estudo foi o combinado de morte, infarto e AVC, apenas desfechos duros (hards). Como já estamos cansados de saber que cirurgia é melhor do que angioplastia no controle dos sintomas e prevenção de novos procedimentos de revascularização, estes não foram escolhidos como partes integrantes dos desfechos combinados, seria redundante.

A redução na incidência do desfecho combinado com a cirurgia se deu a custa de redução de morte e infarto. Este resultado é muito importante, pois este é o primeiro ensaio clínico que demonstra que revascularização miocárdica reduz mortalidade, quando comparado ao tratamento clínico contemporâneo. 

Muitos imaginam que este é um efeito comprovado há muito tempo, porém isto não é exatamente verdade. Voltando ao passado, é importante lembrar que os clássicos ensaios clínicos da década de 70 (CASS, VA) não demonstraram redução de mortalidade com a cirurgia, em relação ao tratamento clínico. Na verdade estes foram estudos negativos em suas análises primárias, sendo sugerido benefício em análise de subgrupo dos pacientes no extremo superior de gravidade. Como sabemos, análise de subgrupo apenas gera hipótese. Por outro lado, o estudo Europeu mostrou redução de mortalidade e, anos mais tarde, uma meta-análise de Salim Yusuf combinou estes estudos, sugerindo melhora da sobrevida no tratamento cirúrgico. Mesmo assim, uma meta-análise que sugere benefício tem ainda 30% de probabilidade de estar incorreta, segundo publicação antiga do New England Journal of Medicine. Desta forma, podemos dizer que até então não havia evidência definitiva de que cirurgia traz benefício de mortalidade. Além disso, o tratamento clínico aplicado àquela época não possuia estatinas e era limitado em relação a terapia antitrombótica. 

Desta forma, o FREEDOM é a primeira evidência contemporânea e de alto nível demostrando que a cirurgia de revascularização tem benefício que vai além do controle de sintomas. É o primeiro dado científico que nos induz a indicar cirurgia para um indivíduo assintomático, caso este seja triarterial. Isso não parece novidade, pois já é uma conduta adotada pela maioria, devido ao nosso ímpeto de heroísmo médico não embasado em evidências. Mas esta poderia ser uma conduta mal indicada, como muitos exemplos de tratamentos adotados na ausência de evidências que depois se comprovam deletérios ou sem efeito nenhum.

Portanto, a partir de agora, a indicação de cirurgia em um paciente assintomático, porém triarterial tem melhor validação. Vale salientar que o benefício apresentado foi de grande magnitude, NNT = 13 para eventos combinados, NNT = 20 para morte, NNT = 13 para infarto.

Importante lembrar que o benefício da cirurgia foi em comparação à angioplastia. Então quando digo que a cirurgia fica indicada para pacientes assintomáticos com DAC grave, parto da demonstração (estudos COURAGE e BARI-2D) de que angioplastia não é inferior ao tratamento clínico contemporâneo, mesmo em pacientes triarteriais. Sendo estes dois semelhantes, se cirurgia é melhor que angioplastia, podemos considerar que cirurgia é melhor que tratamento clínico também. Observem que isso é uma inferência lógica. Resta a possibilidade (não duvido nada) de que em certos pacientes angioplastia seja inferior a tratamento clínico.

Sempre que o tratamento clínico se mostra semelhante à angioplastia ou o tratamento cirúrgico se mostra superior à angioplastia, médicos intervencionistas entram com o argumento de que a angioplastia não foi realizada com o melhor tratamento atual (tipos de stents principalmente). Esse é o tipo de argumento que gera o fenômeno em inglês denominado catch-22. Essa expressão significa um dilema impossível de resolver: precisamos fazer um estudo com o mais novo tipo de tratamento, mas estes estudos duram 5 -10 anos do início do planejamento até a publicação, então quando o estudo terminar, o tratamento não é mais novo. Assim, nunca teremos um estudo que prove algo ser superior à angioplastia. Boa tática para não aceitar resultados que não queremos aceitar. Ótimo exemplo de catch-22.

Um segundo aspecto importante do FREEDOM é que a superioridade da cirurgia é consistente em pacientes com escore Syntax baixo, médio ou alto. Isto fica claro na análise de subgrupo, que mostra ausência de interação (P = 0.58) entre o escore Syntax e a superioridade da cirurgia. Ausência de interação significa ausência de modificação de efeito. Ou seja, o escore Syntax não modifica do efeito da cirurgia, não modifica o fato desta ser superior à angioplastia.

Este dado desfaz um erro histórico de interpretação do estudo Syntax. A primeira publicação do Syntax não conseguiu demonstrar não inferioridade da angioplastia em relação a cirurgia. Quando foram analisados os subgrupos de acordo com o escore Syntax, houve semelhança nos pacientes de Syntax baixo e a diferença era menor nos pacientes de Syntax intermediário. Os intervencionistas gostaram destes resultado e disseram que a cirurgia só é melhor em pacientes de Syntax alto. Esse é um erro grave: fazer prevalecer o resultado de análise de subgrupo em relação à análise geral. Subgrupo apenas gera hipótese. Mas agora sabemos, não importa o Syntax: cirurgia é melhor.

Diabéticos


A esta altura da postagem, muitos devem estar pensando porque eu estou generalizando estes achados e não me referindo apenas a pacientes diabéticos. A justificativa é o princípio da complacência na análise de aplicabilidade de uma terapia. De fato, o estudo foi feito apenas em pacientes diabéticos, com doença coronariana severa. O que mais contou para o resultado encontrado? Foi o fato dos pacientes serem em sua maioria triarteriais ou o fato de serem diabéticos? De fato, diabetes é um fator de risco para desenvolvimento de aterosclerose (terceiro em ordem importância) ou seja contribui para a existência de uma doença mais extensa. Porém, uma vez a doença aterosclerótica triarterial instalada, importa se o paciente é diabético ou não? Triarterial é triarterial. Alguns intervencionistas podem argumentar que o diabético terá mais reestenose. Aí me reporto a uma postagem recente sobre o pensamento multivariado. No mundo multivariado, diabetes é um dos fatores de menor peso importantes para a desenvolvimento de reestenose (quem achou estranho o que acabo de falar, leia postagem prévia). Na análise de aplicabilidade, devemos nos perguntar: se funciona do diabético triarterial, há alguma grande razão para nos fazer duvidar que não funciona no triarterial não diabético. Esse é o princípio da complacência, que sugere sermos menos rigorosos e estender a aplicabilidade de dados verdadeiros e relevantes (NNT = 13) para uma população além da estudada (triarteriais).

Além disso, criou-se erradamente um mito de que o diabético é muito diferente do não diabético. Na verdade tem muito diabético que nem diabético era antes da redução do ponto de corte da glicemia para 125 mg/dl.

Acredito que a importância  do achado deste estudo vai além dos diabéticos. Diabetes é apenas um dos mecanismos pelo qual um indivíduo desenvolve uma doença coronariana severa, mas uma vez essa doença desenvolvida, todo mundo é “igual”. Um indício é que não há nenhum tratamento cardiovascular que funcione diferente em diabéticos e não diabéticos: a eficácia de anti-hipertensivos, estatinas, aspirina, é tudo igual.

Mas para quem ainda está cético com o que estou falando, é só olhar os resultados do seguimento de 5 anos do estudo Syntax, que envolve pacientes com doença grave em geral, não só diabéticos. O estudo ainda não foi publicado, mas ficou claro que em seguimento de longo prazo, cirurgia reduz mortalidade e infarto, quando comparado a angioplastia. Aí está a demonstração de que a coisa vai além do diabético. E isso foi independente do escore Syntax.

FREEDOM (liberdade)

Na verdade, o estudo FREEDOM nos faz perder (não ganhar) algumas liberdades. De um lado, perde-se a liberdade de banalizar o tratamento da doença coronária severa com a supervalorização da angioplastia coronária, em detrimento da cirurgia. De outro lado, perde-se a liberdade de manter o tratamento clínico apenas em pacientes assintomáticos com doença coronária severa, que sejam de baixo risco cirúrgico. Agora (só agora) sabemos que cirurgia reduz mortalidade em pacientes triarteriais.

Importante salientar que nada disso justifica a pesquisa de doença coronária em pacientes assintomáticos. Isso continua inapropriado, como já comentado algumas vezes neste Blog. Em breve, abordaremos melhor este problema de overdiagnosis.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Terapia de Reposição Hormonal: previne eventos cardiovasculares?

Como fazer quando uma nova evidência vai de encontro com o conhecimento vigente? Neste caso, precisamos analisar criticamente a nova evidência, comparando-a com a evidência mais antiga que atualmente norteia a conduta. Ou seja, o novo não é necessariamente melhor, temos que analisar onde está a verdade.

Isso aconteceu há algumas semanas, quando foi publicado no prestigioso British Medical Journal um estudo dinamarquês intitulado Effect of hormone replacement therapy on cardiovascular events inrecently postmenopausal women: randomised trial. Trata-se de um ensaio clínico randomizado (1.000 mulheres), demonstrando que a terapia de reposição hormonal (TRH) traz benefício cardiovascular em mulheres menopausadas. No grupo tratamento a incidência de eventos cardiovasculares foi 3.2% versus 6.6% no grupo controle (P = 0.015). Além disso, não houve aumento de câncer de mama, nem de eventos tromboembólicos.

Essa informação é contrária ao conhecimento trazido pelo WHI, grande (16.000 mulheres) ensaio clínico randomizado, publicado em 2002, o qual demonstrou que este tratamento aumenta a incidência de eventos coronários, AVC, tromboembolismo pulmonar e câncer de mama. Baseado nisso, se considera que não há indicação do uso desta terapia para fins de prevenção cardiovascular. A justificativa para este tratamento é melhora da qualidade de vida, naquelas mulheres com sintomas de menopausa.

Mas e agora?? Com este novo ensaio clínico, devemos passar a prescrever TRH em menopausadas como estratégia de prevenção cardiovascular? Inclusive os autores argumentam que o benefício foi alcançado devido à introdução precoce da droga após a menopausa (timing hypothesis), diferente do WHI que randomizou as pacientes vários anos após a menopausa. Isso mesmo, se você introduzir na hora certa, traz benefício; se introduzir na hora errada, traz maléfico. Até parece história de feitiçaria. Existe algum tratamento assim, que a depender do momento do uso gera efeitos totalmente paradoxais?

Sendo assim, antes de aceitar essa explicação causal para o resultado favorável, devemos avaliar a possibilidade deste resultado ser causado por acaso ou viés.

Acaso

Em primeiro lugar, este estudo é subdimensionado, tendo poder estatístico reduzido. Possui apenas 1.000 mulheres, um número muito abaixo das 16.000 necessárias no WHI para avaliar benefício e segurança. Inclusive a descrição do tamanho amostral não especifica a incidência esperada do desfecho, tornando impossível de avaliarmos se o cálculo de 1.000 pacientes faz sentido. Provavelmente, não. A descrição serve apenas para fazer parecer que os autores se preocuparam com poder estatístico. E na ausência de poder estatístico, uma diferença encontrada (mesmo estatisticamente significante) tem veracidade duvidosa. Ou seja, a acurácia do valor de P (em estimar a probabilidade do resultado encontrado na vigência da hipótese nula) é reduzida. Portanto, não podemos afastar o acaso como explicação do resultado encontrado. 

A este respeito, foi recentemente publicado no JAMA o trabalho Empirical Evaluation of Very Large Treatment Effectsof Medical Interventions demonstrando que estudos pequenos geram resultados mais favoráveis do que estudos grandes. Da mesma forma, estudos pequenos trazem com mais frequência resultados positivos do que estudos grandes. Percebam que estudos negativos (que não mostraram benefício) publicados em revistas de impacto sempre se tratam de grandes ensaios clínicos. Nunca vemos um pequeno ensaio clínico negativo sendo publicado em revista de grande impacto. Pequenos ensaios clínicos só são publicados quando seus resultados são positivos. Só tendo resultados positivos estes estudos conseguem ser publicados em grandes revistas. Isto é denominado viés de publicação. O problema é que estes pequenos estudos positivos possuem veracidade questionável, pois para conseguirem significância estatística um estudo pequeno necessita de uma diferença de magnitude tão grande que se torna inverossímil. Além disso, o valor de P é a estimativa de um dado resultado ser encontrado apesar da hipótese nula ser verdadeira. Quando o estudo é subdimensionado esta estimativa perde precisão, o valor de P pode não refletir a realidade.   

Viéses

Em segundo lugar, devemos avaliar a possibilidade de viéses. Este é um estudo aberto, tanto o paciente como o médico sabiam se a mulher estava utilizando a TRH. Alguns mecanismos podem fazer com que o caráter aberto enviese os resultados. Neste caso, viés de desempenho (performance bias) pode ser um deles: ao saber que a mulher está em uso de TRH, esta pode receber mais cuidados médicos, melhor controle de fatores de risco, mais atenção quanto a eventuais eventos coronários. Isso pode reduzir o risco destas mulheres, não pela TRH, mas pelo que esta traz em termos de cuidados adicionais. Além disso, a aferição de eventos pode ser enviesada por uma crença do pesquisador (não cego) no benefício da terapia. Na verdade, fico a me perguntar o que faz um pesquisador planejar um estudo de 1000 pacientes, 10 anos de seguimento e não de dá ao trabalho de cegar o estudo com uso de placebo.

Em terceiro lugar, qualquer estudo de prevenção primária em cardiologia avalia eventos relacionados diretamente a doença aterosclerótica, ou seja, infarto e AVC. Sem uma lógica prévia, este estudo colocou insuficiência cardíaca como um dos componentes do desfecho primário e foi este desfecho que mais contribuiu com o resultado. Se tivesse feito como o WHI (morte ou infarto) não haveria benefício demonstrado. Da mesma forma, se tivesse considerado morte, infarto ou AVC, a diferença não seria estatisticamente significante.

Por todos estes motivos, não podemos considerar este estudo verdadeiro em afirmar que a TRH previne eventos cardiovasculares, pois o mesmo não passa na prova da análise crítica de evidências. Este estudo de 1.000 pacientes, aberto e com definição questionável do desfecho primário não é suficiente para modificar nossa crença do prejuízo cardiovascular desta terapia criada a partir de um estudo de 16.000 mulheres, cego, com definição adequada do desfecho primário.

Este é um bom exemplo de como a análise crítica de uma evidência nos ajuda a separar trabalhos que devem modificar paradigmas daqueles que servem apenas de provocação. Este é o valor deste artigo, apenas provocar nossa reflexão.

Visão Bayesiana

Outro aspecto que deve ser discutido é a visão bayesiana na análise de evidências. Neste tipo de análise, devemos considerar a probabilidade pré-estudo do tratamento ser benéfico. Neste caso, temos o WHI mostrando que o tratamento aumenta infarto, AVC, tromboembolismo venoso e câncer. Qual a probabilidade de iniciando o tratamento mais cedo, este provocar redução de infarto, AVC, tromboembolismo venoso e câncer? É pequena. Pode até ser que o prejuízo seja menor porque as mulheres são mais jovens (menos susceptíveis), mas sair de deletério para benéfico seria algo sem precedentes. Sim, sem precedentes, pois não existe interação paradoxal. Excluindo eventos adversos, se pensamos apenas no princípio ativo primário, não conheço nenhum tratamento que seja bom em um grupo de pessoas e ruim em outro grupo. Usualmente, as interações são quantitativas e não qualitativas: é comum ver algo melhor em um grupo do que em outro, mas inversão total do efeito, de maléfico para benéfico é algo muito raro ou até mesmo inexistente.

Sendo então a probabilidade pré-estudo de benefício muito baixa, para mudar nosso pensamento necessitaríamos de uma evidência muito forte, e não é o que temos aqui. 

Entusiasmo versus Evidência

Sei que há os entusiastas da TRH para prevenção cardiovascular. Ser entusiastas do ponto de vista científico tem sua validade, mas devemos ter o cuidado para que este entusiasmo não promova uma interpretação favorável de evidências de baixa qualidade. Temo que este artigo sirva de motivo para que se passe a recomendar TRH como prevenção cardiovascular. Em 2008, uma absurda diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia e Sociedade do Climatério recomendou TRH com prevenção cardiovascular, grau de indicação IIa. Agora, imagine o que “entusiastas” poderão fazer com esta nova evidência.

Sob a ótica de uma interpretação responsável e científica, até que se prove o contrário, TRH não previne eventos cardiovasculares.