quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

A Veja e o lobby a favor da Sibutramina


Leio a Veja, para mim é fonte razoável de informações sobre política, economia, cinema, arte em geral. Gosto da revista, porém quando leio uma reportagem médica (o único tipo de assunto que posso julgar de um patamar superior), fico a questionar se o que estou lendo nos outros tópicos tem tão pouca acurácia como o que leio sobre saúde. Será que o que leio sobre economia é tão limitado (ou enviesado) como o que observo nas reportagens sobre saúde? Isso é importante, pois estas reportagens modelam o pensamento coletivo e acabam influenciando a forma como a medicina é exercida. Principalmente quando a reportagem é de capa da Veja, a principal revista do país.


Nesta semana, a reportagem de capa é uma clara defesa das drogas anorexígenas, motivado pela potencial suspensão da Sibutramina pela ANVISA. Já escrevi três vezes neste Blog sobre a Sibutramina (1, 2, 3), mas sou obrigado a voltar ao assunto pela quarta vez. A eloqüente capa da Veja diz:

Remédios para emagrecer. Por que é ruim proibir a venda. Milhões de brasileiros em guerra com a balança dependem destes medicamentos para perder peso e garantir uma boa saúde. Vamos analisar cientificamente esses dois itens: saúde e perder peso.

Primeiro, o marcador mais importante de saúde é a incidência de eventos clínicos. O ensaio clínico que está motivando a suspensão da Sibutramina no mercado é o SCOUT, publicado no New England Journal of Medicine em 2010. Foi um ensaio clínico grande, desenhado para mostrar redução de eventos cardiovasculares com a droga redutora do peso. Para mostrar redução de eventos com mais facilidade, os investigadores selecionaram uma amostra de pessoas mais predispostas a eventos cardiovasculares. Pois bem, o resultado foi o contrário do esperado (como muitas vezes acontece em medicina): a droga aumenta a incidência de infarto e AVC. Isso é “garantir uma boa saúde”, como diz a capa da Veja?
Alguns argumentam (sem evidências consistentes) que não teria problema se a droga fosse usada em pacientes de menor risco cardiovascular. Mesmo se isso fosse verdade (não sabemos), não justifica o uso da droga, pois não há benefício clínico demonstrado nestes pacientes? O que justifica o uso de uma terapia é o benefício e não a simples ausência de malefício. Impressionante como esse tipo de argumento é recorrente, ou seja, se basear em uma eventual ausência de malefício para justificar o uso.

Quanto ao malefício, de fato não sabemos se existe risco em pacientes de menor risco. Porém, uma vez demonstrado malefício no SCOUT, só podemos negar o malefício em outro tipo de população se demonstrarmos segurança cientificamente. Não apenas supor. A segurança em pessoas de baixo risco é só uma hipótese. Além disso, obesos não são pessoas exatamente de baixo risco, pelo menos é o que dizem.

Falar que traz saúde é uma inverdade. O argumento certo a favor da droga seria qualidade de vida. Aí a gente deve considerar a segunda parte da frase trazida pela capa de Veja: “perder peso”. Quanto de peso as pessoas perdem ao usar Sibutramina? Essa é uma pergunta central nessa discussão, portanto nada como um ensaio clínico randomizado para responder essa pergunta. A resposta de acordo com o ensaio clínico SCOUT é 4.3 Kg perdidos em 3 anos de tratamento. Não parece ser exatamente um benefício de magnitude suficiente para justificar o uso frente a aumento de risco cardiovascular ou ausência de conhecimento a respeito da segurança.

De posse destas evidências científicas, não dá muito para entender o porquê de tanta controvérsia, se não pensarmos em conflitos de interesse. É sempre a mesma história, quando um ensaio clínico bem desenhado não dá o resultado que as pessoas querem, justificativas estapafúrdias são utilizadas com objetivo de rejeitar a evidência científica.

Há alguns anos o Rimonabant foi capa da Veja e Istoé ao mesmo tempo, quando do lançamento da droga. A droga foi lançada, médicos prescreveram, presentes foram distribuídos pelo laboratório responsável. Foi um oba oba, se falava em cura da obesidade, sem evidências científica a respeito de desfechos clínicos. A droga foi lançada no Brasil, nunca liberada pelo FDA. Meses depois, a ANVISA suspendeu a medicação, devido a efeitos colaterais na esfera do humor. Não precisava ter passado pelo constrangimento.

O que a ANVISA está fazendo agora nada mais é do que medicina baseada em evidências. A ANVISA não praticou medicina baseada em evidências quando aprovou a Sibutramina, agora está se corrigindo. Ainda não está decidido, mas tudo indica que a droga será suspensa.

Por fim, a pergunta que não quer calar é o que a Veja está ganhando com tamanho lobby a favor dessa droga? Gosto da Veja, principalmente das opiniões políticas que lia durante o governo Lula. Mas tenho que concordar com meus amigos petistas, a Veja parece mesmo tendenciosa.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Pra que alongar antes de correr ?



Quando vejo uma comunidade valorizar algo em demasia, desconfio, o grau de valorização pode ser desproporcional ao grau de evidências. Isso é comum. Uma ótima saída para quando não queremos fazer uma coisa, é nos perguntarmos: há benefício comprovado?

"Alongo em algum momento do dia, mas não necessariamente antes da corrida", já dizia o triatleta Júlio Neves em uma conversa informal. Gostei e me senti mais livre ainda para não alongar.

Gosto de correr, mas nunca fui submisso a esse negócio de alongar. Sempre achei essa recomendação um pouco exagerada. No dia em que estou meio malicioso até penso que é uma babaquice. Nunca aceitei essa tirania, pois sabia que não havia evidência. Bem, agora há evidência de ensaio clínico radomizado: alongar não traz benefício, ... nem malefício.

E tão bom quando vemos um ensaio clínico randomizado a respeito de um simples hábito de vida. É a vida cotidiana sendo avaliada por evidências probabilísticas. Filosófico. Reforça o paradigma da saúde beseada em evidências.

Foi o próprio Júlio Neves que publicou em seu facebook  a notícia do ensaio clínico The impact of a pre-run stretch on the risk of injury in runners, apresentado no congresso da Academia Americana de Ortopedistas, cujo abstract está disponível do site. Foram 1.398 pacientes randomizados para alongar ou não alongar antes de correr e ao final de 3 meses a incidência de lesões foi 16% em ambos os  grupos.

Mais um mito derrubado. Na vida, vemos muitas paradigmas sendo derrubados. Mas grande parte dos paradigmas precisam ser derrubados porque nunca deveriam ter sido criados. Essa mania de criar mitos, crenças não embasadas dá nisso. Parece que o conhecimento muda muito, mas em muitos casos não é exatamente uma mudança de idéia, pois não deveria ter existido idéia alguma.

Agora vou ficar observando se esta evidência científica vai ter algum impacto prático. Esse é outro problema. Primeiro, a falta de evidências. Depois, a penetração das evidência na prática. Há uma grande lacuna entre o conhecimento e a modificação de conduta baseada em conhecimento.

Será que vamos continuar vendo as grandes rodas nos grupos de corrida, com todos alongando simultaneamente, num rito quase religioso? Tomara que eu esteja errado, mas acho que tudo vai continuar do mesmo jeito. Pelo menos não faz mal.

O que não vai continuar do mesmo jeito sou eu quando meus amigos educadores físicos vierem me dar lição de moral quando me virem sem alongar. Agora tenho a resposta na ponta da língua.

O Colesterol, os Cardiologistas e o Ministério da Saúde


Uma recente controvérsia a respeitos dos valores ótimos do colesterol nos serve de estímulo para discutir como devemos nos posicionar quando pensamos em medidas preventivas em saúde pública. Uma medida preventiva populacional deve ser o mais abrangente possível e para isso precisa ser democratizada, descomplicada. Quando pensamos em prevenção de doença cardiovascular, devemos simplificar a identificação de candidatos e uniformizar a terapia. Assim mais pessoas se beneficiarão. Esta é uma idéia que começa a surgir no meio cardiológico, embora ainda pouco difundida (vide Yusuf, Circulation  2010).  Vamos à história que motivou nossa discussão:

A Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) divulgou por e-mail aos associados e em seu site que enviou documento à Secretaria de Atenção à Saúde, solicitando alterações na Diretriz de Dislipidemia do Ministério da Saúde, colocada em consulta pública em dezembro de 2010.

Ao tempo em que mostra certa insatisfação por não ter sido consultada quando da preparação da Diretriz, a SBC expressa discordância quanto à concentração plasmática de LDL-colesterol que devemos considerar ótima. Do site da SBC:

“A entidade maior dos cardiologistas, que não foi consultada ou ouvida quando da redação da Diretriz, lembra ... que a recente "IV Diretriz Brasileira de Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose", da SBC, faz recomendações que podem levar à redução expressiva dos eventos cardiovasculares, ... mas essas recomendações não foram contempladas no documento gerado em Brasília.”

“Um dos argumentos dos cardiologistas é que na "Consulta Pública" o nível ótimo do LDL-colesterol (colesterol ruim) é apontado como inferior a 100 miligramas por decilitro de sangue, enquanto os cardiologistas consideram o nível ótimo muito mais baixo, inferior a 70 mg/dL.”

Procurei na notícia do site as referências que embasam as afirmações dos cardiologistas. Não há citações de quais evidências justificam a discordância em relação ao Ministério da Saúde. O documento enviado ao Ministério deve conter tais citações, mas não consegui achar o documento original no site.

Imagino que tenha sido principalmente o estudo JUPITER que instigou os cardiologistas ao posicionamento quanto ao valor ótimo do colesterol. Como já fizemos algumas vezes neste Blog, é sempre estimulante voltar a discutir o estudo JUPITER, pois ele é um bom exemplo para treinamento de análise crítica de  artigo científico.

O estudo JUPITER foi um ensaio clínico que avaliou indivíduos sem doença cardiovascular, de risco intermediário, com mediano do LDL-colesterol de 108 mg/dl, randomizados para usar estatina ou placebo. A concentração final de LDL-colesterol apresentou mediana de 55 mg/dl no grupo estatina, sendo observado redução de eventos cardiovasculares.

Provavelmente, esta evidência de benefício da estatina é verdadeira. Mas não basta que uma informação seja verdadeira, sua aplicabilidade deve depender também da relevância (magnitude do benefício). Principalmente quando a recomendação é populacional, feito pelo ministério da saúde de um país.

Os autores do estudo JUPITER argumentaram na época que a magnitude do benefício foi surpreendente. Porém o cálculo do número necessário para tratar (NNT) em cinco anos para prevenir um evento cardiovascular foi totalmente impreciso e extrapolado. Isto porque o JUPITER foi um estudo truncado (interrompido antes da hora) e apenas 300 dos 18.000 pacientes foram seguidos pelos cinco anos planejados. Apenas 7.000 dos 18.000 pacientes foram seguidos por pelo menos dois anos. Isso dá uma imprecisão enorme na estimativa da magnitude do efeito da intervenção durante cinco anos. Se utilizarmos os dados do hazard fornecido pelo estudo, podemos fazer nosso próprio cálculo do NNT para prevenir uma morte no período de um ano, o que dá 400 pacientes. Se compararmos com estudo 4S, por exemplo, este NNT é 160, bem menor.

Segunda coisa importante é que o cálculo do NNT do JUPITER foi para desfechos combinados. Dentre estes desfechos, está a necessidade de internação por angina e revascularização. Estes eventos são menos importantes do que infarto, AVC ou morte, e nunca haviam sido considerados nos estudos clássicos de estatina. Portanto, do ponto de vista qualitativo, o tipo de evento prevenido também foi menos importante em boa parte das vezes. Metade dos eventos do estudo foi representada por estes dois tipos de desfecho.

Analisando a seqüência histórica de ensaios clínicos sobre eficácia de estatinas, percebemos que o grande benefício é proveniente do simples uso de estatina. Ao passo que o benefício adicional de uma terapia mais agressiva em relação a uma terapia moderada é de menor magnitude, embora existente. O próprio estudo PROVE-IT que comparou terapia agressiva versus moderada em pacientes com síndromes coronarianas agudas (extremo superior de gravidade) mostrou um NNT para morte quatro vezes maior do que o observado no estudo 4S, que comparou estatina versus placebo. Imaginem isso em prevenção primária, o benefício seria menor ainda. Pena que não há estudo que compare terapia agressiva versus moderada em prevenção primária.

Ou seja, a grande diferença mesmo é obtida quando se introduz a estatina, independente de sua dose. O ganho adicional de uma dose alta ou de uma estatina mais potente é proporcionalmente bem menor.

Além disso, o JUPITER estudou pacientes de risco intermediário (selecionados a partir de um valor elevado de proteína C-reativa), enquanto a população geral tem risco menor do que a amostra deste estudo. Isso faria com que a magnitude do benefício fosse menor ainda na população geral.

Do ponto de vista de saúde pública, o importante é difundir o uso de estatina para quem precisa. Ou seja, uma estatina barata em dose moderada, oferecida de forma generalizada para pacientes com dislipidemia, mesmo que discreta. Ficar falando em terapia agressiva, em meta de colesterol em torno de 70 mg/dl, nos faz perder o foco populacional. Com o custo de 1 terapia agressiva para colesterol, seríamos capazes de tratar 4 pacientes da forma convencional. 

Além disso, como dito acima, a terapia agressiva nunca diretamente foi comparada à terapia moderada em prevenção primária. Assim, não podemos saber precisamente dados de custo-efetividade a este respeito.

Técnicos do Ministério da Saúde pensam com o foco da saúde pública, enquanto cardiologistas pensam de forma individualizada, pois tratamos pacientes e não populações. Isso é natural. Por este motivo que os cardiologistas não concordaram com a Diretriz. Por sinal, muito bem escrita, em forma de revisão sistemática. Deveríamos nos mirar nela ao escrever nossas Diretrizes.

Na verdade, alguém poderia argumentar que do ponto de vista estritamente cardiovascular, o colesterol ideal é provavelmente zero, quanto mais baixo melhor. A controvérsia em cima de um valor ideal (70 mg/dl vs. 100 mg/dl) é algo muito mais filosófico do que de ordem prática. Para ser de ordem prática, do ponto de vista populacional deveria existir evidência, a evidência deveria ser relevante e a relação de custo-efetividade deveria estar bem definida.

Enfim, o ótimo é inimigo do bom, principalmente em saúde pública. É natural que uma diretriz do governo seja diferente de uma diretriz de uma sociedade cardiológica. O enfoque é diferente.