sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Café Científico com Péricles Esteves - Medicina Baseada em FÉvidência


Nas primeiras horas da manhã de hoje, recebi o usual email de Dr. Péricles, me corrigindo de erros que normalmente cometo nos posts. Aproveitando a oportunidade, o provoquei como parte da geração que vivenciou a santificação do beta-bloqueador no cenário do infarto do miocárdio.
Compartilho aqui sua resposta, em seu estilo sempre particular.

LC,

Obrigado por me lembrar que eu sou de outra época. Tinha esquecido. Ou não (Gilberto Gil)!

A capacidade de analisar um estudo naquela época era enviesada. Não se falava em Medicina Baseada em Evidências. Valia mais a revista, o autor e a instituição. Pesou mais o ISIS-1 que o MIAMI ! A Indústria, em paralelo e sem a devida vigilância, divulgava intensamente o que era de seu interesse. E a imensa maioria dos cardiologistas considerava um ato de fé seguir o que seria um novo paradigma. 

Os tempos mudaram, embora a Indústria continue mais ativa ainda!

Minha última informação, antes da aposentadoria, era só indicar betabloqueadores se o IAMCSST fosse sem reperfusão, o COMMIT era a última palavra, e disfunção sistólica presente justificava. 
Permanece assim? Sem reperfusão em tempo hábil, ainda é maioria, mesmo hoje? Era de 50% nos grandes centros e 25% no global. Ou mudou?

Para mim sua visão crítica é irretocável e bastante didática. Envereda até para um entendimento filosófico da ciência médica. Me faz continuar meditando sobre "o que foi, o que é e o que será" a cardiologia (e todo o resto). 

Esqueci de dizer que existe uma nova corrente de médicos ativos, que praticam um meio-termo, a Fé e a Evidência. Adotaram a Medicina Baseada em Fevidências !?!?!

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Beta-Bloqueador no Infarto: um santo sem milagre


Paradigmas médicos mudam com frequência? Embora prevalente, esta é uma ideia equivocada, pois não são os verdadeiros paradigmas que normalmente mudam. O que muda são as ideias criadas sem embasamento em alto nível de evidência. Foi isso que aconteceu com o religioso uso de beta-bloqueador em pacientes infartados. 

Essa discussão está em voga nestas últimas semanas devido à recente publicação de uma revisão sistemática e meta-análise pelo American Journal Medicine, sobre o efeito do uso de beta-bloqueador no infarto do miocárdio com supradesnível do ST. Este artigo questiona o benefício desta classe de drogas nesta circunstância, mostrando que não há redução de mortalidade com o uso de beta-bloqueador na era da reperfusão. Por outro lado, na era pré-reperfusão, uma análise de sensibilidade (subgrupos de artigos) mostra redução de mortalidade.

A ausência de benefício na era reperfusão já estava bem demonstrada desde 2005 pelo gigante (45.000 pacientes) ensaio clínico randomizado COMMITT, que não mostrou qualquer redução do desfecho mortalidade com uso de beta-bloqueador. No entanto, o resultado deste estudo não ficou bem sedimentado, pois uma análise de desfecho secundária confundiu a mensagem negativa daquele trabalho: havia redução de mortalidade por arritmia e aumento de mortalidade por choque cardiogênico.  E mais ou menos assim foi concluído (leiam o resumo do artigo). Daí as pessoas passaram a evitar beta-bloqueador precoce em pacientes com disfunção, porém manter em pacientes sem disfunção. Esse é um bom exemplo do uso de desfechos secundários ou análises de subgrupo (em detrimento da análise principal), no intuito de confundir a mensagem negativa de um trabalho. Não precisávamos dessa meta-análise para interromper o uso do tratamento. 

Percebo que o nome meta-análise funciona como mágica, sensibilizando as pessoas como se fosse a voz de Deus (não é). Por isso que agora (só agora) as pessoas de fato acordaram para esta ausência de benefício na era da reperfusão.

Mas onde acho mais educativo focar nossa discussão é na era pré-reperfusão, pois foi lá que surgiu a ideia de beta-bloqueadores como drogas quase obrigatórias no uso de curto e longo prazo (a vida toda) em pacientes que sofreram infarto com supradesnível do ST (na época denominado infarto com Q). Foi naquela época que, por algum motivo, ocorreu o fenômeno de sedimentação intensa de uma ideia. E quando este fenômeno ocorre, a ideia se torna uma verdade absoluta e ninguém se pergunta de onde ela veio exatamente. A frase “está demonstrada redução de mortalidade” vira um mantra inquestionável. 

Isso que ocorreu com o uso de beta-bloqueador, a partir da publicação do grande ensaio clínico ISIS-1 em 1986, ano em que eu ainda estudava para o vestibular de medicina. Desde então, fui treinado ouvindo o mantra, a ponto de nunca ter me dado ao trabalho de ler o ISIS-1. Mas dessa vez tive a curiosidade de fazer o que deveria ter feito no final dos anos 80, quando já cursava medicina.

Nos primeiros minutos de leitura do ISIS-1, fiquei pasmo. Percebi que aquele foi um estudo negativo, e não positivo!! Exatamente, o mantra da diferença de mortalidade não alcançou significância estatística, não rejeitou a hipótese nula (P = 0.07). E isto não tem grande potencial de ter sido erro tipo II (não detectar uma diferença verdadeira por falta de poder estatístico), pois aquele foi um estudo muito grande, de 16.000 pacientes, suficiente para encontrar reduções de risco não muito grandes.

E a surpresa não para por aí. O ISIS-1 é um ensaio clínico aberto, não há placebo, fazendo com que todos, pacientes e equipe médica estivessem cientes do grupo de alocação. O autor do ISIS-1 se defende contra um potencial viés de aferição decorrente do caráter aberto, argumentando que morte é um desfecho muito objetivo. Pouco provável também que efeito placebo reduza mortalidade, de fato. Porém o autor não menciona o potencial viés de desempenho que pode ocorrer em estudos abertos, quando o tratamento experimental traz consigo maior atenção ou entusiasmo da equipe médica. Pacientes randomizados para beta-bloqueador podem ter experimentado melhor qualidade assistencial durante a fase aguda do infarto, visto que eram submetidos a um protocolo original (uso venoso, seguido de uso oral), que requeria melhor atenção de uma entusiasmada equipe médica; diferente dos pacientes do outro grupo, que eram randomizados para fazer o usual e pouco se diferenciavam de um paciente qualquer. 

Esse tipo de viés tem sido relatado neste blog em exemplos de estudos que geraram falsas ideias, tal como os hipotermia na parada cardíaca e beta-bloqueador no pré-operatório de cirurgia não cardíaca. No caso do beta-bloqueador, autores interessados em não cegar o estudo utilizam o argumento de que o isso seria dificultado pelo efeito bradicardizante da droga. De fato, alguém poderia desconfiar que uma pessoa estivesse usando beta-bloqueador, porém desconfiar é diferente de saber. É a certeza coletiva da participação no grupo experimental que promove o viés de desempenho.

No ISIS-1, dois desfechos morte receberam o mesmo grau de importância, não sendo mencionado qual dos dois foi o desfecho primário. Assim, consideramos que tratam-se de desfechos co-primários: mortalidade vascular nos primeiros 7 dias e mortalidade no follow-up prolongado (média de 20 meses). No primeiro caso, foi observado menor mortalidade no grupo do atenolol, com uma valor de P = 0.04. Porém ao longo do seguimento tardio, essa significância estatística se perdeu, gerando o valor de P = 0.07. Como interpretar isso? A redução de mortalidade hospitalar não se mantém, será que o tratamento apenas adia o óbito? Talvez. Por fim, devemos salientar que quando temos dois desfechos primários, a definição de significância estatística deve ser ajustada para o fenômeno estatístico dos múltiplos testes, o qual faz com duas tentativas (dois desfechos) torna-se mais provável que a sorte (acaso) se faça presente na demonstração de um benefício. Sendo assim, o valor de P deveria ter sofrido o denominado ajuste de Bonferroni, ou seja, multiplicado pelo número de comparações. Ou seja, esse P = 0.04, a rigor deveria ser P = 0.08. 

Um ano antes da publicação do ISIS-1, havia sido publicado no European Heart Journal um estudo suíço de nome MIAMI, o qual randomizou 8.600 pacientes para metoprolol e placebo, em um desenho duplo-cego, placebo controlado. Qual foi o resultado? P = 0.29, ou seja, estudo negativo, beta-bloquedor não reduz mortalidade. Desta forma, entra o viés de desempenho do aberto ISIS-1, como explicação para aquele resultado. 

Às vezes um estudo aberto representa um pesadelo, daquele tipo que somos acordados de um sonho no qual estamos nús no meio de uma multidão. Um estudo aberto é como um estudo nú, sem proteção quanto a este tipo de viés. 

Agora percebam o que aconteceu: em seguida ao estudo de boa qualidade  e negativo (MIAMI), publica-se o ISIS-1, estudo de qualidade inferior, cujo resultado positivo apagou o resultado do primeiro. Uma clara demonstração de que a aceitação de uma evidência é mais influenciada pelo entusiasmo gerado por seu resultado do que pela qualidade do trabalho que gerou a evidência.

Fico a me perguntar onde estavam os pensadores da época? Porque essa é uma terapia com indicação classe I nos guidelines? Por que este é um dos itens de performance measures (qualidade assistencial) do tratamento de infarto?

Na meta-análise do American Journal of Medicine observa-se interação entre os estudos da fase pré-reperfusão (redução de mortalidade com beta-bloqueador) e os estudos da fase reperfusão (ausência de redução de mortalidade). Isto tem sido interpretado como beta-bloqueador sendo benéfico em pacientes não reperfundidos. Esse é um equívoco. Esta meta-análise demonstra claramente que na era pré-reperfusão os estudos eram na sua maioria categorizados em alto risco de viés, o que era menos frequente na era pós-reperfusão. E houve interação entre benefício demonstrado e risco de viés. Ou seja, estudos classificados como alto risco de viés sugeriam benefício, enquanto os estudos de baixo risco de viés eram negativos. 

Isso é exatamente o que foi caracterizado na meta-análise do Lancet sobre o efeito clínico da  homeopatia. Estudos de alto risco de viés foram positivos, enquanto estudos de baixo risco de viés foram negativos. O problema é que as pessoas escolhem os estudos a ser citados com base no interesse que têm pelo resultado e não na qualidade do trabalho. 

Enfim, beta-bloqueador nunca reduziu mortalidade no infarto. A mensagem é simples assim.

Mas e se reduzisse? Se o estudo ISIS-1 fosse duplo-cego e o benefício demonstrado fosse estatisticamente significante? Poderíamos dizer "beta-bloqueador reduz mortalidade no infarto”, mas esta informação não seria suficiente. Precisaríamos saber o quanto de mortalidade é reduzida (impacto). Precisamos calcular o NNT. 

O grupo beta-bloqueador teve 3.9% de mortalidade nos primeiros 7 dias, comparado a 4.6% de mortalidade no grupo controle. Assim, a redução absoluta do risco foi 0.7% (4.6 - 3.9). E ao dividir 100 / 0.7, chegamos a um NNT de 143. Isso mesmo, precisaríamos tratar 143 pacientes com beta-bloqueador para prevenir uma morte. Um benefício que (mesmo falando em morte) deve ser caracterizado como modesto. Vejam nosso post sobre NNT.

Puxa, algo muito duvidoso e de benefício potencial modesto. Por que tanta valorização a esse tratamento ao longo das últimas 4 décadas? Precisamos refletir, tem algo de errado em nossas construções de paradigmas. 

A explicação está na mentalidade do médico ativo, aquele fenômeno mental que nos impulsiona a utilizar terapias diversas, mesmo sem evidências, pois essa impressão de que estamos tratando ativamente o paciente nos traz conforto cognitivo. Aliado a isso, nossa heurística de normalização nos induz a pensar que controlando parâmetros (frequência cardíaca), garantimos benefício. Por fim, nossa mente cartesiana nos faz acreditar em demasia na plausibilidade biológica. Quer convencer alguém de que algo funciona? É só descrever o (teórico) mecanismo de funcionamento. Uma boa explicação do mecanismo convence a maioria das pessoas, pois nosso pensamento intuitivo é mecanicista.

Lembro-me da sensação de semi-deus ao administrar beta-bloqueador venoso em pacientes com infarto e ver aquela frequência cardíaca reduzindo. 

Beta-bloqueadores são drogas especialmente atraentes, pois possuem características que se encaixam perfeitamente nestes erros cognitivos. Nós vemos o controle da frequência cardíaca, ativando nossa heurística de normalização. Segundo, tem um racional teórico bastante lógico, a redução do duplo produto. No entanto, não funcionam para reduzir risco de pacientes cirúrgicos, não funcionam para reduzir mortalidade de infartados e são drogas de segunda linha (benefício menor) no tratamento da hipertensão. Sobra seu valor em pacientes com insuficiência cardíaca sistólica, às vezes até supervalorizado quando percebemos introdução precoce da droga em pacientes ainda descompensados, como se fosse uma pílula mágica, de ação imediata. 


E assim, é derrubado mais um mito que nunca deveria ter sido criado, deixando em seu rastro o provável prejuízo clínico que alguns pacientes podem ter experimentado e o prejuízo científico de termos ficado na escuridão da Caverna de Platão por tanto tempo, sem o interesse em procurar saber de onde veio essa ideia: no ISIS-1.