domingo, 18 de fevereiro de 2018

ISCHEMIA Trial: mudança de regra no apagar das luzes


Bom ter amigos bem informados. Hoje recebi de Guilherme Barcellos: “você viu que o ISCHEMIA modificou sua definição do end-point primário para um combinado de 5 desfechos que só faltou redução de espirros?” 

Fui imediatamente do clinicaltrials.gov e percebi que sim, agora o end-point primário estava definido como: “cardiovascular death, nonfatal myocardial infarction, resuscitated cardiac arrest, or hospitalization for unstable angina or heart failure.”

Eu lembrava que o desfecho composto do ISCHEMIA era morte cardiovascular ou infarto. Na página principal do estudo no clinicaltrials.gov não há aviso de que aquilo foi modificado. A primeira vista, tudo normal, se não fosse nosso conhecimento prévio de que o protocolo não era assim. 

O caminho não é simples, mas descobri que podemos encontrar o histórico de mudança: primeiro devemos clicar em “Find Studies” - depois “How to Read a Study Record" - em seguida “Historial Views of Records” - archive site - abre uma aba que você coloca o número do estudo e descobrirá todas as mudanças. Mudaram o desfecho primário do ISCHEMIA em janeiro de 2018. 

Vale salientar que o recrutamento do ISCHEMIA já foi concluído, estando agora em fase de finalização do follow-up. O estudo que se iniciou em 2012 está planejado para ser concluído em dezembro de 2018.

Já discutimos o ISCHEMIA neste Blog, especialmente na postagem do Reflexo óculo-isquêmicoTodo cardiologista sabe do que se trata o ISCHEMIA, um dos estudos mais esperados da presente década. Mas para os não cardiologistas leitores do Blog, lembro que este é um ensaio clínico que randomizou em torno de 5.000 pacientes com doença coronariana estável para revascularização miocárdica ou tratamento clínico. Os estudos prévios (COURAGE é o mais conhecido) foram todos negativos para o desfecho de morte ou infarto. O ISCHEMIA incluiu apenas pacientes com isquemia moderada a severa, sob argumento de que outros estudos poderiam ter sido negativos pois teriam incluído também pacientes com pouca ou nenhuma isquemia miocárdica.

Um dos mais importantes critérios para qualidade de um estudo são as definições a priori. Daí a obrigatoriedade de que ensaios clínico publiquem seus protocolos previamente. Mudanças de protocolo feitas a posteriori reduzem a credibilidade do estudo, é como mudar a regra de um jogo em andamento. A posteriori , mudanças de desfechos do estudo podem decorrer de algum resultado frustrante das análises interinas. E vale lembrar que ISCHEMIA é um estudo adiantado, que já está para terminar.
Análises interinas são muito utilizadas para truncar estudos que dão resultados positivos precocemente, o que temos criticado neste Blog. Mas também podem ser utilizadas para modificar protocolos quando estudos não mostram resultados interessantes. 

Usualmente autores modificam desfechos quando a definição original (morte e infarto) apresenta incidência menor do que a esperada no grupo controle. Quando esta modificação é a de aumentar o tempo de seguimento ou aumentar o número de pacientes, isso incrementa a precisão do estudo, sem tendenciosidade. Porém quando a mudança está no tipo de desfecho, isso reduz o valor preditivo positivo do trabalho (confiabilidade). No tipo de mudança do desfecho primário pode estar a escolha de eventos com maior probabilidade de mostrar um resultado positivo. Uma escolha que pode ser baseada na percepção de que o estudo como desenhado inicialmente viria a ser negativo.

Embora seja uma emenda pior do que o soneto, esta provavelmente será a justificativa que os autores apresentarão para a mudança do protocolo. Implicações interessantes surgem disso.
Primeiro, considerando que essas mudanças de protocolo são feitas quando há uma baixa incidência do desfecho, "morte e infarto" devem ter sido menos frequentes do que o esperado no grupo de tratamento clínico. Portanto, o estudo reforçará o bom prognóstico de pacientes com doença coronária estável, mesmo que estes tenham isquemia significativa (critério de inclusão do estudo). Deverá mostrar um prognóstico melhor do que o ocorrido em estudos prévios que foram utilizados para estimar a incidência destes eventos do ISCHEMIA. Reforçará portanto o tratamento clínico como uma alternativa a ser considerada dentro de um pensamento clínico econômico (não monetário).

Segundo, após esta mudança de protocolo, o ISCHEMIA será certamente positivo. Um dos novos componentes do desfecho primário (e provavelmente o mais frequente) passa a ser “internamento por angina instável”. Angina é sintoma e já está bem demonstrado que angioplastia reduz sintomas. Além disso, internamento é um desfecho “mediado pelo médico”. O médico bem sabe (estudo aberto) se seu paciente foi revascularizado. Cria-se então uma situação com alto risco de viés: a combinação de um estudo aberto e um desfecho “mediado pelo médico”. Esse médico, na melhor das intenções, tem muito mais predisposição a internar seu paciente não revascularizado do que seu paciente revascularizado, quando este se queixar de dor precordial.

Interessante notar que desde o início o desfecho morte do ISCHEMIA era específico (morte cardiovascular). Um detalhe que não só traz subjetividade em um estudo aberto, como não inclui necessariamente mortes decorrentes de complicação dos procedimentos invasivos. Diferentemente, o COURAGE utilizou morte por qualquer causa ou infarto como desfecho primário.

O grande diferencial do ISCHEMIA seria a inclusão apenas de pacientes com isquemia moderada ou severa. Essa foi a justificativa dos autores para a hipótese de que seus resultados poderiam ser positivos, diferentemente de estudos prévios, como o COURAGE. Mas esta não poderá mais ser a justificativa da positividade do ISCHEMIA, pois agora os desfecho primário do ISCHEMIA será diferente do COURAGE. 

Com esta mudança, o resultado do ISCHEMIA passa a ser previsível, não mais uma evidência incremental ao conhecimento atual. No entanto, a depender de quem interprete, essa obscura mudança de protocolo no apagar das luzes certamente “corrigirá” o frustrante resultado do COURAGE. 

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Comentário do PI do Estudo para Guilherme:

"Dear Guilherme

The trial has adhered to the most rigorous clinical trial standards. Knowing that many trials are underpowered due to lower than projected event rates, the original protocol, approved by an Independent NIH/NHLBI-appointed protocol review committee, pre-specified that if the aggregate event rate was lower than projected that we could convene an independent panel, at a pre-specified time, to advise the trial leadership and NHLBI regarding switching to the pre-specified 5-component endpoint and/or extending recruitment and/or follow-up. This panel was separate from the DSMB so that the recommendation would be made by experts blinded to outcomes by treatment group. For the entire trial duration, each of the 5 components of the endpoint were adjudicated centrally by independent reviewers blinded to treatment group. The aggregate event rate was lower than projected and trial leadership and NHLBI accepted the independent panel recommendation to change the primary endpoint, and extend recruitment and follow-up. This process was a deliberate, considered one, involving the trial Leadership Committee, Steering Committee, NLHBI program staff, statisticians, and independent experts and took nearly a year of planning. It was certainly not done “in the middle of the night.” The original CV death and MI endpoint remains a major secondary endpoint.
We will be publishing the design paper soon, and this will be described in that manuscript.

Thanks for the opportunity to respond.

David

David J. Maron, MD, FACC, FAHA
ISCHEMIA Trial Co-Chair/PI
Stanford University School of Medicine"


Minha resposta a Guilherme:

Guilherme, uma colocação relevante do Maron é que esta mudança havia sido definida a priori (se a incidência do desfecho fosse pequena) e que a decisão foi cega em relação aos grupos de tratamento. De fato, isto acontece com grandes ensaios clínicos, truncamentos, mudanças de desfechos podem ser baseadas em regras pre-definidas. Isto ameniza, mas não resolve a questão. 

Planejar previamente algo que traz mais probabilidade de um resultado positivo, à custa da qualidade do desfecho, mantém constante a credibilidade do estudo? A baixa incidência do desfecho pode decorrer do sucesso do tratamento não intervencionista. Ou seja, a priori se planeja que se os pacientes do estudo evoluirem bem, mudaremos o desfecho. 

Não há nada de ilegal nisso, tudo de acordo com regras. No entanto, cabe à comunidade interpretar esta mudança com base em risco de acaso e viés, e avaliar o significado de um novo desfecho composto de 5 eventos.

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quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Quando nos confundimos com 'Gurus da Saúde"


O termo "guru" é originado do gu que significa sombra e ru que significa dissipar. Portanto, guru é aquele que traz luz para dissipar a escuridão.

Nestas férias, li um artigo publicado no New York Times e reproduzido pela Folha de São Paulo, bastante compartilhado nas mídias virtuais. O artigo da médica Lisa Pryor aborda os “gurus da saúde”. O termo "guru" foi usado de forma pejorativa, não como um mestre que dissipa a escuridão, mas como profissionais que aumentam a escuridão. 

Lisa denomina de “gurus” aqueles profissionais eloquentes e influentes, cujas ideias carecem de real embasamento científico. Estes profissionais promovem uma confusão entre verdade e fantasia. Ao final, a autora apresenta a solução para os gurus da saúde: a medicina baseada em evidência

Penso que precisamos aprofundar a reflexão. Gurus não são seres tão distintos de nós, o que implica em evitarmos uma visão maniqueísta do bem contra o mal. Da mesma forma, seria simplista colocar medicina baseada em evidências como solução para gurus.

Na verdade, não me preocupo muito com esses gurus caricatos. Embora os caricatos possam ser um tanto irritantes, são mais inofensivos do que parecem. Suas propostas não prevalecem como modificadoras de condutas. Em sua maioria, atuam em "guetos" sofisticados, vendendo seus tratamentos fantasiosos para uma elite que procura fórmulas platônicas da felicidade. 

Preocupo-me mais com gurus menos caricatos, que se confundem com profissionais científicos. 

Preocupo-me mais quando nós mesmos nos tornamos, sem sentir, gurus da saúde. 


A difícil distinção entre "gurus da saúde" e profissionais científicos.


O artigo de Lisa Pryor foi claro da descrição de características dos gurus, criando um estereótipo. Porém este estereótipo não deve nos fazer pensar que é fácil discriminar gurus de profissionais embasados em ciência. 

De um lado, temos profissionais que argumentam contra vacinação de crianças, citando evidências científicas de que vacina causa autismo. Do outro lado, profissionais argumentam contra rastreamento de câncer de próstata. Quais são gurus e quais são profissionais científicos? 

Ambos os grupos propõem o abandono de condutas médicas tradicionais, nos causando desconforto cognitivo. Ambas as ideias parecem absurdas ou progressistas, a depender da interpretação.

Gurus podem ser confundidos com profissionais científicos, enquanto profissionais científicos podem ser rotulados injustamente de gurus. Precisamos reconhecer essa dificuldade de diferenciação como um problema social.

Embora o artigo de Lisa Pryor reforce a medicina baseada em evidências como o antídoto para o problema dos gurus, este conceito per si não é suficiente como solução. Gurus costumam sequestrar o conceito de medicina baseada em evidências, deturpando-o em prol de seus objetivos. Gurus são ótimos em simular uma postura científica. 

Portanto, a utilização de estereótipos não garante acurácia na discriminação de "gurus da saúde". O padrão-ouro deste diagnóstico estaria na análise criteriosa do nível de evidências que embasa as ideias dos gurus. O problema é que este método é tecnicamente difícil, trabalhoso, leva tempo. Até chegarmos a uma conclusão por esse método, corremos o risco de sermos pegos em armadilhas. O risco de sermos seduzidos e convencidos.

Portanto, precisamos de um método intermediário, que faça uma triagem rápida, porém mais acurada do que o uso de estereótipos que só identificaria os mais caricatos. Este método seria usado para gerar um certo ceticismo em relação a alguns profissionais pseudo-científicos, que ficariam no limbo até serem melhor escrutinados por uma análise crítica baseada em evidências. 

Qual seria esse método? Sara Gorman e Jack Gorman, pesquisadora em saúde pública e psiquiatra, respectivamente, descrevem no livro "Denying to the Grave" o que chamam de "líderes carismáticos". Estas são características que podem ser identificadas como um diagnóstico inicial de gurus que não se parecem gurus. 


Indícios de Líderes Carismáticos


Gurus da saúde são inteligentes, eloquentes, soam revolucionários. Porém cientistas também podem ter essas qualidades. Cientistas se baseiam em evidências, porém gurus são ótimos em citar evidências e parecer científicos. Não é óbvia a diferenciação dos dois. Precisamos avançar para características subliminares. 

Primeiro, líderes carismáticos costumam acionar nosso sistema límbico pelo medo. Observem que o medo sempre está na base do discurso: “medo do filho ficar autista por ter sido vacinado”. Usualmente é um discurso catastrófico, que traz uma solução a seguir. 

Um estímulo de perigo ativa o sistema límbico, que promove uma série de reações sentidas como medo. Por outro lado, o pensamento racional é mediado pelo córtex pré-frontal. A questão é que ativação do sistema límbico inibe o córtex pré-frontal. Assim, quando líderes carismático nos provocam medo, inibem nossa capacidade de julgar corretamente as evidências. 

Segundo, líderes carismáticos criam um mundo maniqueísta, do "nós contra eles". Demonizam pessoas de opinião diferentes como inimigos. Criam teorias da conspiração.

Um cientista pode ser contra o rastreamento de certos cânceres com base em evidências, entendendo a prática usual do overdiagnosis como um viés cognitivo do pensamento médico. Já um líder carismático criaria a teoria da conspiração de que médicos e indústria se uniram com intuito capitalista em detrimento da saúde pública. Claro, de tudo um pouco, mas não precisamos exagerar. Somos humanos e conflito de interesses não é o único, nem o principal viés cognitivo.

Terceiro, líderes carismáticos são categóricos, fazem um discurso de certeza. Dissonância cognitiva se dá quando estamos divididos entre duas opiniões contraditórias. Isso causa desconto cognitivo. Uma forma de agradar as pessoas é curar seus desconfortos, suas dissonâncias. Líderes carismáticos portanto garantem a certeza de suas ideias, não deixam dúvida de que aquele é o caminho certo. 

Portanto, o culto ao medo, a guerra do bem contra o mal, a solução baseada em certeza caracterizam líderes carismáticos que podem estar atuando como gurus da saúde.

Ao detectar este perfil, fiquemos atentos e mais céticos à uma primeira impressão a respeito da ideia proposta. 


Por que precisamos distinguir os gurus?


Antes de falar na valorização de evidências, precisamos discutir como se passa o mecanismo mental da persuasão de uma ideia. 

Psicólogos apontam que há duas vias de persuasão: uma central e outra periférica. Na via central, a mensagem é escrutinada com base em uma análise criteriosa da qualidade das evidências. Assim fazem os bons juízes ou profissionais baseados em evidências. 

A via periférica utiliza “pistas” para decidir a veracidade da ideia. Este é um processo heurístico, baseado em atalhos de pensamento, facilitando o processo, sendo portanto o mais utilizado. No entanto, este é um método menos acurado, pois abre espaço para vieses cognitivos. 

Por exemplo, uma heurística sugestiva de veracidade é a quantidade de argumentos. Normalmente, quando vemos um indivíduo articular uma grande lista de argumentos em prol de uma ideia, tendemos a interpretá-lo como verdadeiro. Mas este é um método falho de julgamento, visto que a ausência de uma validação real tende a ser preenchida por vários argumentos inválidos. Gurus usam muitos argumentos.

Paradoxalmente, a via de persuasão que mais utilizamos ao julgar uma ideia é a periférica, pela sua facilidade e rapidez. E como seria de se esperar, é por meio desta via que líderes carismáticos melhor convencem seus seguidores.

Evidências científicas demonstram que “a primeira impressão é a que fica”. Ou seja, após um primeiro julgamento rápido e periférico, já estamos enviesados pela impressão inicial, mesmo que depois façamos nossa análise central. Portanto, não basta treinarmos a via central no escrutínio das evidências. 

Um estudo de ressonância magnética funcional foi publicado no Journal of Neuroscience em 2014. Neste, indivíduos receberam uma informação falsa, que depois foi corrigida por uma verdadeira informação. A informação falsa ativou regiões límbicas, porém estas permaneceram "quentes" mesmo depois da informação verdadeira ter sido apresentada. Isso inibe o córtex pré-frontal no processamento da nova informação. Portanto, uma vez acreditando em uma fantasia, temos dificuldade de corrigir o erro pela razão. 

Desta forma, precisamos criar mecanismos para nos proteger desta primeira impressão da via periférica. Estes mecanismos consistem na identificações de sinais que apontem um líder carismático tentando acionar sua via periférica de persuasão.


Quando nos tornamos Gurus


Mas o problema ganha uma grandeza ainda maior quando profissionais de verdadeiro intuito científico, sem perceber, se transformam em "gurus da saúde".

Vejam medicina baseada em evidências, a proposta de uma prática clínica norteada por paradigmas científicos. Nesta prática, precisamos exercitar a base da ciência contemporânea: a incerteza. 

Quando profissionais embasados em evidências utilizam trabalhos científicos para construir sua certeza de decisão, estes se tornam "gurus da saúde". 

Quando profissionais embasados em evidências usam resultados de bons trabalhos como receitas de bolo (ao invés de bússola norteadora) para suas condutas, estes se tornam gurus da saúde. 

Quando profissionais se guiam apenas por conhecimento de eficácia, esquecendo que entre o conceito e a prática existe efetividade, estes se tornam gurus da saúde.

Quando profissionais se guiam pelo resultado do ensaio clínico, desconsiderando a influência da preferência do paciente no desfecho final, estes se tornam gurus da saúde. 

Quando confundimos decisão consentida com decisão compartilhada, nos tornamos gurus da saúde. 

Quando pensamos apenas no benefício comprovado, subestimando o custo pessoal do paciente, nos tornamos gurus da saúde. 

Quando fazemos análise crítica das evidências externas, mas esquecemos a análise crítica de nossas evidências internas, nos tornamos gurus da saúde. 

Precisamos nos preocupar menos com personagens folclóricos que são inerentes à humanidade e olhar para nós mesmos para perceber quando nos tornamos gurus da saúde? Pois todos nós, em algum momento, mesmo que sem querer, fazemos esse papel. 

Humildade está no cerne do pensamento científico.


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