Na noite passada, Papai Noel trabalhou 39
horas contínuas, entregando presentes a 700.000.000 de crianças, percorrendo
uma distância de 342.510.000 Km ao redor do mundo, carregando um saco de
416.000 toneladas (assumindo que um presente médio pesa 660g) - segundo fonte recente.
Embora este velhinho tenha passado por todo este esforço,
até então não ouvimos notícia de que Papai Noel infartou e está internado na
UTI “de um hospital privado na cidade”. Talvez tudo tenha dado certo, pois
Papai Noel seja precavido e tenha feito seu check-up cardiológico no início de
dezembro, como muitos costumam fazer. Isso é o que pensaria o senso comum.
Entendam por check-up a série de exames
realizados no intuito de detectar perigosas doenças ocultas. Daquele tipo que
costumamos ver propagandas em revistas alocadas nas poltronas das principais
linhas aéras brasileiras, usualmente encartes relacionados a hospitais
paulistas.
Contrariando as expectativas, Papai Noel
afirmou em entrevista recente de que não costuma fazer este check-up antes do
Natal, o que soou como uma certa irresponsabilidade do bom velhinho.
Sendo assim,
fica a questão: Papai Noel deveria ou não deveria ter feito um check-up
cardiovascular em dezembro?
Considerando sua idade, 550 anos, é
grande a probabilidade de doença coronária oculta. Desta forma, se Papai
Noel resolvesse fazer uma pesquisa de doença coronária com testes não invasivos
(teste ergométrico, cintilografia miocárdica, ressonância de perfusão ou
tomografia de coronária) seria bem possível a detecção de aterosclerose obstrutiva. Qual seria o resultado disso?
Provavelmente o
Natal das crianças seria adiado.
Sim, porque o screening seria positivo; normalmente este resultado positivo desemboca na realização de cateterismo
cardíaco (principalmente em pacientes VIPS como Noel), cujo resultado
automaticamente leva à indicação de um procedimento, seja angioplastia coronária ou cirurgia de revascularização.
Não daria tempo, não haveria condição de
Papai Noel se recuperar para distribuir os presentes na madrugada de hoje.
Mas poderia ser
que valesse a pena adiar este Natal, para garantir o Natal dos próximos anos. Não
sejamos imediatistas, há males que bem para o bem.
Porém
este não é o caso, este mal acontece de
graça, pois não traz consigo um bem maior. Isso mesmo, o check-up
cardiovascular em um indivíduo assintomático não traz benefício, mesmo que isto
vá de encontro ao senso comum.
Sabemos que o screening da doença coronária não previne desfechos
cardiovasculares maiores. Isso está demonstrado em trabalho que
randomizou pacientes de risco cardiovascular elevado para realizar ou não
realizar screening, mostrando semelhança na incidência destes desfechos. Além disso, estamos cansados de saber (ensaios clínicos)
que angioplastia coronária não reduz infarto e não prolonga sobrevida, quando
comparada ao tratamento clínico. Portanto, Papai Noel não teria seu infarto
prevenido por um procedimento deste tipo que seria induzido por um diagnóstico de doença oculta.
Em casos de doença
coronária severa (triarterial ou tronco), evidência recente do estudo FREEDOM
nos sugere benefício da cirurgia de revascularização na redução de morte ou
infarto. Porém em pacientes com a excelente classe funcional de Papai Noel é pouco
provável uma doença coronária severa.
Neste tipo de discussão, entusiastas do excesso
de exames normalmente usam algum exemplo de certo paciente assintomático, cujo
teste não invasivo foi positivo, levando a um cateterismo que mostrou doença
triarterial grave, se beneficiando de cirurgia de revascularização. Estou
cansado de ouvir isso.
Este raciocínio mediano e equivocado desconsidera o
pensamento epidemiológico, que deve ser probabilístico, baseado em dados
coletivos. Ao pensarmos probabilisticamente, percebemos a outra face da moeda. Enquanto um paciente é beneficiado pela
solicitação de exames, outro (ou outros) sofre do overdiagnosis.
No overdiagnosis, os casos anedóticos de
benefício trazido pelo diagnóstico são anulados ou até mesmo superados pelo número
de pacientes que se prejudicam pelo diagnóstico.
Seria o caso de Papai Noel fazer algum
exame não invasivo, mostrando doença fora do alto espectro de gravidade do
estudo FREEDOM (o mais comum), levando a uma angioplastia coronária que não
prolongou sua vida, não reduziu probabilidade de infarto. Tudo isso na ausência
de sintomas, que poderiam se melhorados se estivessem presentes, mas não estão
presentes. Sem falar em complicações mais graves de procedimentos desnecessários.
Desde óbito até sequelas importantes.
Perderíamos o Natal das crianças, em
troca de nenhum benefício clínico para Papai Noel.
Esse é um equívoco comum no pensamento
médico: justificar procedimentos com base na possibilidade de benefício em
alguns pacientes, desconsiderando a possibilidade de malefício em outros. Como mencionamos
previamente, somos mais movidos por resultados positivos e nossa mente tende a
desconsiderar a possibilidade de desfechos negativos. Indicamos procedimentos
porque alguns podem se beneficiar, mesmo que um número maior possa de
prejudicar. Acontece porque fixamos em nossa memória desfechos favoráveis, nos
esquecendo de desfechos desfavoráveis.
Em 2012, percebi uma crescente preocupação
com esta questão, tendo surgido recomendações médicas voltadas para evitar o overdiagnosis. Neste ano, o US Prevention Task Force classificou como inadequada a
realização de eletrocardiograma de esforço em pacientes assintomáticos.
Seguindo essa conduta, como parte do programa Choosing Wisely, o American
College of Cardiology aponta a realização de pesquisa de isquemia em
assintomáticos como uma das cinco condutas a serem evitadas na prática
cardiológica.
Claro que este raciocínio não se aplica
apenas a cardiologia. Universalmente se faz screening
para câncer de próstata com PSA, porém neste ano esta conduta passou a ser
contra-indicada pelo US Prevention TaskForce. Não tem utilidade. Deve-se também evitar mamografia de rotina em
mulheres com menos de 50 anos, ressonância de coluna se a dor lombar tiver
menos de 6 semanas, exames de imagem (tomografia ou ressonância de crânio) em
pacientes com sincope sem sinais neurológicos. Enfim, são inúmeras as condutas médicas que caracterizam o overdiagnosis.
No filme de Tim Burton, Nightmare Before Christmas (O Estranho Mundo de Jack), Papai Noel é raptado
por Jack, um monstro do mundo do Halloween. Sem maldade e por inocência, Jack deseja substituir Papai
Noel em sua função de alegrar as crianças. No entanto, Jack é um monstro e
quando entra nas casas, não traz felicidade, mas sim horror às crianças. Isso é
o que acontece com a postura médica do excesso de diagnóstico. Há intenção de
fazer o bem, porém a visão equivocada provoca o fenômeno do overdiagnosis: diagnóstico correto, porém dispensável, com
potencial de ser deletério ao paciente.
Vivemos hoje no estranho mundo do overdiagnosis, levando os nossos pacientes ao
pesadelo de serem raptados da sua condição estável, para a criação de um
problema (falso em sua magnitude) que será resolvido por uma solução (falsa em
seu benefício).
Meus votos natalinos neste ano são de que
Papai Noel nos traga a consciência de que vivemos neste estranho mundo.
Com certeza esse foi o
ResponderExcluirMelhor post de 2012!!!
Parabéns
Que post fantástico, Luis. Extasiado com tanta lucidez. Às vezes pacientes novos nos olham como quem vê um E.T., quando explicamos porque não estamos pedindo aquele catatau de exames desnecessários, mas seu texto nos encoraja a continuar remando contra a maré!
ResponderExcluirExcelente!
ResponderExcluirGrande abraço, Luis e que 2013 seja pleno de Paz e Saúde!
R.Dultra
Excelente tópico! Este tema deveria ser cada vez mais debatido. Entretanto vejo que esta mentalidade já ultrapassou a fronteira médica e hoje é o pensamento dominante também no meio leigo, tornando o problema ainda mais grave e difícil de combater.
ResponderExcluirHaja educação baseada em evidência para TODOS...
Poxa q legal, "Vivemos hoje no estranho mundo do overdiagnosis, levando os nossos pacientes ao pesadelo de serem raptados da sua condição estável, para a criação de um problema (falso em sua magnitude) que será resolvido por uma solução (falsa em seu benefício)" muito bom, parabens.
ResponderExcluirComo sempre brilhante
ResponderExcluirMuito bom, Luis Cláudio.
ResponderExcluirÉ isso mesmo!
ResponderExcluirNo dia 17 de outubro de 2012 uma revisão sistemática Cochrane 16 estudos (182,880 participantes) foi publicada [1] e republicada [2] devido a importância do tema. Este estudo demonstrou que check-up não reduzem a morbidade ou mortalidade, nem geral, nem por causas cardiovasculares ou câncer, embora o número de novos diagnósticos aumentou.
Apesar da tomada de decisão ser baseada em evidências (no melhor cenário), em geral em geral tem base no pensamento probabilístico para o "desencargo de consciência". Ao invés disso, a evidência deveria ser filtrada por uma avaliação crítica do especialista. Para isso, algumas questões deveriam ser feitas:
a) Qual é o nível de evidência?
b) Como o prognóstico da doenças se dará após o diagnóstico?
c) Como o diagnóstico muda a tomada de decisão?
d) Como isso melhora a minha prática?
e) O que muda para o paciente?
Um exemplo que passei a usar com frequência (mudou e melhorou a minha prática) sobre o overdiagnosis foi dado neste blog [3]: um caso anedótico de baixa probabilidade para doença coronariana obstrutiva que terminou em transplante cardíaco desnecessário devido ao desencargo de consciência. Outro artigo que vale a pena foi publicado na BMJ [4].
Referências
1. Krogsbøll LT, Jørgensen KJ, Grønhøj Larsen C, Gøtzsche PC. General health checks in adults for reducing morbidity and mortality from disease. Cochrane Database Syst Rev. 2012;10:CD009009.
2. Krogsbøll LT, Jørgensen KJ, Grønhøj Larsen C, Gøtzsche PC. General health checks in adults for reducing morbidity and mortality from disease: Cochrane systematic review and meta-analysis. BMJ. 2012;345:e7191.
3. Correia LC. "O Paradigma do Benefício de Métodos Diagnósticos". Medicina Baseada em Evidências, 3 de agosto de 2011. Disponível em: http://medicinabaseadaemevidencias.blogspot.com.br/2011/08/o-paradigma-do-beneficio-de-metodos.html#comment-form
4. Moynihan R, Doust J, Henry D. Preventing overdiagnosis: how to stop harming the healthy. BMJ. 2012;344:e3502.
Parabéns pelo post, muito interessante.
ResponderExcluirExcelente post! Fã desde já!
ResponderExcluirMais um excelente post. Muito bom tanto no ponto de vista científico quanto na redação.
ResponderExcluirUm ótimo 2013, com mais posts tão bons!
Para Rir: http://bit.ly/UwGuZr A indústria do check-up não se importa em parecer ridícula.
ResponderExcluirÓtimo post, parabéns !
ResponderExcluirO céu e o limite chefe! Fantástico!
ResponderExcluirmuito bom!!!!!que legal!bacana...
ResponderExcluirParabéns,forte abaraço... de camiseta
Assisti a palestra do Dr Luis no SAFE 2013, onde ele apresentou este texto, com o a sagacidade e humor característico das mentes brilhantes (não fosse baiano!)... Não é preciso dizer foi a mais aplaudida...
ResponderExcluirAlguns pontos são interessantes... Com certeza para a média da população as evidências não demonstram melhor prognóstico. Porém se o papai noel tivesse doença coronariana e fizermos o manejo clínico isso provavelmente lhe traria algum benefício, não? Deixar um coronariopata sem nenhuma medicação e pior do que medica-lo mesmo que assintomático, não? Como descobrir a aterosclerose incipiente? Escore de Cálcio, Carótidas, Isquemia silenciosa... Como diagnosticar?
ResponderExcluirEntão o problema não esta nos exames e sim no que os médicos fazem com esses resultados...
Caro Dr. Luis. Excelente texto, como os demais que li em seu blog. Posso postar um link para meus alunos, via facebook?
ResponderExcluirProf. Dr. Luiz Amarante
UFF
Exclente a metáfora , Luis Cláudio. E continua absolutamente atual.
ResponderExcluirParabéns, Luís Cláudio!
ResponderExcluirConcordo plenamente.
Difícil é ser você o infeliz do médico, que por azar, vai pegar o infeliz do paciente, que teria benefícios com as condutas preventivas, que poderião ter sido tomadas e não foram devido às estatísticas, e daí o infeliz morre!
Que sinuca de bico, hein?
Obrigado, Romes Alves, Goiânia-Go
Em 03 de dezembro de 2.017
Apesar de eu só ter visto este texto 5 anos depois da sua publicação, continua atual e relevante como nunca. Parabéns pelo belíssimo trabalho!
ResponderExcluir