Canais de Luis Correia

quinta-feira, 21 de abril de 2011

STICH Trial: uma Mudança de Paradigma



Desde que me formei cardiologista, aprendi que o paciente coronariano que mais se beneficia da revascularização miocárdica é aquele com disfunção ventricular esquerda. Mas nunca busquei o nível de evidência que suportava esse conhecimento, considerava isso uma verdade absoluta e guiei minhas condutas a partir deste paradigma. Eu achava que essa verdade vinha do estudo CASS, que mostrou ser o subgrupo de pacientes com disfunção ventricular esquerda o único com tendência a benefício da cirurgia. Mas nunca parei para perceber que o estudo CASS excluía pacientes com fração de ejeção menor que 35% (severe dysfunction, como se fala em inglês). Ou seja, a idéia de que pacientes com disfunção severa se beneficiavam da cirurgia era uma extrapolação.

Já comentei nesse Blog que às vezes ampliamos a validade externa de alguns estudos para além da amostra estudada. Isso pode ser aceitável se for uma decisão cuidadosa e pautada em plausibilidade clínica. No entanto, neste caso também há plausibilidade clínica para que a cirurgia em pacientes com disfunção não seja benéfica: o elevado risco cirúrgico.

Foi então que em 2002 se iniciou o STICH Trial, um ensaio clínico randomizado para testar a hipótese de que cirurgia traz benefício adicional ao tratamento clínico em pacientes com disfunção sistólica do ventrículo esquerdo de grau severo. Este estudo, financiado pelo National Institute of Health (NIH), randomizou 1200 pacientes para cirurgia de revascularização + tratamento clínico versus tratamento clínico. Nove anos depois de seu início, o resultado desse estudo foi apresentado no congresso do American Heart Association e publicado simultaneamente no New England Journal of Medicine. Ficou demonstrado que a mortalidade geral, objetivo primário do estudo, foi semelhante entre os dois grupos. Ou seja, a cirurgia não oferece benefício adicional.

Mas antes de aceitar a veracidade dessa informação, temos que fazer nossa análise metodológica. Vamos lá.

Quando um estudo mostra diferença entre grupos, nos preocupamos com a probabilidade da diferença ser por acaso (erro tipo I). Aí verificamos o valor de P, que representa exatamente essa probabilidade.

Mas neste caso é diferente. Quando nos deparamos com um estudo “negativo” (ausência de diferença entre grupos), devemos nos questionar se aquele achado representa um erro tipo II. Erro tipo II significa não encontrar uma diferença que na realidade existe; ou como dizem os estatísticos, aceitar uma falsa hipótese nula. Esse erro decorre de baixo poder estatístico. Portanto, sempre que temos um estudo negativo, devemos ler na metodologia do trabalho se há poder estatístico adequado. Para se considerar adequado, o poder estatístico deve ser de pelo menos 80%, resultando em probabilidade do erro tipo II (100% – poder) menor que 20%. Em ciência, 20% é a máxima probabilidade aceitável do erro tipo II.

Os autores calcularam que precisariam de 400 mortes para ter um poder estatístico de 90% na detecção de uma diferença relativa de 25% na mortalidade entre os grupos. Olhando os resultados do estudo, percebemos que houve 462 mortes no seguimento de cinco anos, portanto o poder estatístico foi maior que 90%. Se o poder é maior que 90%, consideramos que a probabilidade do erro tipo II é menor que 10% - excelente, podemos aceitar o resultado, pois há baixa probabilidade desse tipo de erro.

Outros critérios reafirmam a veracidade da informação: mortalidade foi o desfecho pré-estabelecido como primário, a randomização resultou em dois grupos homogêneos (ausência de variáveis de confusão), a análise foi por intenção de tratar (ausência de viés na análise de dados), não houve cross-over excessivo que invalidasse a análise dos resultados, os cirurgiões foram de boa qualidade (ausência de viés de aplicação da técnica de tratamento), o estudo não foi truncado. Enfim, a essa pode ser considerada uma evidência de boa qualidade.

Mas podem esperar. Logo surgirão as viúvas do estudo STICH (todo estudo tem viúvas, aquelas que se sentem desamparados pelo resultado do estudo), que vão arranjar críticas para invalidar o trabalho. Algumas dessas críticas serão esdrúxulas, outras um pouco mais sérias, porém insuficientes para invalidar a informação científica.

Grande esforço foi aplicado para nos oferecer a informação científica que precisávamos, 1200 pacientes foram voluntários, nove anos de estudo, milhões de dólares, várias cabeças pensantes. Tudo isso para a evidência ser rejeitada? Não, temos que valorizar o que há de bom, mesmo que a informação vá de encontro com nossas crenças iniciais.

Mas porque a cirurgia não reduziu mortalidade? A análise de curvas de sobrevida nos fornece vários insights sobre como as coisas acontecem. Estes tipos de gráficos parecem mágicos em retratarem fenômenos ao longo do tempo, temos que prestar muita atenção neles. Percebam na curva de sobrevida que no primeiro ano o grupo cirúrgico tem maior tendência a morte e só a partir do terceiro ano que a cirurgia começa a proteger os pacientes. De uma forma prática: no início a cirurgia mata mais, porém quem não morre vai desfrutar de benefício no futuro, após vários anos. Dentre os que morrem, os pacientes do grupo cirúrgico morrem antes, pois o mecanismo de sua morte é a cirurgia propriamente dita. Se o poder estatístico fosse ainda maior ou o seguimento fosse de 10 anos, poderia se encontrar uma pequena redução na freqüência de morte no grupo cirúrgico, mas esse raciocínio de temporalidade faz com que esse benefício modesto não compense (se existir). Tempo de vida é uma coisa importante.

Claro, isso não quer dizer que um paciente com disfunção severa nunca será operado. Paciente com angina de difícil controle (classe canadense III ou IV), lesão de tronco de coronária esquerda ou até mesmo com insuficiência cardíaca refratária devem ser operados. Aí entra o paradigma do paraqueda, da plausibilidade extrema. Por isso que estes pacientes foram excluídos do estudo.

O estudo foi apresentado no congresso do AHA com um viés de positividade, focado em desfechos secundários. Mas nunca devemos colocar desfechos secundários como hierarquicamente mais importantes do que o desfecho primário, pois os primeiros têm maior probabilidade do erro tipo II. Além disso, não importa ter redução de mortalidade cardiovascular (desfecho secundário – P = 0.05) sem redução de mortalidade geral. O que imposta é não morrer. Morrer é morrer, independente do mecanismo. Pior ainda quando esse morrer acontece mais precocemente no grupo cirúrgico. Por isso que o Gregg Stone, coordenador da sessão, precisou intervir e lembrar do básico: este foi um estudo negativo.

Fica aqui a pergunta. Quantos pacientes de alto risco cirúrgico, com disfunção sistólica severa tiveram suas cirurgias indicadas com base em um falso paradigma e se prejudicaram com essa conduta? Devemos sempre lembrar que condutas não embasadas podem ser prejudiciais. Essa evidência não necessariamente proibe a cirurgia, mas nos dá a possibilidade de decidir com base em indicações mais concretas do que simplesmente na presença de doença coronária com disfunção ventricular severa.

E assim mais um paradigma é derrubado. Costumo dizer que muitos paradigmas são derrubados pois nunca deveriam ter sido criados. Não adianta um porquinho construir uma casa de palha, pois o lobo sopra e derruba com facilidade. Aqui o sopro do lobo é a evidência científica. Na verdade, nunca houve esse paradigma.

8 comentários:

  1. Pois é Luis... Interessante que, nas "sessões científicas" sempre há referência ao CASS como o definidor de condutas para pctes com FE reduzida e comprometimento triarterial e/ou TCE. Mas o própio estudo não mostrou diferença estatisticamente significante entre tratamento clínico otimizado (à época!!!) e o cirúrgico...

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  2. Excelente texto Luis!!!! Vamos ver o que os cirurgioes alegarao ?Eu particularmente ja partilhava dessa opiniao de Nao operar!Quanto mais aprendo cada dia to ficando mais clinica mesmo!!! BjAO E PARABENS
    cHRIS

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  3. O grande problema é que está correndo o mundo sumários e resenhas deste mesmo estudo criando uma outra ideia de resuldado: In this trial of patients with reduced ejection fraction (EF <35%) and anatomy amenable to CABG, they were randomized to CABG or medical therapy. Those in medical therapy had significantly higher rates of cardiovascular death. CABG appears to be superior to medical therapy for reducing cardiovascular death... Os médicos não têm tempo para detalhar todo estudo que sai da maneira feita por ti. A solução para isto na tua opinião? Um abraço, Guilherme Barcellos, Porto Alegre

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  4. Excelente análise Luis ;com uma didática que lhe é peculiar ,entendemos pq o estudo tem validade interna ,externa e confibialidade ; além de esclarescer seu poder estatístico ou seja se estudo sendo negativo descartou ou não erro tipo II e melhor como podemos perceber isto de maneira fácil.

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  5. Luis, mais uma vez brilhante. Em uma só postagem você consegue alcançar-nos com vários conceitos: Não só nos fez acreditar no estudo, mas nos ensinou fundamentos importantíssimos para análise crítica de um estudo negativo. Mas você vai ainda mais além... nos faz RE-VER o quão importante é ir buscar a FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA dos PARADIGMAS que são tantos em MEDICINA. Como disse... estamos em um caminho sem volta... Precisamos destas redes de informação para nos mantermos ATUALIZADOS e ATENTOS ao que é VERDADEIRAMENTE EVIDÊNCIA VÁLIDA e ao que NÃO É. Só assim poderemos ao mesmo tempo saber o que e como ler, para termos nosso posicionamento e aplicar a informação em nossa prática, de forma consciente.

    Abaixo um link sobre uma histórinha interessante sobre PARADIGMAS...

    http://nucleodeestudosemcardiologiaonline.blogspot.com/2011/04/sobre-paradigmas.html


    OBG.

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  6. Luis é muito enriquecedor ler o seu blog. Esta histórinha postada no blog da colega Marcia Cristina, eu já conhcecia, sugiro aos colegas que leiam, pois retrata muito como as nossas instituições funcionam. Com tantos guidlines e dieretrizes tendemos a ficar opacos e optamos pelo conforto de seguir a direção apontada pelos consensos ( que nem sempre são consensos ...) sem questiona-los.
    Nila

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  7. Ainda sobre paradigmas, penso que devemos ter muito cuidado com eles. Eles vão determinar a direção do nosso trabalho. Quanto mais construções sob suas bases, maior a dificuldade em abandoná-las.
    Mas é melhor mudar de caminho que se perder nele.
    Daí a necessidade de se estar atento e forte.
    sempre.
    Nila

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  8. Comentário tardio -> Na análise por protocolo o estudo teria um resultado positivo pois RM reduziria morte. Se assim fosse, haveria alguma crítica ao resultado?

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