Canais de Luis Correia

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Ensaio sobre Conflitos de Interesse




De acordo com a enciclopédia Wikipedia, conflito de interesse é um termo que se aplica quando um indivíduo (ou organização) tem envolvimento com múltiplos interesses, de forma que um interesse pode corromper a motivação pelo outro interesse.

Conflito de interesse é um fenômeno intrínseco na natureza, todos nós lidamos com isso, a toda hora. Alguém pode ter interesse em perder peso, porém ao mesmo tempo tem interesse em se divertir tomando um sorvete. Claro que o interesse na diversão vai prejudicar a meta de perda de peso.

O conflito de interesse começa a se tornar algo mais sério quando envolve situações profissionais. Recentemente Palocci perdeu seu cargo de Ministro da Casa Civil, pois seu forte envolvimento prévio (no sentido monetário) com empresas privadas poderia influenciar suas ações públicas em prol destas empresas. Um advogado não pode representar a pessoa A contra a pessoa B, se em outro processo o mesmo advogado representa a pessoa B contra outra pessoa C.  Se o segundo processo for maior que o primeiro, a pessoa A pode ser mal representada para que B seja favorecido.

Em ciência não poderia ser diferente, conflitos de interesse permeiam diversas relações. Aqui o primeiro interessado é a verdade científica. O problema é que diversas vezes a verdade científica é enviesada devido a outros interesses dos cientistas ou dos formadores de opinião. É o conflito da verdade científica versus interesses pessoais.

Há diversos níveis de conflitos de interesse, vamos analisar de um extremo a outro.

No extremo superior, estão aqueles formadores de opinião que recebem verba para dar palestas em eventos organizados pela indústria farmacêutica (ou de equipamentos) ou escrever boletins informativos em nome da indústria. Nesta situação, é grande a probabilidade de viés (consciente ou inconsciente) na forma como as coisas são colocadas. Por outro lado, não vejo grande problema, pois a intenção do evento ou boletim está explícita, é fazer propaganda. E fazer propaganda não é pecado, principalmente no mundo capitalista. Nesta situação, cabe aos ouvintes ou leitores julgar criticamente as informações, separando o que concordamos ou discordamos. Ou simplesmente fazer o mesmo que fazemos com propaganda política: desligamos a televisão ou mudamos para o canal da TV fechada. Na prática, significa não se vender por um jantarzinho da indústria. Ficar em casa estudando pode ser uma idéia bem melhor. Ou, automaticamente jogar fora aqueles encartes que os representantes distribuem. Melhor ainda jogar em lixo reciclável.

Assim, resolvemos esta situação. Inclusive, devo salientar que este tipo de conflito de interesse de formadores de opinião não pode ser considerado um problema ético, pois o conflito é declarado. É algo que faz parte do nosso mundo capitalista. Simplesmente é assim.

O problema é quando vamos nos distanciando deste extremo e as coisas começam a ficar menos claras. Por exemplo, o mesmo palestrante do evento da indústria pode ser convidado por um evento de sociedade médica para falar de um assunto semelhante. Nestas situações, os palestrantes devem declarar conflitos antes da aula. Porém, mesmo que o façam, é difícil definir o grau de influência que o conflito pode estar tendo no palestrante.

Pior é quando se trata de editoriais escritos por indivíduos de referência em revistas científicas de respeito. Há alguns anos, foi publicado o ensaio clínico POISE no Lancet, demonstrando que o uso de beta-bloqueador iniciado em pré-operatório de cirurgia não cardíaca aumenta mortalidade. No entanto, o editorial que acompanhou o artigo, escrito por Poldermans D, defendia a manutenção da prática do beta-bloqueador. Isso mesmo, sem nem mesmo propor um outro estudo que utilizasse uma abordagem diferente de uso de beta-bloqueador, o editorialista sugere que se continue usando, desde que de forma mais cuidadosa. Dias depois fui ao Congresso Mundial de Cardiologia em Buenos Aires. Estava sem alternativa para almoçar e aí resolvi pegar uma daquelas caixinhas de comida de simpósio satélite. Quando entrei na sala para pegar o lanche (reconheço, foi um conflito de interesse, mas eu estava com fome), percebi que ali estava ele, o mesmo Polderman D, falando em um simpósio satélite sobre uso de beta-bloqueador em cirurgia não cardíaca. Não resisti, fiz uma pergunta bastante provocativa, o que o irritou bastante. Percebo que a irritação do speaker é um sinal de que ele não está plenamente confortável naquele papel.

Há alguns anos foi publicado um editorial favorável ao uso de Levosimedan nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, por um autor suíço. Naquela época o ensaio clínico Survive já havia sido publicado, demonstrando ausência de benefício desta droga em pacientes com insuficiência cardíaca descompensada. Como reação a este editorial fora de contexto, Flávio Fuchs enviou carta ao editor, chamando atenção sobre as afirmações não embasadas em evidências e mostrando que o autor do editorial havia omitido seus conflitos de interesse na publicação do estudo.

Sem querer dar uma de puritano, devemos reconhecer que conflitos de interesse fazem parte de todas as facetas da vida. Cabe a nós sabermos nos proteger. Mas como? Desenvolvendo um senso crítico e aprimorando nossa capacidade de julgamento da literatura médica, pelas técnicas da medicina baseada em evidências.

Finalmente, lhes convido a assistir a brilhante conferência (5 minutos) do psicólogo americano Dan Airely sobre conflitos de interesse, apresentada durante o evento anual TED, na Califórnia. 

7 comentários:

  1. Adorei o texto, ainda mais por quê estou estudando esses fármacos usados a cima para prova de terça-feira. Conflitos de interesses estão presentes em qualquer faceta da sociedade. é inevitável.
    bj

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  2. Eu acho que este tema tem que ser difundido amplamente aos colegas médicos, incluindo e principalmente aos estudantes de medicina para tentarmos manter a nossa prática médica e nossa arte mais próxima possível da verdade, moral e da ética.

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  3. Mesmo em paises mais desenvolvidos e com legislação mais rígida o problema ainda é grave. Vejam o artigo Arch Intern Med. 2011;171(1):81-86 : De 41 pessoas (40 médicos)que receberam mais de 1 milhão de dólares em 2007 de indústrias de material ortopédico, aproximadamente 75% publicou algo nos anos seguintes. A metade não declarou conflitos de interesse nas publicações, mesmo tendo recebido >1 milhão de dólares.
    As revistas que publicaram os artigos, todas na verdade, necessitam rever formas de evitar estes "lapsos".

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  4. Ótimo texto sobre este assunto tão delicado e importante. A medicina mudou muito nas últimas décadas e as vezes penso que muitos graduados ainda não estão acostumados a pensar criticamente (como você pensa) sobre medicina baseada em evidências
    Outro passo importante seria inserir mais "ciências" no curso de medicina em todos os anos. No Brasil parece que a decoreba ainda é o método mais usado para passar de ano...

    Continue o bom trabalho

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  5. Parabéns pelo texto e pela excelente escolha da apresentação anexada. Para aumentar ainda mais a discussão, gostaria de colocar que existem ainda muitos conflitos de interesse pouco declarados, como:
    - Conflitos intelectuais (Por exemplo: eu sou católico/ateu/judeu/evangélico/ espírita.... e vou fazer uma apresentação falando de Deus.
    - Conflitos com governo: Professores universitários recebem salário do Estado/União e nunca apresentam isso como conflito, pois trabalhar em instituição pública os isenta aparentemente do conflito.
    Devo declarar a todos que tenho diversos conflitos de interesse com diferentes indústrias e com governo e sociedades médicas, pois faço pesquisa e participo de eventos médicos nacionais e internacionais com apoio deles. Não tenho conflito de interesse com indústria de genéricos pois eles não patrocinam pesquisas.
    Acredito que uma das formar de tentarmos nos manter éticos, assim como apresentado pelo psicólogo Dan Airely, é reconhecê-los e apresentá-los. Acrescentaria algo que tenho feito nos últimos anos, que é solicitar aos colegas que sempre me apontem de forma direta e fria se julgarem que qq opinião por mim emitida esteja pendendo para qq lado.
    Um abraço e parabéns novamente

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  6. Mais ainda, creio que esta revisão de valores passa por uma reconstrução educacional e comportamental em uma sociedade. propina agora tem o nome de incentivo, ou ajuda de custo..
    É possível um professor de ética ser antietico? Sim , aqui ha uma distancia entre o que eu prego e o que vivo. Quando o discursso é diferente do ato , esta cisão se manifesta sob a forma de doença.
    E trazendo o mito de Quíron, precisamos curar o curador.
    Quando há congruencia há integração , e quando há integração , há saúde.
    Legal esta chamada Luis!
    Nila

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