Neste mês, o ex-presidente
americano George W. Bush fez um teste de esforço, recebeu o diagnóstico de doença
coronariana, e foi submetido a implante de stent
em uma das artérias de seu coração. Na alta hospitalar, saiu acreditando que se
beneficiou, porém mal sabe ele que sofreu do que a literatura médica
internacional denomina overdiagnosis.
Overdiagnosis é um diagnóstico verdadeiro,
porém desnecessário, com maior potencial de causar danos do que benefícios.
Este fenômeno decorre da cultura do check-up,
propagada pelo lobby em prol do
excesso de exames em pessoas saudáveis. Em contraposição, o pensamento
médico-científico propõe que a realização de exames se justifique pela
existência de um benefício clínico advindo do diagnóstico. E não pela falsa
perspectiva de proteção gerada pelo exame. Em pessoas saudáveis,
assintomáticas, há exames que devem e outros que não devem ser realizados.
O senso comum sugere que o
“desentupimento” da artéria de Bush foi benéfico. No entanto, isto vai de
encontro à totalidade das evidências científicas de qualidade (COURAGE, BARI 2D, FAME-II): no paciente estável, “desentupimentos” não
previnem morte cardiovascular, nem infarto. Isto ocorre porque a intervenção é
feita na placa de gordura que mais impressiona visualmente, sendo que o infarto
por decorrer de qualquer das inúmeras placas invisíveis que residem em todo
leito coronário. O que previne infarto é o controle dos fatores de risco.
Principalmente controle do colesterol elevado, da hipertensão arterial e
tabagismo. Este deve ser o verdadeiro enfoque preventivo.
O benefício do procedimento que Bush
recebeu é útil para controlas dos sintomas de angina. Porém Bush não pode
desfrutar deste benefício, pois não sente nada, tendo recentemente pedalado 30
milhas em um evento que homenageou veteranos da guerra do Iraque. Desfrutou,
isto sim, do estresse psicológico do internamento, do desconforto de uma
intervenção invasiva, da necessidade de uso prolongado de drogas
antiplaquetárias, além do alto custo de seu procedimento.
Outra exemplo de overdiagnosis é o rastreamento indiscriminado de alguns cânceres em
pessoas assintomáticas. Por exemplo, a realização anual do exame de PSA para
pesquisa de câncer de próstata em homens assintomáticos. Embora câncer de
próstata em alguns casos possa ser fatal, está provado cientificamente que
fazer PSA de rotina não reduz probabilidade de morte por esta doença. Isto
porque na prática, a detecção de cânceres precoces e localizados não
necessariamente previne cânceres avançados, como sugere o senso comum. Em contrapartida, a cada 1000 homens que realizam PSA, 200 sofrem biópsias
desnecessárias, 29 terminam impotentes e 18 com incontinência urinária devido a
previsíveis efeitos advindos do tratamento resultante do overdiagnosis. Por este motivo, no ano passado US Prevention Task Force (órgão americano que recomenda exames
preventivos) contraindicou o uso de PSA em homens assintomáticos.
Paradoxalmente, PSA continua sendo um dos mais populares exames em nossa
prática médica. Isto não quer dizer que a pesquisa do câncer de próstata e seu
tratamento cirúrgico não esteja indicada em certos casos, principalmente em
pacientes com sintomas. O overdiagnosis
se refere ao uso do exame em qualquer pessoa, independente de seus fatores de
risco ou quadro clínico.
Esta
discussão não propõe que passemos a negligenciar a medicina preventiva. Propõe
que os exames certos sejam realizados nas pessoas certas. Ao solicitar um
exame, tenhamos em mente que em última instância o objetivo é beneficiar o
sujeito clinicamente. Há casos em que o rastreamento para câncer e a pesquisa
da doença coronária devem ser realizados. Segundo, devemos lembrar que prevenir não é necessariamente fazer exames, há situações em que a prevenção vem de outras condutas.
Quando
presidente, George W. Bush diagnosticou que o Iraque representava uma ameaça ao
mundo ocidental e promoveu uma guerra de benefícios questionáveis e eventos
adversos evidentes. Dez anos se passaram e agora seus médicos fizeram o mesmo:
diagnóstico desnecessário e tratamento fútil. Tudo não passa do estranho mundo do overdiagnosis.
* Artigo publicado ontem no Jornal A Tarde por Luis Correia.
* Artigo publicado ontem no Jornal A Tarde por Luis Correia.
Parabéns pelo texto. Muito bom.
ResponderExcluirExcelente visão!
ResponderExcluirA frequência de overdiagnosis em todas as especialidades realmente é um fato que todos nós nos deparamos cotidianamente.
Porém gostaria de incitar uma reflexão: em pacientes acima de 40 anos, a indicação de mamografia anual ou bianual é um tema de grande discussão. Já sabemos que esse rastreamento mais agressivo provoca realmente mais biópsias desnecessárias, porém algumas pacientes se beneficiam com a detecção precoce e outras evitam desfechos mais moles, como cirurgias mais agressivas, que produziriam efeitos graves na sua auto-estima. Deveriamos considerar desfechos mais fracos como importantes?
É conhecido também que o benefício populacional para prevenir mortalidade com medidas de rastreamento não é tão impactante, mas será que com esse tipo de desfecho soft ele se torna mais significativo?
Como sempre ressaltamos, o sistema biológico é complexo, exigindo dos profissionais de saúde uma visão mais expandida.
Excelente postagem! Parabéns pela matéria no Jornal, precisamos realmente mudar a consciência da população em relação a assistência em saúde, re-educar.
Excelente, como sempre! Blog de referência para quem busca informação científica de qualidade.
ResponderExcluirVou fazer papel de advogado do diabo: São os sintomas tão confiáveis a ponto de predizer em que pacientes devemos investigar moléstias ? Até que ponto devemos confiar na sua sensibilidade e valor preditivo negativo ? E a sua reprodutibilidade visto a sua grade variabilidade interobservador ? Será que se os benefícios superarem os riscos não seria, por bom senso investigar inclusive assintomáticos, quando estes apresentarem história familiar ou fatores de risco importantes ? Vou provocar.... e se George W Bush tivesse um CATE com uma obstrução de 90% do tronco da coronária esquerda e não referisse nenhum sintoma, optaríamos pelo overdiagnosis/overtreatment ou não? Sei que o Corage exclui lesão de tronco, mas passei por uma situação bem parecida recentemente...gostaria da opinião dos senhores
ResponderExcluirParabéns pelo Blog! Tenho acompanhado as postagens a um bom tempo.
ResponderExcluirEu sou fisioterapeuta e trabalho com avaliação de pré-temporada de atletas profissionais (futebol, basquete, volei, futsal). Basicamente, submeto os atletas a uma bateria de exames laboratoriais biomecânicos (dinamometria isocinética, estabilometria, step down, baropodometria, FMS, etc), em busca de fatores de risco para lesões musculoesqueléticas. Nesse contexto, fazemos uma procura por uma assimetria de força entre membros, valgismo dinâmico, excesso de instabilidade postural, relação agonista/antagonista reduzida, atraso na contração do transverso do abdome, entre outros.
Uma vez confirmada a presença da situação de risco, é programada uma intervenção correspondente.
Após a leitura desse post, eu fiquei intrigado com a evidência apresentada e minha prática clínica. Será que estou cometendo overdiagnosis?
Pedro... passados 6 anos desde a sua reflexão. A sua prática ainda inclui fazer esses diversos diagnósticos precoces nesses pacientes? Gostaria de saber seu raciocínio hoje em dia.
ExcluirPedro, acho que no seu caso, não. A não ser que seu "diagnóstico" implique na restrição de atividade, inibindo uma pessoa antes motivada a se exercitar.
ResponderExcluirBoa noite Dr. Luis Cláudio,
ResponderExcluirParticipei da sua palestra no Congresso da ISMP e parabenizo pela sua apresentação e pelo blog, onde já fiz algumas pesquisas anteriormente.
Uma pena é que acho que ainda vai demorar para todos se conscientizarem sobre o tema. Acabo de ler a seguinte matéria: http://www.istoe.com.br/reportagens/357466_COMO+FAZER+O+MELHOR+CHECK+UP?pathImagens=&path=&actualArea=internalPage.
Atenciosamente,
Fernanda Zenaide
Prezado Professor Luis, a classe médica precisar urgentemente refletir sobre essa temática. Essa "avalanche" de exames diagnósticos demandados pela sociedade oneram um sistema de saúde em crise, dando a falsa expectativa de Promoção de Saúde. Nós temos muita culpa, ao retroalimentar essa demanda de uma sociedade cada vez mais "instruída". É fácil prescrever um PSA... difícil é explicar ao paciente a não indicação e falta de benefício. Texto fantástico!
ResponderExcluirMuito bom Professor!
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