Canais de Luis Correia

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Síncope, Embolia Pulmonar e o Temor do Overdiagnosis.



Um dos trabalhos recentes que mais despertou comentários e compartilhamentos nas redes sociais foi o estudo italiano PESIT, publicado no New England Journal of Medicine, que descreveu 17% de prevalência de embolia pulmonar em pacientes internados com síncope. Número que surpreende, dada a gravidade da primeira condição (embolia) e a usual benignidade da segunda condição (síncope). 

Este é o tipo de trabalho que ocupará espaço eterno em nossas argumentações clínicas, com garantida popularidade nas visitas de enfermaria. Pela impressionante dimensão desta prevalência, imagino que casos rotineiros de síncope passarão a ser vistos com mais atenção e cuidado para evitar que embolias passem despercebidas. Por outro lado, este também é o tipo de trabalho que predispõe ao viés cognitivo da superestimativa de um resultado científico.

Recentemente escrevemos postagem sobre a importância de analisar nossas evidências internas antes de acessar evidências externas. Agora me refiro a um segundo momento de análise de nossas evidências internas, que deve ocorrer depois da leitura do trabalho. Depois de avaliar um trabalho, concluindo por sua veracidade e relevância, precisamos avaliar: o resultado do trabalho modificou nossa percepção interna de forma proporcional à relevância do mesmo?

Este processo analítico é importante, pois seres humanos (médicos e profissionais de saúde são humanos) sofrem do viés cognitivo de superestimativa da relevância das coisas. Problemas viram catástrofes,  riscos baixos são hiperdimensionados pela confusão com dano, marcadores prognósticos passam a ser interpretados como bolas de cristal, tratamentos de usual benefício modesto são interpretados como se o NNT fosse 1. 

Portanto, ao ver um trabalho de tamanho impacto, devemos analisar cuidadosamente como este modifica nossas crenças internas. 

O Estudo PESIT


Este é um estudo de caráter descritivo e transversal, modelo voltado para avaliação de prevalência, o objetivo primordial deste trabalho. O estudo avaliou 560 pacientes internados por embolia pulmonar em 11 centros italianos, considerando não portadores de embolia 330 que tinham baixa probabilidade pré-teste pelos critérios de Well e d-dímero negativo. Os 230 restantes realizaram angiotomografia de artérias pulmonares ou cintilografia pulmonar, cujos exames foram positivos em 97 pacientes, correspondendo a 42% dos que realizaram o exame e 17% de prevalência na amostra total de 560. 

Apesar de que nem todos tenham feito a pesquisa de embolia por método de imagem (seria o ideal), considero a metodologia razoável. Se este eventual viés de informação tiver ocorrido, este estaria subestimando esta alta prevalência e não superestimando. Enfim, o estudo convence pela alta prevalência.

Neste contexto, devemos lembrar qual o valor clínico de estudos de prevalência. A grande utilidade destes estudos está na determinação da probabilidade pré-teste, componente chave do raciocínio diagnóstico probabilístico. Prevalência é sinônimo de probabilidades pré-teste, pois a frequência da doença em uma dada população corresponde exatamente à probabilidade do paciente naquela condição ser portador da doença. 

De acordo com o trabalho de Well, probabilidade pré-teste para embolia pulmonar acima de 5% configura pelo menos moderada probabilidade. Portanto 15% é uma probabilidade significativa, dada a gravidade da condição. Vejam então a relevância deste achado: ter tido uma síncope já garante moderada probabilidade pré-teste de embolia pulmonar. 

Suspeito que este achado (este é meu receio) transforme síncope em embolia pulmonar, ou seja, sempre que tivermos uma síncope, pensaremos em embolia pulmonar como uma possibilidade razoável. Pelo temor de embolia (dano), esta probabilidade diagnóstica tenderá a ser superestimada inconscientemente.

Mas será que síncope sozinha atribui aos pacientes moderada probabilidade pré-teste de embolia pulmonar?

A Prevalência

Estudos descritivos são muito mais sensíveis ao tipo de população estudada do que estudos analíticos. O princípio da complacência (validade do conceito em populações diferentes) não funciona em estudos descritivos, como funciona em estudos analíticos que testam hipóteses. Ou seja, prevalência e incidência são demasiadamente influenciados pela população estudada. Desta forma, devemos analisar cuidadosamente que população foi avaliada neste trabalho. 

Em primeiro lugar, como diz o próprio título, este estudo se refere a pacientes internados por síncope, o que já traduz uma população mais grave do que síncope em geral. Em segundo lugar, estes pacientes internados corresponderam a apenas 30% do total de síncope atendida nos 11 hospitais, ou seja, provavelmente o terço de pacientes mais complexos. Sendo assim, 17% é uma prevalência maior do que o que seria observado no paciente sincopal mediano. Temos que cuidar para que nosso viés cognitivo não influencie nosso pensamento a respeito de qualquer paciente com síncope, o que será uma tendência inconsciente. 

Outro detalhe é a manifestação que motivou o internamento. Os autores mencionam superficialmente que os pacientes foram “admitidos por síncope”. No entanto, em torno de 45% dos pacientes com exame positivo para embolia estavam taquipneicos. Ou seja, boa parte destes indivíduos tinham um quadro de insuficiência respiratória como sintoma, que poderia ser inclusive uma manifestação mais importante do que a síncope.

A Causalidade

Em segundo lugar, como já pontuamos nas lúdicas discussões sobre zika e microcefalia, co-existência não é o mesmo que associação. Este estudo demonstra apenas co-existência de síncope e embolia pulmonar. Associação seria demonstrada se houvesse um grupo controle de características semelhantes ao grupo síncope, evidenciando maior frequência de trombos pulmonares nas síncopes quando comparada a não síncopes. 

De fato, fico curioso em saber qual a prevalência de trombos pulmonares em idosos (76 anos, metade com mais de 80 anos), admitidos em hospitais terciários por outras causas.

A despeito do trabalho não testar associação, os autores tentam inferir uma certa causalidade quando concluem que a frequência de embolia pulmonar foi mais alta nos pacientes que tinham síncope inexplicada (sugerindo que a explicação era a embolia). No entanto, se formos observar os números, metade dos pacientes com embolia tinham uma causa definida para a síncope, nos permitindo pensar que nem toda embolia foi o causador da síncope.

Desta forma, devemos ter em mente que este trabalho não traz nem mesmo inferência de causalidade. Este se presta a descrever probabilidade pré-teste em uma amostra selecionada de pacientes internados, idosos e mais complexos do que o geral. E esta probabilidade pré-teste é para a presença de trombo em artéria pulmonar, não exatamente para o que conhecemos como embolia pulmonar clinicamente manifesta.

Em uma analogia (grosseira) com dor torácica, se fizéssemos coronariografia em todo octagenário com dor torácica de origem muscular, encontraríamos doença coronariana importante em mais da metade destes indivíduos. Porém isso não quer dizer que a dor foi causada pela doença coronariana. Deveríamos tratar a doença coronariana? Neste caso, me parece evidente que não. 

O Tratamento

No caso da embolia pulmonar, reconheço que uma vez vendo um trombo em artéria pulmonar, a tendência a anticoagular é grande por qualquer um de nós. Mas se isso for um trombo crônico? Ou até mesmo agudo, porém sem relevância? Quantos trombos devem ser formar em nossa árvore pulmonar momentaneamente e nosso saudável sistema trombolítico endógeno os dissolvem. Quantas pequenas rupturas de placas coronárias com agregação plaquetária local sofremos momentaneamente e nosso sistema resolve silenciosamente. Quantas células cancerígenas se formam a cada momento e nosso sistema de defesa as destrói. O sistema complexo é assim, o saudável é a variabilidade de medidas biológicas e de coisas que surgem e desaparecem a todo momento. 

Desta forma, estamos diante do princípio da equipoise (incerteza que implica na necessidade de teste empírico), sendo necessário demonstrar que a anticoagulação destes pacientes trará benefício clínico. 

Overdiagnosis

Não estou propondo que trombos grandes sejam todos deixados de lado. Uma vez detectando, fica difícil voltar atrás. O caminho está em reconhecer o potencial do overdiagnosis. A melhor forma de prevenir overtreatment é prevenir overdiagnosis

Devemos atentar para o overdiagnosis. Temo que o protocolo do estudo seja copiado. Ou seja, todo paciente com síncope realize um inespecífico D-dímero, que virá positivo com frequência (D-dímero positivo não tem valor), levando à realização de angiotomografia, que detectará em 40% dos casos trombos em artéria pulmonar.

A pesquisa de embolia pulmonar deve estar mais indicada em pacientes complexos, com probabilidade mais alta, de preferência algum sintoma associado. Neste sentido, o trabalho perdeu a grande oportunidade de criar um modelo probabilístico de embolia pulmonar em pacientes com TEP. Era só colocar as variáveis que na tabela 2 se associaram a embolia em um modelo multivariado e definir os preditores independentes. Por que isso não foi feito? Com um modelo multivariado, nosso pensamento passaria a ser probabilístico, evitando o viés de achar que todo pacientes com síncope tem embolia até que se prove o contrário. 

Conclusão


Este trabalho tem satisfatória qualidade metodológica, porém é do tipo que potencializa vieses cognitivos.

Primeiro, o viés da superestimativa de uma probabilidade geral. Considerando que a probabilidade pré-teste de síncope foi descrita em um subgrupo de indivíduo que não representa a maioria dos pacientes com síncope, devemos nos cuidar para que inconscientemente esta informação probabilística não influencie nosso pensamento na maioria das síncopes. 

Segundo, o viés de causalidade. Este trabalho em nada prova o conceito de que estas embolias foram as causas da maioria das síncopes. Estimo que foram as causas na minoria das síncopes sem sintomas típicos de embolia. Parte deles são trombos em artérias e não embolias clínicas. Da mesma forma que temos obstruções coronárias em dores não anginosas. 

Terceiro, o viés do pensamento univariado. Síncope = 17% de probabilidade de embolia. Se o estudo tivesse criado um modelo multivariado, poderíamos individualizar a probabilidade de embolia em cada paciente, selecionando os de mais alta probabilidade para serem investigados. 

Muitas vezes nos deparamos com evidências verdadeiras, mas com risco de serem mal interpretadas, influenciando nosso pensamento de forma inadequada. Nossa análise crítica não deve ser apenas da informação, mas do resultado da interação da informação com nosso modo de pensar.

Medicina baseada em ciência deve ter como um de seus pilares uma análise criteriosa de nosso processo interno de percepção das evidências.
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6 comentários:

  1. Muito bom, Luis. Fiz comentários semelhantes - mas não tão elegantes - sobre o artigo a um colega na semana passada. Para nós da Nefro, isso significa mais uso de contraste iodado => mais lesão renal aguda. Estamos na era do estudo contrastado para o "triple rule out" (IAM, TEP e dissecção de aorta). E tome contraste!

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  2. Tenho acompanhado o blog há muito tempo , inclusive agora realizando o curso on-line e acho que esta sua análise foi uma das mais completas até aqui, abordando diversos conceitos que já mencionastes em outras ocasiões. Acima de tudo uma reflexão sobre overdiagnosis e overtreatment que é um dos principais desafios da prática médica, mas também falando sobre o teorema de bayes ( probabilidade pré-teste ---> prevalência), causalidade ( critérios de Hill) , viéses cognitivos e pensamento multivariado x univariado. Muito bom!

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  3. O problema da determinação de causalidade vai muito mais além do que a simples determinação de frequências de dois eventos, ou mesmo de correlação estatística entre eles. Não se pode inferir que síncope causa embolia pulmonar, apenas com base neste tipo de estudo. Esta limitação já vem do design do estudo, por mais que a sua metodologia tenha sido executada de maneira perfeita e acurada conforme descrito.

    Aqui, ao meu ver, no máximo poder-se-ia tecer considerações sobre a possibilidade de que a síncope fosse -- nesses pacientes -- um "marcador" ou mesmo um "fator de risco". E isso, limitando-se à população representada pelo grupo de pacientes, não podendo ser de pronto as conclusões extrapoladas para outras populações. Qualquer outra conclusão requer estudos adicionais.

    Comento aqui também o mal-uso do marcador D-Dímero. Esse marcador foi idealizado para uso pelo seu Valor Preditivo Negativo (VPN), em algoritmos diagnósticos. Ou seja, considera-se que seu valor dentro dos Valores de Referência (VR) (por assim dizer o "Valor Normal") se associa a um baixo risco de fenômenos tromboembólicos, e não seria necessário proceder à investigação com exames radiográficos mais avançados. Assim se preveniriam exames desnecessários, em pacientes assintomáticos e sem fatores de risco que apresentassem suspeita diagnóstica.
    Contudo o raciocínio reverso - ou seja, "VR D-Dímero elevados implicariam NECESSARIAMENTE em tromboembolismo", simplesmente não funciona pois o VPP desse exame nessas circunstâncias não é adequado. Isso reflete o fato fisiológico de que diversas condições de fundo inflamatório, ou mesmo fenômenos associados a uma condição de "paciente saudável", podem causar um aumento dos valores do D-Dímero.

    Ao utilizar qualquer exame de fundo diagnóstico temos de ter em conta tanto o Valor Preditivo Positivo (VPP) como o Valor Preditivo Negativo (VPN). Por vezes, o raciocínio em cima desses valores não é direto.

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  4. Brilhante como sempre , alerta importante pois fui simpósio onde se abordou Síncope e já foi citado esse trabalho como possibilidade .
    Wálmore Siqueira

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  5. Sempre bom conversar e refletir sobre novos achados e resultados.

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  6. Muito bacana ver vários assuntos, que estou estudando no curso on-line, serem abordados de forma tão integrada nessa discussão. Vejo o pensamento probabilístico se formando e consolidando no meu raciocínio clínico. This is so good! =D

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