Medicina de precisão é definida como a personalização de predições e condutas, através da utilização de marcadores genéticos, moleculares ou sofisticados exames de imagem. Cientificamente “precisão” significa reprodutibilidade, porém neste caso o termo é usado com significado de acurácia ou exatidão. Muitos falam em medicina de precisão como a medicina da certeza, a medicina que define a conduta certa, na hora certa, para o paciente certo. Como mostra a figura acima, todo paciente irá se beneficiar de cada conduta. Desaparecerá o número necessário ao tratar (NNT).
Nesta postagem, discutiremos o quanto incerto é este conceito e porque isto vai no sentido contrário ao paradigma científico contemporâneo. É também uma ideia contrária à evolução do pensamento médico, proposta inicialmente por William Osler no século passado, o que abriu portas ao pensamento epidemiológico. Explicarei porque o conceito de medicina de precisão pode ter um efeito paradoxal em gerar involução do pensamento científico e médico.
Nesta discussão, farei uma retrospectiva histórica da evolução do pensamento científico. Em seguida, traçarei um paralelo com a evolução do pensamento médico. Assim, ficará claro como a “medicina de precisão” vai de encontro (e não ao encontro) ao pensamento contemporâneo.
Revolução Científica
A revolução científica se iniciou em torno do século XV, quando a humanidade percebeu que pouco sabia a respeito do universo. Antes disso, os sapiens achavam que sabiam de tudo, era só consultar a bíblia ou o corão e as leis no universo estavam claras. A revolução científica se iniciou quando o homem reconheceu sua ignorância, sendo a partir deste momento que surgiu o interesse por explorar o universo, o interesse por descobrir como o mundo funciona. A revolução científica foi a revolução do reconhecimento da ignorância.
O físico Isaac Newton é um dos pais da ciência moderna ou da ciência propriamente dita. Antes de homens como Newton, o esforço mental para entendimento do universo se dava por meio da filosofia, a arte de pensar sem experimentação. Esta é uma prática de grande valor para a evolução da humanidade, porém não se presta para explicar o funcionamento da natureza sob a ótica realista. Alternativamente, havia religião, que explica o universo de maneira fantasiosa, embora tenha grande valor espiritual para a humanidade.
Newton iniciou a explicação do universo por meio da matemática, deduzindo fórmulas capazes de predizer o funcionamento da natureza. Força = massa x aceleração é uma dessas fórmulas que predizem de forma acurada a força de um objetivo em movimento. O sucesso científico (confirmação por experimentos) e prático (o homem chegou à lua) de fórmulas como esta foi imenso. Esta matemática de precisão está representada no recente filme “Hidden Figures” (Estrelas Além do Tempo), que conta a história de mulheres matemáticas chamadas de “computers”, que faziam os cálculos necessários para colocar o homem no espaço.
O grande sucesso da matemática de precisão gerou a expectativa nos cientistas de que era apenas uma questão de tempo para que tivéssemos um conjunto de fórmulas que explicariam todo o universo. Ou quem sabe, encontrar uma única fórmula que explique tudo, como até tenta o físico Stephen Hawking. Ele ainda não conseguiu e sob o paradigma científico atual, nunca conseguirá.
Mas que paradigma científico atual é este que se distancia da precisão?
O que aconteceu nos últimos 200 anos é que a expectativa dos cientistas foi frustrada. Eles perceberam que na medida em que os instrumentos de medição dos desfechos se tornavam mais acurados e precisos, ficava evidente que suas fórmulas eram menos acuradas e precisas na predição dos fenômenos. Em segundo lugar, à medida em que migrávamos para sistemas mais complexos, as fórmulas funcionavam menos ainda.
Que sistemas complexos são esses?
O sistema biológico, por exemplo, é muito mais complexo e imprevisível do que uma nave que leva o homem à lua. E do ponto de vista micro, os movimentos das partículas atômicas ou subatômicas são muito mais imprevisíveis do que se pensava.
Imprevisíveis no sentido de que fórmulas não conseguem determinar com certeza o que acontecerá com um sistema vivo ou o que acontecerá com uma partícula subatômica na próxima subfração de segundo.
Surge então uma mudança de paradigma. Esta mudança está descrita com precisão (trocadilho) no livro “O Ponto de Mutação”, em que o físico Fritjof Capra diz que “no modelo científico moderno, nunca podemos predizer quando e como um fenômeno vai acontecer, apenas podemos calcular sua probabilidade.”
Esta evolução de pensamento é a base da física quântica, uma grande representação do pensamento científico contemporâneo. Em certos sistemas não há como encontrar uma fórmula precisa para predizer fenômenos. O movimento das partículas subatômicas é randômico, caótico e o caminho para resolver essa questão é nos apoiarmos em matemática.
Matemática de novo? Sim, mas agora uma matemática diferente.
Não me refiro mais à matemática de Newton, que é uma matemática da certeza. A matemática cientifica de hoje é a que reconhece a incerteza, é a matemática da probabilidade. A esta matemática da incerteza se dá o nome de estatística.
Não podemos ter certeza do próximo movimento de uma partícula, mas podemos calcular a probabilidade de que o movimento seja para esta ou aquela direção. A ciência hoje se baseia em estatística que (ao contrário dos que muitos pensam) é o humilde reconhecimento de nossas incertezas. É o reconhecimento da imprecisão de nossas afirmações.
Einstein viveu esse momento de transição da física newtoniana para a física quântica. Do ponto de vista do macro universo, Einstein revolucionou o paradigma com a teoria da relatividade. Porém do ponto de vista micro, ele não se conformava em aceitar o acaso como regente do universo. Foi assim que ele proferiu “Deus não joga dados”. Hoje está provado experimentalmente que Einstein estava errado. Deus joga dados sim. A física quântica está comprovada cientificamente.
Já escrevi nesse Blog (“A Oração do Acaso”) que o acaso é divino. Ou seja, a única lei de Deus é a ausência de uma lei perfeita. Deus governa o universo pelo acaso. Em verdade, Deus não governa, Ele inventou o acaso para que o universo se autogoverne.
E o que toda essa discussão de física tem a ver com nossa medicina?
Essa discussão nos leva à frase mais genial da medicina moderna, proferida por William Osler: “Medicina é a ciência da incerteza e a arte da probabilidade”.
Há quase um século atrás, este médico foi capaz de descrever a visão quântica da medicina. Testemunhamos uma enorme revolução tecnológica médica ao longo do século XX. Já no século XXI a revolução será cognitiva, quando finalmente entendermos (e aplicarmos) o que Osler quis nos dizer há tantas décadas atrás.
A proposta da medicina de precisão é uma evidência de que muitos ainda estão relutantes em aceitar a incerteza, assim como Einstein estava relutante em aceitar que Deus joga dados. Esta proposta é uma evidência da imaturidade (no bom sentido) do pensamento médico vigente, representado por uma a teimosa procura da certeza de que nossas decisões estejam corretas.
A procura desta “certeza platônica” confunde o pensamento médico, pois nos distancia do pensamento probabilístico. Abominamos a incerteza e com isso abrimos a porta para um conjunto de vieses cognitivos, como o viés de segurança perceptível, tema de postagem prévia neste Blog.
Evidências sobre Medicina de Precisão
Em cardiologia, minha especialidade, evidências mostram falência sucessiva da tentativa de predições muito acuradas. Novos biomarcadores, bioquímicos e de imagem, são inventados todo dia. Porém poucos deles conseguem incrementar de forma clinicamente relevante nossas predições, no máximo promovem um incremento tênue.
Isso ocorreu com o determinismo genético. Acreditávamos que seria uma revolução o mapeamento do DNA. Não foi. Por exemplo, genes não incrementam em nada nossa capacidade de predizer clinicamente o risco de um infarto. Não garantem quem vai ter ou quem não vai ter um infarto. Marcadores genéticos não fazem parte de modelos probabilísticos prognósticos nas condições cardiológicas mais comuns.
É claro que em certos casos particulares, as predições são mais acuradas. Esse é o caso daquele gene de Angelina Jolie, que representa quase uma garantia que ela desenvolveria câncer de mama ao longo da vida, se não morresse antes por outra causa. Por isso, ela fez mastectomia radical preventiva.
No campo da oncologia, editorial recente na revista Nature reconhece que medicina de precisão representa exceções nos casos oncológicos. Na maioria das vezes, marcadores modelam uma probabilidade, continuam no paradigma quântico.
Há três décadas o editor do New England of Medicine, Jerome Kassirer, publicou “Our stubborn quest for certainty”. No ano passado, o editorial foi de Arabella Simpkin, intitulado “Tolerating Uncertainty - The Next Medical Revolution”. Estas são manifestações científicas contemporâneas. O problema é que às vezes o anticientífico é mais atraente. O atraente é como a história é contada, mais do que dizem as evidências.
Mas porque tanto entusiasmo voltado para “medicina de precisão”?
Primeiro, esse é um nome genial, muitas vezes a forma convence mais do que evidências. Os marqueteiros sabem disso, assim como os advogados. Como disse Johnnie Cochran, advogado de OJ Simpson: “não importam as evidências, o que importa é como contamos a história”. E a história foi tão bem contada que OJ foi absolvido, a despeito das fortes evidências de seu crime. A mente sapiens é biologicamente crente, evoluímos com mais predisposição a acreditar do que duvidar. Por isso, uma história bem contada é suficiente.
Segundo, temos uma aversão natural à incerteza, isso nos faz sentir vulneráveis. Há um viés cognitivo denominado zero-risk bias, que representa nossa teimosa procura pelo platônico risco zero. O conforto cognitivo nos aproxima mais da medicina de precisão, do que da medicina da incerteza de Osler.
Terceiro, há uma evidente imaturidade do senso comum em entender o sentido da ciência contemporânea. Muitos confundem cientistas como aquele ser presunçoso que que conhece tudo. Este é pseudocientista. O verdadeiro cientista é aquele que tem as perguntas certas e não as respostas. Já escrevi nesse Blog a diferença de cientista e pesquisador. Portanto, as pessoas ainda pensam que se evoluímos cientificamente, evoluímos no sentido da predição perfeita. Ainda não faz parte do senso comum que a ciência moderna é a ciência das probabilidades.
Quarto, há interesses na promoção da medicina de precisão, é claro. Ao inventar um novo biomarcador em potencial, este é patenteado. A partir daí isso vai gerar riqueza, o que é bom. A ciência deve ser transformada em tecnologia, em inovação. Porém neste afã, as patentes são supervalorizadas, muitos biomarcadores sem relevância clínica se tornam exames comercialmente disponíveis e muitos marcadores relevantes tem sua capacidade preditora superestimada.
Sem dúvida a necessidade de inovação é uma mola propulsora para a evolução da ciência. Paradoxalmente, este "imperativo de inovação" pode tornar a ciência menos rigorosa nos seus testes de hipóteses. É este imperativo que faz surgir fenômenos como a fantasiosa “medicina de precisão”.
Visão Pessimista ou Otimista?
Este texto pode ter um tom niilista sugerindo que não temos mais o que evoluir. Pelo contrário, tenho grande expectativa de evolução, mas esta surgirá de acordo com o verdadeiro paradigma científico.
Acredito que as predições ainda vão melhorar, novos biomarcadores incrementarão a acurácia de nossas predições, mas isto ocorrerá como uma melhora no cálculo das probabilidades e não como predições determinísticas.
Se almejarmos o determinismo dificultaremos a evolução cognitiva do pensamento médico proposta pelos Oslers ou Kaplans.
Precisamos evoluir da “medicina de precisão” para a medicina de predição probabilística. Novos marcadores aprimorarão as probabilidades e a mente médica ficará cada vez mais confortável em aceitar incertezas e raciocinar com probabilidades. Essa dupla será imbatível.
Processos diagnósticos nada mais são do que modelagem da probabilidade de uma doença como a causa dos sintomas, predições prognósticas nada mais são do que a probabilidade de desfechos e um tratamento não oferece garantia de benefício, todos tem o seu número necessário a tratar.
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Excelente seu artigo, Luis. Tenho procurado entender um pouco melhor este conceito e o seu texto lancou um pouco de luz neste assunto tão controverso.
ResponderExcluirSão textos como este que refletem a realidade; acho que de certa forma, em se tratando de ciência de probabilidades, a medicina oferece estatística e não certeza de curas não justificando a crescente judicializacão do ato médico.
ResponderExcluirBrilhante colocação, prezado Luis!
ResponderExcluirQuando era um menino me encantei pela Medicina pporque "queria ser um cientista". Bem, no Brasil ninguém dava (e poucos hoje dão) emprego a cientista. Entao na época ninguém entendeu bem -- mas como dav status meus pais me deixaram seguir quieto, enquanto fazia experimentos adubando meu jardim e cruzando entre si os meus peixes de aquário.
Pelo Natal, meus pais me deram um brinquedo que se chamava "Alquimia": uma série de reagentes com experimentos e resultados. Me rendeu muito divertimento!
Hoje como Patologista Clínico, não costumo ter contacto direto com pacientes. Mas gostaria de adicionar aqui que todo medico é (devia ser) um cientista. Todo paciente representa um experimento (que pode ser) bem ou mal conduzido. Para isso temos os princípios da ciência, mas não nos devemos deixar dominar pelo determinismo ou pela fé cega (não somente a deuses mas também a exames, procedimentos, medicamentos e protocolos engessantes).
Victor Lage - victor@sarah.br
Muito bom!
ResponderExcluirDe fato, as tentativas de aprofundar o estudo da fisiopatologia não deram os frutos esperados. Concordo bastante. Ainda temos muitos pequenos passos a dar nesse sentido, porém o impacto maior para os pacientes virá com a adaptação do pensamento médico.
Aproveitando o gancho e sabendo que você gosta do Nassim Taleb, já pensou em empregar o conceito de antifragilidade no esquemas de tratamento? Ao invés de planejar a terapêutica para evitar eventos; empregar uma estratégia/intervenção que melhore a situação com eles.
Como um stent ocioso que fosse ativado se ocorressem modificações no vaso; ou uma droga que induzisse estado pró-trombótico em caso de hemorragia.
Talvez apenas reestruturando as opções que já temos para pensar nesse fim. Mudando o racional por trás do objetivo (passar da robustez para a antifragilidade).
Abraços,
Felipe
A complexidade deve ser tratada com o big data e a inteligência artificial. Entramos em dimensões intangíveis. Vai ser difícil no início, mas vamos nos acostumar, pelos benefícios que advirão.
ResponderExcluirCaro Dr. Luis Claudio,
ResponderExcluirPara um blog que se pretende científico, para onde foi a ciência na frase "Em verdade, Deus não governa, Ele inventou o acaso para que o universo se autogoverne."?
O paradigma do acaso não é científico. É preciso percebermos isso urgentemente.
Cordialmente,
Bruno Guimarães Tannus
Muito boa reflexão. Acrescente-se que o homem é um ser sensitivo e não intelectivo, portanto nada prospera sem um fluxo de afetos. Esse texto está repleto disso.
ResponderExcluirNavegar é preciso, viver não é preciso. Como a mágica mente de Fernando Pessoa se deu asas e com essa expressão mínima consegue predizer, ou antever a falência do sonho científico. O que foi reduzido a pensamento sem experimentação é precursor de conclusão tão bem elaborada, como esse texto. Sem excluir nada, que tal recolocarmos a filosofia dentro do raciocínio médico? Dessa forma, já começamos aceitando a incerteza como elemento inerente e talvez haja lugar para entender a falência como desfecho natural. Diminuindo expectativas, somos mais felizes e completos.
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