Canais de Luis Correia

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

O Paradigma do Benefício de Métodos Diagnósticos


Na última postagem da série Análise Crítica de Métodos Diagnósticos discutimos sobre o primeiro critério de avaliação da utilidade de um método diagnóstico, que corresponde à capacidade do resultado do exame em influenciar a probabilidade de doença. Como pontuamos, este critério é necessário para que um método seja útil, porém não suficiente. Nesta postagem discutiremos o segundo critério: o benefício proveniente da realização do método diagnóstico.

Quando falamos de conduta terapêutica, refletimos sobre benefício e malefício. No entanto, para métodos diagnóstico são fomos treinados a pensar desta forma. Porém é essencial que o médico tenha a noção básica que a informação fornecida por um exame, em primeiro lugar, não deve ser maléfica; em segundo lugar, a informação indiretamente deve trazer benefício para o paciente. Ou seja, a cascata de ações decorrente do resultado do exame devem reduzir o risco do paciente.

Vamos voltar a utilizar como exemplo o exame do screening da doença coronária em indivíduos assintomáticos. Saliento que esse raciocínio não se restringe à doença coronária ou à cardiologia. Esse pensamento deve ser universal.

Imaginem um paciente de 60 anos, hipertenso, assintomático, sem limitação funcional. Vai ao consultório de uma cardiologista, que solicita um teste ergométrico, seguindo a habitual receita de bolo que norteia nossa comunidade médica. Resultado, teste ergométrico positivo. Na postagem passada, discutimos que o valor preditivo positivo do teste nesta situação não é dos melhores, o que já coloca um grande ponto de interrogação na utilidade do mesmo. Mas hoje nossa discussão vai além desta questão. Imaginem que o teste está correto, ou seja, o paciente é portador de doença coronária silenciosa diagnosticada pelo teste ergométrico. Para que serviu o diagnóstico? Foi benéfico para o paciente? Sabemos que pacientes deste tipo não necessitam de procedimento de revascularização, portanto não há sentido maior em prosseguir com cateterismo cardíaco. Uma eventual angioplastia neste paciente não reduz risco de morte ou infarto, tal como demonstrado por vários estudos, liderados pelo Courage Trial.

O que este paciente precisa é prevenção de eventos cardiovasculares através do controle dos fatores de risco. Controle de hipertensão arterial, controle do colesterol. Até a intensidade do controle do colesterol não depende mais de um diagnóstico de isquemia silenciosa, pois já foi demonstrado que a redução agressiva é benéfica mesmo em pacientes sem doença cardiovascular, desde que seu risco seja intermediário.

Portanto, de acordo com um raciocínio lógico, a realização do teste não tem benefício, pois o resultado não deve modificar conduta. Mas a lógica não basta para chegarmos a conclusões definitivas em medicina. Daí surge o paradigma dos ensaios clínicos para testar eficácia de métodos diagnósticos. Estamos acostumados a falar em acurácia de métodos diagnósticos. Mas o que seria eficácia? Seria exatamente a comprovação de que a realização do método é benéfica para reduzir eventos indesejados, no presente caso, eventos cardiovasculares. Esta comprovação vem da randomização de pacientes para duas estratégias: fazer ou não fazer o método diagnóstico. A comunidade científica tem demandado este tipo de evidência para validação definitiva de um teste diante de uma dada circunstância clínica.

No caso do screening da doença coronariana, em 2009 foi publicado no JAMA um artigo onde investigadores randomizaram pacientes assintomáticos para realizar ou não realizar cintilografia miocárdica. Para não deixar dúvidas, eles selecionaram um tipo de paciente considerado de risco elevado para doença coronariana: diabéticos. Após anos de seguimento, não houve redução de eventos cardiovasculares com a realização da cintilografia miocárdica (foto acima). Portanto, é desnecessário realizar este exame.

Sempre que fazemos coisas desnecessárias, que não trazem benefício, corremos o risco de causarmos malefício. Recentemente, foi publicado no Archives of Internal Medicine um caso clínico, anedótico, porém que provoca nossa reflexão a respeito do assunto. Uma mulher jovem, obesa, vai ao consultório do cardiologista com uma dor precordial totalmente atípica. O mesmo percebe que a probabilidade de doença obstrutiva é baixa, porém decide solicitar uma pesquisa não invasiva de doença coronária obstrutiva. A justificativa usado pelo médico foi just in case, o que podemos traduzir para nossa linguagem médica coloquial como desencargo de consciência (alguém sabe de onde veio esse termo ridículo?). Muito bem, o exame realizado foi a angiotomografia de coronária, cujo resultado foi positivo para uma lesão na descendente anterior. Como todo exame não invasivo, há possibilidade de falso positivo. E isso ocorreu, pois o cateterismo solicitado na seqüência não mostrou obstrução coronária. Até aí tudo bem, pois no máximo a paciente sofreu o estresse emocional do exame e da possibilidade de doença coronária, um pequeno/moderado hematoma femural que vai se resolver em 30 dias, aliado ao custo para o sistema de saúde. Mas o problema é que neste caso, o cateter dissecou o tronco da coronária esquerda, provocando um infarto anterior extenso, levando a paciente para cirurgia cardíaca de urgência. Trinta dias depois a coitada teve alta do hospital, onde tinha se internado apenas por desencargo de consciência.

Dias depois a paciente se internou novamente por insuficiência cardíaca refratária, recebendo (pasmem) um transplante cardíaco, única solução encontrada para resolver seus sintomas. O desencargo de consciência terminou em um transplante cardíaco.

Recentemente, estudo observacional publicado nos Archives of Internal Medicine demonstrou que não houve diferença de eventos cardiovasculares entre 1000 pacientes assintomáticos de baixo risco que foram submetidos a screening de doença coronária, comparados a 1.000 pacientes que não realizaram o screening. Embora não seja informação definitiva (dado observacional), nada mudou no desfecho do paciente. No mesmo número da revista, Michael Lauer, cardiologista do NIH, escreveu o Editorial intitulado Pseudodisease, the Next Great Epidemic in Coronary Atherosclerosis, onde afirma:

Overdiagnosis is a serious problem because it leads to a number of harms, while by its very nature it cannot offer benefit. Overdiagnosis is threatening to become an increasingly important public health problem because of the enthusiasm for and proliferation of unproven screening tests.

Quando discutimos este assunto, médicos de boa fé geralmente mencionam alguns casos onde o paciente parece ter se beneficiado com o procedimento. Por exemplo, “eu tinha um paciente assintomático, que a cintilografia mostrou isquemia, o cateterismo mostrou doença triarterial e terminou em cirurgia cardíaca.” Bem, onde está mesmo a evidência de que cirurgia está indicada nesse caso? OK, mesmo que bem indicada e esse paciente tenha se beneficiado, isso não quer dizer que a decisão do exame tenha sido correta. Sabe por quê? Porque outro paciente desta mesma conduta pode ter se prejudicado: por exemplo, pode ter morrido na cirurgia ou recebido um stent que depois trombosou causando infarto anterior extenso - já vi isso. De forma que em média (tal como mostrou o estudo do JAMA) não há benefício – ou os casos de benefício foram anulados pelos casos de malefício.

Cuidado com a memória de nossa experiência clínica, ela pode nos enganar. Tendemos a memorizar os casos de sucesso, mais do que os insucessos. É nosso Complexo de Deus atuando inconscientemente.

Mas devemos também lembrar que há várias situações em que o exame diagnóstico é útil. Por exemplo, um paciente com dor torácica e moderada probabilidade de doença coronária obstrutiva. Um teste positivo vai elevar sua probabilidade para alta e nos fazer iniciar tratamento para melhora da angina do paciente. Seja medicamentoso ou invasivo. Haveria assim benefício de melhora na qualidade de vida.

Já comentamos neste Blog sobre a indicação de mamografia abaixo dos 50 anos para toda mulher, independente de seus fatores de risco. Estatísticas demonstram que para cada 2.000 mulheres que realizam o exame, 1 vida é salva e 10 tratamentos desnecessários (mastectomia, quimioterapia, radioterapia) são realizados. Mamografia anual realmente é benéfica em todas as mulheres com 40 anos?

Vários colegas justificam o excesso de solicitação de exames a partir do suposto desejo do paciente. “É o paciente que exige.” Para mim, isso não é uma verdade universal. Alguns poucos pacientes exigem, a maioria ouve sua recomendação. E mesmo os que exigem, exigem porque nós médicos que criamos a cultura do excesso de exames. Nós temos a responsabilidade de modelar o pensamento da comunidade leiga a respeito de questão médicas. E devemos fazer da maneira correta.

Na minha experiência, boa parte dos pacientes se incomodam em realizar muitos exames e gostam de uma conduta econômica. Não sinto uma demanda muito grande por parte dos pacientes. Por exemplo, outro dia me ligou uma amiga promotora, muito ocupada, mãe de dois filhos. Ela me perguntou: preciso mesmo perder uma tarde para realizar esse ecocardiograma que me foi solicitado durante uma visita pré-anestésica para um procedimento de pequeno porte? Claro que não.

Mais uma vez, lembro do paradigma do Less is More. Às vezes fazer menos exames é melhor para o paciente. Ainda com o benefício de dar mais espaço para o velho raciocínio clínico, este de utilidade indubitável.

Desta forma, concluímos a série Análise Crítica de Métodos Diagnósticos, onde demonstramos que antes de solicitarmos um método, devemos pensar em sua acurácia (o quanto um teste de fato contribui para o diagnóstico da doença - postagem 1 e 2) e em sua verdadeira utilidade clínica (influência na probabilidade e beneficio para o paciente) - postagem 3 e 4. Isso é raciocínio clínico embasado em evidências.

6 comentários:

  1. Luís,
    Concordo plenamente com o que você argumentou. O difícil não é apenas o paciente mas o próprio julgamento da classe médica que naqueles casos em que o exame solicitado, aparentemente sem indicação, poderia fazer diferença, o que se mostra mesmo uma exceção, se coloca imediatamente contra o colega e só reforça a ideia por parte do paciente de imprudência ou imperícia da parte do outro médico. A cultura da menos-valia na classe médica é muito forte. Acaba-se por falar ao paciente, muitas vezes enviezado por anos de prática médica inadequada e por "casos" de terceiros onde um exame solicitado de forma aleatória "salvou" uma vida ( como se alguém "morresse menos" porque vai ao médico. Ora, só se morre uma vez), que o colega deveria ter sido mais prudente. E, sob o argumento de prudência e de "cuidado", acaba-se por solicitar um exame que no mínimo requer tempo desperdiçado. Outro fator, muitas vezes alheio à questão da eficácia do método diagnóstico é que muitos exames se tornam o "exame" ( leia-se anamnese e exame físico) do paciente. Para quê ouvir ou examinar se o exame complementar já vai direto ao ponto? "Quem não sabe o que busca, não sabe o que encontra...". Pena que essa seja uma prática cada vez mais frequente. Mesmo assim, valeu pela reflexão.

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  2. Parabéns pelo texto, racional e objetivo !

    Continue o bom trabalho

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  3. Luis,
    concordo em parte em relação ao teste ergométrico em pctes assintomáticos. Ex: pcte de risco intermediário (framingham de 15%, por exemplo) com PA de 140x90 e LDL de 110. COm teste negativo ganharia anti-hipertensivo e só. COm teste verdadeiramente positivo ganharia estatina com meta de LDL<70 e aas,medicações que diminuem mortalidade na prevenção secundária e que têm o uso bastante discutido naprevenção primária (a estatina de uma forma geral não,mas neste caso especificamente sim - mesmo que tivesse pcr alta para se enquadrar no jupiter ainda seria um nnt muito alto...).
    Este estudo com diabéticos (não me lembro de foi o DIAD mas lembro queli na época) dificilmente iria mostrar diferença já que de forma geral os diabéticos já recebem estatinas e aas (atualmente o aas é indicado como prevençãoprimária para homens >50a e mulheres >60a com algum outro fator de risco além do DM, como HAS ou DLP masnaépoca era ainda mais liberal o critério para se iniciar a medicação). COmo sabemos que aangioplastia não diminui IAM/morte e mesmo a revascularização miocárdica tem ficado reservada cada vez mais para tirar sintomas (video stich) a grande diferença em saber se o pcte é coronariano ou não seria justamente o tratamento medicamentoso. O diabético por ser encarado como de alto risco de uma forma geral, não tem a conduta farmacológica alterada...
    Mas obviamente que concordo com os comentários em geral. Iclusive coloquei no cardiopapers este caso damulher transplantada por um cate sem necessidade.
    Um abraço.

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  4. Prezado Eduardo,

    Obrigado por estimular essa discussão, que é uma das que mais me entusiasma.

    Faz todo sentido o DIAD não ter mostrado diferença e isso reforça o argumento contra os exames em pacientes assintomáticos.
    Isso porque revascularização de isquemia silenciosa não muda desfecho. O mesmo se aplica para o tratamento clínico.
    Mas isso não é só para diabético, o tratamento clínico deve ser regido pelo risco cardiovascular (risco de eventos) e não pelo diagnóstico de isquemia silenciosa.
    Este é o ponto principal dessa discussão.

    No raciocínio preventivo, devemos pensar no Escore de Framingham e, em casos de exceção, complementar com pesquisa de aterosclerose subclínica.

    Explicando o mecanismo: o que causa infarto são as 200 placas do leito coronário, e não apenas aquela única de 70% que fez da pesquisa de isquemia positiva. Não é mesmo?

    Migrando agora para as evidências clínicas:

    Onde está a evidência de que AAS reduz mortalidade (ou até mesmo eventos) em pacientes com isquemia silenciosa que nunca teve um desfecho? Isso seria extrapolação de pacientes que sofreram eventos isquêmicos agudos.

    Onde está a evidência de que o LDL deve ser menor que 70, em pacientes de prevenção secundária?

    Assintomático com teste isquêmico positivo representa prevenção secundária? Em que nos embasaríamos para dizer isso.

    Enfim, de uma forma geral, o raciocínio preventivo deve ser embasado na avaliação prognóstica, na estimativa da probabilidade de eventos futuros.

    Acho que esse é o aspecto mais interessante dessa discussão.

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  5. Luiz,
    Realmente não há estudos de aas e LDL<70 em isquemia silenciosa mas a acho que na ausência dos mesmos poderíamos usar aquele seu raciocínio da plausibilidade moderada em situações similares, assim como o uso de carvedilol em pcte com miocardiopatia chagasica...
    O que não poderia ser ampliado seria o uso de bbloq, por exemplo, uma vez que este só diminuiu mortalidade em pós iam e não em coronarianos em geral.
    Enfim, o tema é realmente controverso mas nem por isso menos interessante. Um abraço,
    Eduardo Lapa

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  6. Realmente me impressiona a objetividade, racionalidade e lógica probabilística empregada ao explorar o teorema de Bayes na prática clínica, criticando aqueles que tomam decisões sem se apossar da medicina baseada em evidências.
    Entretanto, me incomoda ver que, para criticar o uso de exames invasivos desnecessários, se recorra a citar dissecção de coronárias. Engraçado que ao exemplificar, se esquece da probabilidade, da epidemiologia de tal evento adverso!

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